CONVITE À REFLEXÃO E À SOLIDARIEDADE.
DIGNIDADE HUMANA, BRASILEIROS E REFUGIADOS.

Por: Antônio Carlos Malheiros e Pietro Alarcón

O deslocamento forçado de pessoas ocasionado pelas tragédias humanitárias, ou pela intolerância ou, ainda, pela renuncia a criar os mecanismos para aliviar ou resolver pacificamente os conflitos que se prolongam no tempo em cenários diversos do planeta, constitui um dos dramas mais impactantes da nossa época.

Certamente, no marco de uma sociedade internacional marcada pela desigualdade entre os Estados e pelos interesses geopolíticos, é preciso consignar, interpretar e lutar pela efetividade das normas que limitem o uso da força e gerem as condições para a vigência dos direitos. É dizer, é necessário pensar e repensar no ser humano, na sua dignidade, e aferrar-se a sua infinita e provada capacidade de sentir como sua a situação do outro.

Daí que o renovado vigor dos princípios de solidariedade, tolerância e dignidade devam, necessariamente, constituir-se nos fundamentos e os nortes dos ordenamentos constitucionais, bem como dos Documentos e declarações emanados da Organização das Nações Unidas. Os desprendimentos jurídicos desses princípios constituem um acervo de extrema valia, constituindo-se nas ferramentas jurídicas que alicerçam uma reação cidadã diante das dificuldades dos mais diversos grupos humanos, especialmente aqueles que se atravessam situações de elevado risco.  

Destarte, o problema dos refugiados é de índole transnacional não somente porque implique a movimentação de grupos de homens e mulheres para o exterior das fronteiras estatais, mas também porque supõe compreender que fazemos parte do mesmo gênero humano, é dizer, de uma mesma comunidade; que entre cada um de nós existe uma ligação indiscutível, criada pelo elo da nossa essência de ser humano.  

Pois bem, no terreno do conhecimento, a reflexão jurídica tem dado origem ao denominado Direito dos Refugiados, que adquire uma interessante autonomia, objetivando a promoção do amparo dos Estados aos povos e pessoas ameaçadas em circunstâncias políticas, religiosas, ou que convivem em regiões de grave e generalizada violação dos direitos humanos. Por isso o direito dos refugiados compreende duas dimensões: a primeira, a referente ao conceito de refúgio, á extensão dos benefícios e as condições de concessão do status de refugiados; a segunda, a referente à criação de condições de amparo e integração dos refugiados, e ainda, de retorno a os seus lugares de origem quando cessem as situações que colocam em risco a sua vida e ocasionaram seu deslocamento.

Há que lembrar que as figuras jurídicas de asilo e refugio se desenvolveram especialmente durante o século XX, tendo como pano de fundo conflitos nacionais e internacionais de extrema gravidade, como a Primeira e a Segunda Grande Guerra, a Guerra Civil Espanhola e as ditaduras na América Latina, eventos que ocasionaram a saída compulsória de pessoas a outros países e verdadeiros êxodos humanos.

A preocupação da ONU se fez evidente com a criação de vários documentos para tratar do assunto, como a criação em 1946 da Organização Internacional dos refugiados (OIR). Logo, através da Resolução 428 de 14 de dezembro de 1950, a ONU ordenou a substituição, em 1° de janeiro de 1951, da OIR por um Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR), para a proteção adequada destas pessoas, que com a criação do Fundo de Ajuda aos Refugiados (U.N.R.E.F.) iniciou o apoio aos programas de integração dos refugiados nos Estados nos quais residiam.

Advirta-se, no entanto, que já em 1948, as Nações Unidas, na Declaração Universal de Direitos Humanos tratou do assunto no seu artigo XIV, apontando  que no Item número 1, que “Todo homem, vitima de perseguição, tem, o direito de procurar e de gozar de asilo em outros países”.

O sistema de salvaguarda dos refugiados foi complementado com a proclamação pela ONU em 1951 do Estatuto dos Refugiados. O Documento aponta a proteção a pessoas perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, e que se encontram fora do seu país o do país de residência habitual, que não podem ou não querem valer-se da proteção desse país e não tem possibilidades de retornar, precisamente por causa desse temor.

Visando superar limites geográficos e temporais, o Estatuto de 1951 foi revisado, surgindo o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, que ampliou a proteção adequando-a a novas categorias de refugiados.

É importante lembrar que conforme o Estatuto de 1951, pessoas que cometeram crimes contra a paz ou contra a humanidade, ou participado de atos terroristas, tráfico de drogas ou praticado atos contrários aos princípios e fins da ONU não poderão se beneficiar do status de refugiados.

Mais adiante na história, em novembro de 1984 foi assinado na Colômbia o Colóquio de Cartagena, que analisou a crise de direitos humanos no Continente e expressou nas suas resoluções a necessidade de “Promover dentro dos países da região a adoção de normas internas que facilitem a aplicação da Convenção dos Refugiados de 1951 e do Protocolo de 1967, e, em caso de necessidade, que estabeleçam os procedimentos e afetem recursos internos para a proteção dos refugiados

Logo após anos de Estado de fato ou de não-direito, o Brasil se reergueu sob bases democráticas e a Constituição Federal de 1988, ao estabelecer os princípios que orientam as relações internacionais no seu artigo 4°, destacou a prevalência dos direitos humanos (inciso II), o repúdio ao racismo (inciso VIII) e a concessão de asilo político (inciso X).

E precisamente com esse espírito, o Brasil promulgou a Lei 9.474 de 22 de julho de 1997, que definiu os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados e criou o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados –. O Comte foi constituído como um órgão de deliberação coletiva, presidido pelo Ministério da Justiça, que conta com representação de outros Ministérios, do Departamento da Policia Federal e de um representante de organização não-governamental que se dedique a atividades de assistência e proteção dos refugiados no país.

Importante reconhecer que a Lei brasileira de 1997 ampliou o conceito de refugiado com relação ao disposto no Estatuto de 1951, pois contemplou o reconhecimento de status de refugiado a “todo indivíduo que – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refugio em outro país”.

Também, conforme a Lei, os efeitos da condição de refugiados serão extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes e aos demais membros do grupo familiar que dependam economicamente do refugiado. Igualmente, a Lei estabelece que o refugiado desfrutará de todos os direitos dos estrangeiros, em especial a cédula de identidade comprobatória de sua condição jurídica, carteira de trabalho e documento de viagem. Obviamente, a pessoa que ostenta o caráter de refugiado encontra-se sujeita a ás exigências próprias desse  status, bem como aquelas consignadas na Constituição e nas Leis.

Neste começo de século, sem dúvida as graves violações de direitos humanos e a existência de grupos considerados vulneráveis continuam a ser um grave desafio à humanidade. A garantia dos direitos, a democracia e o desenvolvimento econômico e social, são os elementos que permitiriam prevenir conflitos e crises humanitárias de tanta envergadura, dentro de um processo de construção de iniciativas e modelos plurais de convivência.

No contexto da América Latina, o marco normativo brasileiro representa um avanço significativo, que fortalece um enfoque regional ancorado em princípios jurídicos, éticos e humanitários, enquanto que, infelizmente, outros Estados criaram recentemente barreiras e restrições para o recebimento de migrantes e refugiados. 

Resulta imperioso que o combate às causas que originam o refúgio, aliado à promoção da paz e da segurança na região, bem como das políticas de inclusão social e de ampliação da democracia, sejam os caminhos a trilhar conjuntamente pelos Estados latino-americanos, na perspectiva de uma unidade necessária em favor da vida, da dignidade e dos direitos humanos.

 A Cátedra Sérgio Vieira de Mello e sua realização e funcionamento na PUC de São Paulo representam mais um esforço nesse peculiar sentido. A condição humana demanda o esforço de todos para a justiça efetiva, em favor de quem mais precisa.


Realização


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo DTI-NMD