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6. Crítica à argumentação organicista sobre a psicose e a drogadição - Franklin Goldgrub
O acionamento "artificial" do sistema nervoso autônomo através de substâncias químicas altamente concentradas ocasiona uma reação global do organismo que elicia a postura comportamental associada à nova configuração instaurada. Uma diferença fundamental, porém, separa animais e humanos. No animal, a alteração química do autônomo gera um comportamento desvinculado da situação ambiental vigente apenas para evocar a resposta adequada a outra situação ambiental, relacionada à predominância do ramo ativado (simpático ou parasimpático).
No ser humano, sendo o comportamento função do discurso2, a nova configuração do autônomo fará emergir o conjunto de significações ao qual está associada, ao invés da "reação apropriada a outra situação ambiental". Esse "conjunto de significações" é necessariamente singular.
Em outras palavras, a alternação entre simpático e parasimpático nos animais está diretamente vinculada à situação ambiental vigente e expressa a base orgânica do repertório necessário à sobrevivência da espécie, enquanto no ser humano, diferentemente, a singularidade discursiva imprime à expressão somática dos sentimentos, atitudes e emoções seus incontáveis matizes e suas infinitas variações, que não constituem respostas a dada situação ambiental mas manifestações da subjetividade.
Os raciocínios anteriores têm por implicação a suposição de que, no ser humano, um dado conjunto de crenças (interpretações, discurso) é necessariamente acompanhado de determinada configuração de seu sistema nervoso autônomo. Essa conclusão nada mais é do que o reconhecimento da existência de uma contrapartida emocional/somática para qualquer estado "mental" (discursivo). Embora intrinsecamente vinculados, discurso, emoção e comportamento não estariam articulados através de uma correspondência simples, em virtude do fenômeno que a psicanálise designa pelo conceito recalque.
Faz-se necessário analisar mais detidamente certos aspectos da argumentação psiquiátrica, principalmente alguns dados que são apresentados como provas inquestionáveis de sua pertinência. A síndrome de abstinência, a tolerância e a drogadição experimental de animais de laboratório são para a teoria organicista da drogadição o que a supressão (eventual e temporária) de sintomas psicóticos por via medicamentosa representa para a teoria organicista da psicose. Esses mesmos fenômenos podem ser lidos de maneira muito diferente se for adotada a perspectiva oferecida pela hipótese acerca da relação entre discurso e sistema nervoso autônomo.
1) Síndrome de abstinência:
Postulamos que as reações da chamada síndrome de abstinência se devem em primeiro lugar à homeostase, propriedade bastante conhecida do sistema nervoso autônomo, e secundariamente aos efeitos da homeostase sobre a estrutura discursiva (de acordo com a hipótese de que a via discurso Ý SNA pode ser percorrida na "contramão" por intoxicação química). O que despista o observador é a intensidade dramática dos sintomas somáticos, invariavelmente acompanhados do anseio desesperado pela droga. É tentador interpretar tal situação como a manifestação orgânica da falta de uma substância que ter-se-ia tornado essencial ao metabolismo. A discinesia tardia permitirá questionar essa interpretação.
A discinesia tardia - movimentos involuntários, tanto na região oral (língua, lábios) como em outras partes da face e do corpo (espasmos, sacudidelas, tremores) - é atribuída pelos próprios psiquiatras e neurólogos ao "...uso prolongado de fortes agentes tranquilizantes empregados para controlar doenças mentais severas - neurolépticos como Thorazine, que atuam bloqueando os receptores de dopamina da membrana pós-sináptica do neurônio receptor3 ".
A causa exata da discinesia tardia é desconhecida, acrescenta Restak, mas tudo se passa como se, depois de um bloqueio duradouro, os receptores de dopamina se mostrassem extremamente sensíveis ao retorno da estimulação, o que ocorre quando o tratamento é interrompido. Não há como remediar a referida condição, que afeta de dez a vinte e cinco por cento da referida população. "Ironicamente, os pacientes freqüentemente melhoram temporariamente quando os neurolépticos são novamente prescritos em doses maiores4".
Não é preciso mais para afirmar que a discinesia tardia5 constitui um fenômeno plenamente enquadrável na categoria da assim chamada síndrome de abstinência. Cabe perguntar por que ela não foi reconhecida como tal. A resposta mais plausível é a de que o paciente psiquiátrico não expressa qualquer anseio pelo neuroléptico cuja administração foi suspensa.
O que não é de surpreender: a medicação é prescrita, ao contrário do psicofármaco de abuso, objeto de uma demanda compulsiva. A medicação contraria o que temos chamado de discurso, ao contrário da droga, cuja atração resulta exatamente da exacerbação de determinado 'estado de espírito' (crenças, humor), buscado ansiosamente por via química através do percurso, na contramão, do trajeto discurso Õ SNA.
Incidentalmente, essa também é a explicação do paradoxo relativo ao "tempo de impregnação". Enquanto a droga consumida voluntariamente causa efeito imediato, a medicação psiquiátrica tarda semanas em alterar a sintomatologia, apesar da imediatez do efeito fisiológico. Atribuiremos esse fato a que a medicação rema contra a corrente do discurso (delirante, eufórico ou disfórico). Aliás, não é incomum acontecer que a experiência inicial com a droga também falhe, embora a alteração fisiológica ocorrida no organismo seja igualmente constatável. A causa pode ser atribuída à resistência (culpa, vergonha, insegurança) do neófito, fenômeno ligado ao discurso.
A "síndrome de abstinência", no caso da drogadição, representa o desejo de voltar a experenciar as vivências (o discurso) associadas à configuração do autônomo produzida pelo agente psicoativo (estimulante ou calmante); ela também ostenta sintomas de discinesia tardia . Isso se deve a que a suspensão da intoxicação dá ocasião à manifestação reativa do outro ramo do autônomo, até então inibido. É portanto um efeito da homeostase, que fôra bloqueada pela ativação química contínua (quer do simpático ou do parasimpático).
Em virtude da homeostase, o ramo do autônomo que havia sido inibido quimicamente exibe um hiperfuncionamento, dando lugar a sintomas compensatórios de magnitude proporcional à intoxicação sofrida. Tais reações são tomadas por manifestações orgânicas da abstinência porque o dependente suplica pela droga, o que não acontece com o paciente psiquiátrico afetado pela discinesia tardia, embora do ponto de vista neurofisiológico a situação seja exatamente a mesma.
Portanto, o que diferencia ambas as condições é apenas o contraste entre o desejo do drogadito de recuperar a vivência discursiva associada à intoxicação, ou seja, às consequências psicológicas associadas a determinada forma de polarização do sistema nervoso autônomo, enquanto o paciente psiquiátrico não sente nenhuma saudade do estado de impregnação que lhe foi imposto. A síndrome de abstinência, se se quiser conservar a expressão, é puramente psíquica, sendo sua manifestação física nada mais do que a consequência da reação proporcionalmente intensa do ramo do SNA anteriormente inibido pela ação da droga ou da medicação.
2) A tolerância
O raciocínio anterior vale igualmente para o fenômeno da tolerância, que constitui mais um apoio importante para a hipótese discurso/SNA. Pode-se dizer que quanto mais intensa e duradoura for a estimulação de um dos ramos do autônomo, tanto mais forte será a tendência à reação em sentido oposto. Essa reação é responsável pela tolerância, que se expressa através da necessidade de ingerir doses cada vez maiores (da droga ou remédio), para obter o mesmo efeito que a quantidade inicial produzia. Assim, a tolerância decorre da homeostase, ou seja, da resposta do organismo à intoxicação, sendo proporcionalmente inversa à intensidade da mesma.
Uma pessoa em estado de preocupação extrema, cujo simpático permanece ativado praticamente de maneira ininterrupta, eventualmente recorrerá a tranqüilizantes. Nesse caso, quando a substância deixar de fazer efeito, advirá a reação em sentido oposto (ou seja, o "efeito rebote", que no caso é representado pela reativação proporcional do simpático, processo que por sua vez acarreta uma intensificação do estado discursivo designado por "extrema preocupação").
Na seqüência, para aceder novamente ao relaxamento, descanso ou sono, a pessoa precisará ingerir uma quantidade maior do calmante, sedativo, hipnótico, ansiolítico ou tranqüilizante, o que gerará uma resposta proporcionalmente inversa do simpático e portanto do discurso assim acionado na "contramão".
Cria-se então um círculo vicioso: o parasimpático somente será estimulado por doses cada vez maiores, que evocarão por sua vez uma reação progressivamente intensa do simpático, o que exigirá uma quantidade maior de calmantes, e assim sucessivamente. (Essa descrição pressupõe que as condições discursivas descritas pela expressão "extrema preocupação" permaneçam vigentes.
Se a crise for passageira, ou se por algum outro motivo a pessoa não mais apresentar o "estado de extrema preocupação" que teria originado todo o processo, a homeostase, monitorada por um discurso não mais tão conflitivo, voltará a exercer seu efeito regulador habitual).
A mesma explicação contempla a tolerância ligada à drogadição e ao tabagismo (quer este seja considerado como uma variante de drogadição ou não)6 . Como o próprio Restak assinala, a estimulação provocada pela nicotina (ação pró-simpática) é contrabalançada pelo seu efeito ansiolítico, eminentemente parasimpático.
Independentemente da plausibilidade de que certo tipo de receptores de acetilcolina, ocupados pela nicotina, possua ação ansiolítica (ou seja, integre circuitos parasimpáticos), o ato de fumar coloca em cena a oralidade. Dependendo da pessoa (isto é, de seu discurso)7 , o comportamento ingestivo possui uma propriedade tranqüilizadora.
Tal característica se somaria ao fator homeostático para explicar o efeito de tolerância imediato, expresso pelo ato de acender um cigarro no outro, na medida em que a ação calmante e a ação estimulante se contrabalançam e como que se anulam mutuamente. Essa interpretação é apoiada fortemente pela conhecida propensão a comer que costuma advir com a renúncia ao hábito de fumar.
3) A "drogadição" experimental em animais de laboratório
A interpretação dada pelo organicismo às curvas dos gráficos de auto-administração de substâncias psicoativas por parte de animais de laboratório é totalmente questionável.
Em primeiro lugar, há uma falha grave na descrição dos experimentos: a situação dos animais é total ou parcialmente omitida. O leitor não é informado se o sujeito se encontra em privação alimentar ou não, nem se foi submetido à anestesia parcial quando a seringa foi instalada em seu crânio e tampouco se o efeito da anestesia permanece constante durante o experimento ou se diminui de intensidade no decorrer do mesmo.
Em acréscimo, não há qualquer aferição prévia acerca do estado em que se encontra o sistema nervoso autônomo do sujeito na situação experimental. Para validar a hipótese da drogadição ou qualquer outra, seria imprescindível efetuar o respectivo registro. A imobilização forçada ocasiona uma resposta autônoma que deveria ser aferida e descrita; o mesmo, obviamente, acontece em virtude da interrupção da condução nervosa por anestesia ou no caso oposto da estimulação dolorosa.
Todos esses estados constituem variáveis cruciais para entender a resposta à droga. (Lembremos que as drogas utilizadas nos experimentos têm propriedades anestesiantes ou excitantes, às vezes ambas, em função da homeostase, e além disso, como no caso da anfetamina, diminuem ou suprimem a sensação de fome).
No caso da lesão induzida nas vias neuronais dopaminérgicas oriundas do tegmento ventral, citada por Restak, temos uma descrição mais precisa em relação à qual é possível propor uma hipótese alternativa à da "drogadição". Se a referida lesão tem por conseqüência a diminuição da produção de dopamina, e visto que a anfetamina é agonista da dopamina, o rato com carência de dopamina que se injeta anfetamina está agindo de maneira semelhante ao paciente parkinsoniano que toma L-Dopa - e até agora pelo menos tais pacientes não foram enquadrados na categoria de drogaditos.
Uma segunda crítica ao argumento da drogadição experimental provém da freqüente constatação de que os animais reagem diferentemente dos seres humanos em relação às drogas. Receptors apresenta alguns exemplos do gênero. Os porquinhos da Índia utilizados por Cade respondiam apenas à propriedade sedativa do lítio enquanto em seres humanos o sal é utilizado não somente em crises de mania mas também para estados de depressão.
Quando os neurólogos procuravam entender o quadro aparentemente parkinsoniano de "David", supuseram que ele havia ingerido uma mescla de MPPP e MPTP; a hipótese foi testada com cobaias, sem qualquer resultado8. Restak comenta: "Todas as tentativas de induzir a doença em laboratório falharam. Ninguém parece ter pensado na mais simples explicação do fato; que o rato pode não ser o animal certo para esse tipo de experimento. Isso só foi percebido três anos após a morte de David9".
Mais um exemplo: O Sernyl ocasionou manifestações de "...violência e confusão indistinguíveis da esquizofrenia10 " em uma porcentagem de pacientes que haviam sido anestesiados com fenciclidina; a fórmula permaneceu no mercado, porém, porque funciona muito bem para sedar animais ferozes quando necessário. Em relação às pesquisas sobre ansiedade em animais e humanos, Restak dá mostras de perceber bem a diferença entre ambos: "Visto que os animais - usualmente ratos e macacos - reagem apenas a perigo real ou a ameaça de perigo real, os pesquisadores eliciaram o equivalente à ansiedade criando lesões no hipotálamo ventromedial, uma área de integração para reações do autonômo que acompanham as emoções.
Os animais responderam com hipersensibilidade - o equivalente animal da ansiedade - a choques elétricos de pequena intensidade, superpopulação ou mesmo manipulação normal11 ".
Um dos sentimentos mais freqüentemente responsabilizados pela drogadição é precisamente a ansiedade incontrolável que decorre da insegurança, uma sensação impalpável de ameaça, característica exclusiva da humanidade, cujo equivalente próximo, nas próprias palavras de Kramer, o animal somente poderia experenciar diante de um perigo concreto.
No estado de natureza, é possível constatar um comportamento equivalente à expressão motora do medo (fuga perante estimulação aversiva), mas não à ansiedade. A destruição experimental de estruturas neurológicas relacionadas ao autônomo - cumprindo possivelmente funções 'simpáticas' de defesa e/ou fuga - aumentaria a vulnerabilidade do animal a situações potencialmente ameaçadoras. Mas tais situações, (choques elétricos, superpopulação, manipulação), em todo caso, não são "imaginárias"; elas estão efetivamente presentes.
Eis aí um reconhecimento importante. Restak, porém, não extrai as respectivas implicações, incorrendo mais uma vez em contradição quando endossa a existência da "drogadição" em animais. Efetivamente, em nenhum momento ele confronta as evidências relativas às diferentes respostas de animais e humanos aos psicotrópicos com a hipótese da "dependência química" condicionada em laboratório. Menos ainda leva em conta a possibilidade de que a "síndrome de abstinência" dos animais possa ter explicações bem mais parcimoniosas do que a da adição.
Um exemplo: Receptors descreve a intensa "crise de abstinência" produzida pelo naloxone, antagonista potente dos opiáceos, à qual o sujeito experimental reage com um comportamento que é interpretado como análogo ao do dependente químico, ou seja, administrando-se freneticamente a droga (morfina). Contudo, é mais provável que a empinada curva de resposta resulte apenas da hiperestesia induzida pelo naloxone.
A evidência de que o naloxone provoca um efeito oposto ao dos opiáceos permite conjecturar que se os últimos anestesiam, o primeiro rebaixa correspondentemente o limiar a partir do qual a estimulação se torna dolorosa. Não surpreende então que a partir da intoxicação por naloxone o animal tenha um comportamento de esquiva e aperte repetidamente o pedal que aciona a seringa, "visando" ao retorno do estado menos aversivo ao qual foi condicionado previamente. Ou seja, o naloxone teria um papel análogo ao do estímulo doloroso nos condicionamentos skinnerianos.
A psicologia comportamental mediu a freqüência dos comportamentos de esquiva em situações experimentais nas quais o rato é condicionado a apertar a barra que interrompe temporariamente o circuito elétrico responsável pelos choques que lhe são aplicados. (Aliás, é preciso acrescentar que ao contrário da cuidadosa descrição de variáveis costumeiramente feita pelos psicológos behavioristas, Restak omite as condições em que foi realizado o experimento do naloxone12 ; nada é dito sobre o estado fisiológico do animal nem sobre estimulação dolorosa, anestesia, privação alimentar, lesão, etc.)
Por outro lado, é interessante constatar, com referência à pesquisa farmacológica no campo da medicação psiquiátrica, que a experimentação com animais jamais é tomada diretamente como uma evidência acerca da ação psíquica da droga. A esse respeito todos os autores da área são unânimes. Escrevendo sobre tais estudos, Garrabé observa: "...pensou-se que uma ação não acontecia sem a outra13 e que se podia caracterizar e medir o efeito neuroléptico pela importância das manifestações extrapiramidais, em particular na experimentação animal, já que é evidente que nunca se pôde provocar artificialmente no animal uma esquizofrenia experimental que permitisse medir o efeito propriamente antipsicótico de uma droga14 ".
Trata-se de um ponto importante porque mostra mais uma vez a fragilidade do arcabouço lógico no qual se apóia a psiquiatria biológica. Se, de acordo com o organicismo, a psicose e a drogadição são fenômenos primariamente biológicos, reciprocamente referentes, e se há consenso em relação à impossibilidade de induzir experimentalmente sintomas psicóticos em animais15 , que raciocínio justificaria a suposição de que a drogadição pode ser reproduzida em cobaias? Tal afirmação parece inconciliável com a premissa de que drogadição e psicose possuem uma etiologia comum, situada em desequilíbrios neurofisiológicos.
A saída para o impasse seria hipotetizar que a psicose é exclusivamente humana, mas a drogadição não. Ou seja, enquanto a psicose exibiria alguns aspectos psicológicos, por algum motivo até agora ignorado a drogadição seria puramente orgânica. Tal raciocínio, porém, além da sua altíssima improbabilidade, incorreria em nova contradição, porque freqüentemente se atribui a certas drogas o desencadeamento de sintomas psicóticos, conforme fartamente documentado por Receptors.
Portanto, às críticas e questionamentos anteriores em relação à hipótese da drogadição experimental, pode-se acrescentar que não há como como fugir da conclusão de que a afirmação segundo a qual a drogadição, ao contrário da psicose, é replicável em laboratório, constitui uma contradição conceitual da argumentação organicista.
Efetivamente, se de acordo com a hipótese da drogadição experimental a curva de auto-administração de psicotrópicos demonstra a diabólica atração dos ratos pela prisão química denominada "centro neurológico do prazer", uma análise mais parcimoniosa faz pensar que essa resposta pode muito bem não passar de um efeito do reforçamento posisitivo, decorrente do próprio procedimento experimental.
Estimulantes como anfetamina e cocaína são eficazes em situações de privação alimentar, imobilização forçada ou lesão induzida, das quais o animal se esquiva acionando quimica e adaptativamente o ramo simpático do autônomo. (Aliás, confinado numa espécie de solitária e impedido de enfrentar a situação com seu repertório e seus reflexos, privado de movimento e como que numa camisa de força, que outra alternativa lhe restaria?).
Isso lembra uma situação constrangedora ocorrida durante as pesquisas sobre a etiologia da esquizofrenia na década de 60. A entusiástica proclamação de que as moléculas responsáveis pelo delírio haviam sido identificadas desvaneceu-se rapidamente quando se constatou que as excreções dos esquizofrênicos só eram quimicamente diferentes das demais pessoas porque continham metabolitos da medicação ministrada aos pacientes. Similarmente, as próprias condições em que são realizados os experimentos de drogadição com animais explicam suficientemente os "impactantes" resultados alardeados16 .
De um ponto de vista conceitual, cabe lembrar que, para a psicanálise, a diferença que separa animais e humanos seria detectável no próprio nível dos fundamentos. Em relação aos animais valeria a série: Instinto (reflexo incondicionado) Õ necessidade Õ objeto determinado Õ comportamento determinado Õ saciação (ou frustração); nos humanos teríamos: pulsão Õ desejo Õ objeto indeterminado Õ comportamento indeterminado Õ prazer (ou desprazer). Em suma, o animal seria regido pelo binômio orgânico/ambiental, enquanto o ser humano obedece ao sentido, fenômeno decorrente da linguagem. E se ainda fizesse falta, mencione-se uma obviedade que o organicismo curiosamente não leva em conta: a drogadição e a loucura jamais foram encontrados in natura.
4) O fator genético
A análise crítica dos estudos relativos à etiologia genética da loucura é feita em primeiro lugar pelos próprios autores organicistas que, ao contrário de Restak, examinam os respectivos dados com rigor e isenção. Na cuidadosa revisão empreendida por Gustavo Turecki17 , cuja perspectiva é claramente a da psiquiatria biológica, encontramos objeções, questionamentos e ressalvas com referência a cada uma das hipóteses derivadas das investigações sobre a hereditariedade da psicose, cujo número, como ele mesmo assinala, é considerável18 .
Turecki analisa as diversas linhas de pesquisa estabelecidas para descobrir a relação entre os loci cromossômicos e a propensão a delirar. Os primeiros estudos visando aferir fatores genéticos compararam a incidência da morbidez em famílias e na população em geral, mediram a taxa da doença entre irmãos gêmeos que permaneceram com seus pais biológicos ou foram adotados, bem como procederam a exames de segregação19.
Tais pesquisas produziram resultados controvertidos, cujas análises permitem interpretações divergentes e de difícil compatibilização. Essa constatação não diminui a confiança de Turecki na pertinência da referida abordagem. A respeito da pesquisa sobre gêmeos ele escreve: "A simples inspeção desses resultados deixa claro que não há um consenso entre os diferentes estudos; no entanto, de um modo geral, todos apontam para uma substancial contribuição da genética à etiologia da esquizofrenia20 ".
Examinando o mesmo material, Diaz chega a uma conclusão diferente: "Estes experimentos de adoção não só mostram, para cualquer observador imparcial, que existe um peso genético modesto na causa do que quer que faculte o diagnóstico de esquizofrenia, mas também que as cifras implicam a contribuição, também causal, de fatores ambientais desconhecidos. Se os mesmos experimentos houvessem sido feitos com doenças de etiologia comprovadamente genética, os dados coincidentes teriam sido muito maiores21" .
Além das investigações destinadas a medir comparativamente a ocorrência de sintomas esquizofrênicos entre os parentes do probando e na população em geral, segundo a suposição de que a aferição de uma correlação positiva no âmbito familiar demonstraria a importância da hereditariedade22 e permitiria determinar sua extensão, os avanços da engenharia genética forneceram à psiquiatria biológica os meios para elaborar projetos experimentais mais sofisticados, destinados a identificar as causas da esquizofrenia nos próprios cromossomos, através de sondas que mergulham no DNA.
Não será possível descrever em detalhe tais pesquisas, devido ao seu grau de sofisticação. Contudo, é interessante entrar em contato com a respectiva avaliação, feita por um cientista plenamente comprometido com tal enfoque. No que se refere aos estudos de ligação, baseados na evidência empírica de que certos traços tem alta probabilidade de ocorrer conjuntamente no mesmo fenótipo devido à vizinhança entre os respectivos gens, Turecki escreve: "Um número considerável de estudos de ligação tem sido conduzidos em esquizofrenia nas últimas décadas; entretanto, conclusões consistentes são difíceis de formular em vista da falta de reprodutibilidade, tanto dos estudos realizados por diferentes grupos, como das reavaliações do mesmo estudo feita pelo mesmo grupo.
De modo geral, estudos de ligação em traços complexos devem ser interpretados com cautela, posto que com o número de famílias usualmente utilizado (mesmo nos maiores estudos) o poder estatístico desse método é bastante reduzido para detectar genes que não apresentem um efeito maior23 ".
Turecki refere-se especificamente a um estudo bastante conhecido (Sherrington et al., l988), que havia implicado uma região do cromossomo 524 na suscetibilidade à esquizofrenia, a partir dos dados obtidos com sete famílias, islandesas e britânicas. "...os resultados obtidos por Sherrington não foram confirmados independentemente, apesar do grande número de estudos realizados focalizando esta região do cromossomo 5 " (...)
Tal situação, admite Turecki, é bastante comum nos estudos de genética psiquiátrica. Os experimentos raramente são ratificados por grupos independentes ou pelo próprio grupo que havia proposto inicialmente a hipótese. "Situações semelhantes foram também observadas em estudo de ligação com o distúrbio bipolar25 ". Preocupado com esse panorama, Turecki se pergunta pela interpretação atribuível à "... falta de replicação e à diminuição ou perda de significância em reanálises posteriores do mesmo material clínico26 ".
A esse respeito ele considera uma série de fatores, entre os quais "...a ocorrência de erros na realização do estudo, tanto genotípicos como fenotípicos". No que se refere à hipótese de Sherrigton, sua avaliação final é a seguinte: "Assim, atualmente, não mais se acredita que essa região do cromossomo 5 contenha um locus que confira predisposição à esquizofrenia27 ".
A passagem do entusiasmo à decepção caracteriza um padrão que se repete com freqüência nas investigações organicistas. Qualquer semelhança com as pesquisas já referidas sobre neurotransmissores não é mera coincidência. Verifica-se igualmente que quando a hipótese promissora é abandonada, a notícia deixa de ser encaminhada às redações28 .
Como nas guerras em que o comando militar decide o que deve e o que não deve ser publicado, os jornais recebem dos serviços de divulgação das instituições de pesquisa apenas comunicados edificantes, destinados a manter alta a moral do público... e dos orgãos financiadores. Turecki reconhece o problema: "De modo geral o panorama é semelhante àquele visto anteriormente em estudos de ligação com outras regiões do genoma em esquizofrenia, assim como em outros distúrbios psiquiátricos e traços complexos.
Ou seja, alguns estudos comunicam resultados positivos, outros negativos, porém, a grande dificuldade permanece: a interpretação e a integração dos resultados, principalmente os positivos". À ausência de um quadro teórico que torne os dados coerentes se acrescenta outra dificuldade, ainda mais significativa: "A divergência metodológica encontrada dentre os diferentes estudos é considerável e transcende os limites impostos pelo uso de diversas classificações fenotípicas29 ".
Mas o artigo de Turecki não poderia restringir-se à corajosa constatação dos impasses. Uma nota de esperança é deixada para o final. Os estudos de associação, linha de pesquisa recentemente desenvolvida em neurologia, identificaram as expansões de trinucleotídeos, uma mutação caracterizada por "...segmentos polimórficos constituídos por repetições de três bases, cujo número em afetados é superior àquele encontrado na população normal30 ".
O fator já foi implicado na hereditariedade de algumas afecções cerebrais hereditárias como a coréia de Huntington, a distrofia miotônica e a doença de Kennedy, entre outras. Seguindo uma estratégia habitual nesse tipo de pesquisa, as hipóteses cuja probabilidade de comprovação parece alta em relação às afecções neurológicas são extrapoladas para o campo das psicoses. Conseqüentemente, as expansões de trinucleotídeos estão sendo estudadas agora em relação à esquizofrenia.
Apesar da cautela, Turecki assinala que as últimas pesquisas têm revelado uma correlação entre o tamanho do alelo e a severidade do quadro esquizofrênico. "Interessante é a observação de que os autores31 encontraram uma associação entre alelos curtos e quadros de esquizofrenia que respondem bem ao tratamento com neurolépticos e uma correlação positiva entre o tamanho do alelo e a severidade da esquizofrenia avaliada por uma série de testes neuropsicológicos.
Essa associação é também interessante, já que os fatores de transcrição são genes candidatos particularmente importantes em vista da hipótese de que a esquizofrenia seria resultante de um transtorno do desenvolvimento nervoso32 ".
O que quer que se possa pensar da linha de pesquisa referida no parágrafo anterior, é interessante consultar outra análise, também proveniente do organicismo, embora atípica em relação ao que é habitual na psiquiatria biológica. O histórico das pesquisas de psiquiatria genética feito por Diaz tem início pela menção à tabela elaborada por Zerbin-Rudin, cujos valores atribuem aos gêmeos monozigóticos uma taxa de concordância de 50%, contra l4 a 19% dos dizigóticos.
Dez anos depois, porém, estudando o risco da patologia em parentes de primeiro grau de pacientes esquizofrênicos, Abrams e Taylor encontraram outra taxa de morbosidade, bem diferente: 1,61%, que não difere do acaso. Diaz refere que esta última pesquisa "...utilizou métodos muito estritos de avaliação (critérios diagnósticos operacionais e precisos, seleção prospectiva de probandos e diagnóstico cego e independente)33 ".
A conclusão a extrair desse estudo é que a esquizofrenia não estaria ligada a qualquer tipo de transmissão, seja genética ou ambiental (isto é, familiar).
Discrepâncias tão acentuadas colocam de imediato a questão de como interpretar dados tão contraditórios. Na verdade, o problema é ainda mais grave, porque os resultados das pesquisas - quer favoráveis ou não à hipótese genética - raramente se repetem.
Mesmo assim, pode-se dizer que na maioria dos estudos a comparação entre gêmeos MZ e DZ costuma revelar uma incidência maior de sintomas no primeiro grupo; em compensação, a evidência relativa ao confronto entre gêmeos DZ e irmãos não gemelares registra maior presença de traços esquizofrênicos em dizigóticos, apontando assim para a importância do fator ambiental.
Os defensores da hipótese genética citam os trabalhos pioneiros de Kallmann da década de 30, cuja amostragem é a maior que se conhece em estudos do gênero (cerca de mil pares de gêmeos) e que apresenta resultados igualmente impressionantes: concordância de 86% entre monozigóticos e de apenas 15% entre dizigóticos. Tais cifras, porém, não só jamais puderam ser replicadas como foram posteriormente questionadas em virtude da metodologia da pesquisa e da falta de isenção de seu autor.
Continuação...