1. Este artigo aborda uma questão que é a via crucis de todos que pesquisam na área da Sociologia ou da Psicologia da Religião. Refiro-me ao problema da passagem de construtos teóricos herdados, em larga escala, dos norte-americanos, para uma noção operacional adaptada ao que se dá entre nós, no Brasil. Este problema é especialmente patente quando se analisa a conversão de brasileiros a religiões de tradição oriental, pois este tipo de conversão tem provavelmente traços peculiares, distintos dos observados em conversões que acontecem entre religiões ocidentais. Qualquer pesquisador que enverede por esta área temática terá que se pôr esta pergunta-chave: a "entrada" de brasileiros em uma religião oriental não suporia desconstruções e reconstruções mais drásticas do que as observadas na passagem, por exemplo, de um brasileiro do catolicismo ao protestantismo? Razão: nesse último caso, a pessoa continua dentro de um só e mesmo pattern cultural: o ocidental e cristão. Já nas conversões de brasileiros a religiões orientais não é isto o que se dá. Há razões para supor distinções entre um e outro caso.
Ultimamente têm aumentado as pesquisas (PAIVA, 2002; SHOJI, 2002; SILVA, 2002)[1] que tentam oferecer uma visão mais acurada deste processo. Neste artigo me referirei de modo especial ao esforço desses pesquisadores, com atenção a um estudo de Andrada e Silva, que conheço melhor. Essa pesquisadora investiga há três anos a conversão de brasileiros a três grupos do Budismo tibetano. Como se sabe, esta modalidade chegou bastante recentemente ao nosso país, mas está em expansão. Já seriam cerca de 50.000 seus praticantes entre nós. O Budismo tibetano, deita raízes em tradições criadas originalmente em mosteiros que cultivam ensinamentos e exercícios milenares. O Dharma exige uma notável disciplina e entrega à tarefa da iluminação interior. Vivê-lo e praticá-lo em cidades como São Paulo, no contexto de grupos de paulistas de classe média, mesmo que sob a orientação de monges tibetanos, representa uma experiência religiosa complexa, ainda quase desconhecida do ponto de vista científico.
Ao que tudo indica, está-se ante um fenômeno psicossocial com originalidade própria. Ele é distinto, por exemplo, do que se deu a quando dos primeiros contatos de brasileiros com o Budismo de origem japonesa (cf. SHOJI, 2002, USARKI, 2002, ROCHA, 2000)[2]. As conversões de brasileiros ao Budismo japonês deram-se em várias ondas e se articularam sob diferentes formas que são descritas pelos especialistas[3]. As primeiras conversões encontravam na colônia nipônica seu principal suporte e intermediação e se faziam sociologicamente mais definidas e vigorosas na medida em que os nisseis se tornavam culturalmente brasileiros, integrando-se na sociedade, aprendendo a língua e os costumes e assimilando elementos da religiosidade local.
O que acontece na "passagem" ao Budismo tibetano, porém, está ainda por ser estudado. A pesquisa de Vera Andrada e Silva o mostra. Mas, como todas as pesquisas do gênero, ela teve de enfrentar o desafio teórico-metodológico de elaborar um conceito psicossocial operacional que atendesse a duas exigências: de um lado a de não ignorar os conceitos vigentes na Psicologia e da sociologia da Religião -- ciências com linguagem e códigos próprios – e, de outro, de encontrar um modelo de aproximação adequado ao seu objeto de pesquisa que não é recoberto pelos estudos já publicados, recentemente ou em passado mais distante. Daí a utilidade de uma explicitação do itinerário teórico-metodológico que um pesquisador nacional precisa percorrer para analisar cientificamente a conversão de brasileiros a religiões orientais, como o posso perceber no estudo de Andrada e Silva, exatamente por ter como objeto o Budismo tibetano[4].
2. São muitos os que julgam poder constatar no atual horizonte da cultura brasileira um crescente aumento da influência do Oriente. Em parte são adaptações e assimilações de tipo "light", "com ênfase na auto-ajuda" como dizia recentemente uma revista de circulação nacional[5], comentando exatamente a expansão do Budismo tibetano em terras brasileiras. Esta é, por exemplo, a opinião de Shoji (SHOJI, 2002, parágrafo 3.3.2.) ao falar de um "Budismo de resultados" que, em contrate com o Budismo mais intelectualizado, indicaria um padrão popular de adaptação, acomodado ao "catolicismo mágico" de que falam alguns antropólogos brasileiros da religião (por exemplo, MONTES, 1998: 103)[6].
Contudo, autores do peso de Colin Campbell[7], falam de um processo de orientalização bem mais profundo que estaria introduzindo (talvez, melhor dizendo, reacendendo) um paradigma novo no ocidente cristão: "não quero me referir à introdução e à difusão no Ocidente de produtos reconhecidamente orientais, sejam essas mercadorias, tais como temperos, iogurtes e seda, práticas, tais como o ioga ou acuputunra, ou mesmo um sistema religioso completo como Hinduísmo ou Budismo (...) estou usando o termo ‘orientalização’ para referir-me a algo mais radical e mais amplo... (afirmo que) o paradigma cultural ou teodicéia que tem sustentado a prática e o pensamento ocidental por cerca de dois mil anos está sofrendo um processo de substituição – e com toda probabilidade terá sido substituído, quando entrarmos no próximo milênio – pelo paradigma que tradicionalmente caracterizou o Oriente"
Mesmo sem assumir in totum a tese ousada de Campbell, julgo existir nela um quê de verdade. A aceitação encontrada pelo Budismo tibetano por brasileiros poderia ser vista como uma prova da veracidade das hipóteses do sociólogo inglês. Investigações como a de Vera Andrada e outros o demonstram, ao menos, até certo ponto, permitindo, porém, perceber nuances e chegar a distinções mais refinadas entre a moda "budista" e as variantes do Budismo, assim como este vai se configurando dentro do campo religioso brasileiro, que é como uma esponja que tudo absorve e recondiciona à sua maneira.
Conceitos como os de conversão e pertença[8] – adotados pela psicologia social e pela psicossociologia – precisam, portanto, de certos esclarecimentos preliminares para serem usados com propriedade e evitar o risco de mal entendidos. O psicólogo chinês Hong, falando da psicologia budista em geral, o nota, ao escrever que "uma das mais sérias limitações metodológicas que a psicologia do Budismo pode experimentar é a ter uma aspiração de universalidade quanto aos seus objetivos, meios e sentidos do Budismo e da experiência budista. O campo de estudos (da psicologia budista) não deve nem pode negligenciar e bagatelizar os relacionamentos interdependentes existentes entre as diferentes doutrinas adotadas pelas diversas seitas budistas e pelos budistas enquanto indivíduos em suas práticas cotidianas no interno de suas fronteiras socio-culturais"
O que diz Hong demonstra a necessidade de se construir no futuro uma psicologia do Budismo melhor elaborada, situada dentro do universum histórico budista em seu enlace com as culturas e religiões do ocidente. No momento, estamos longe de ter alcançado este estágio de evolução. O pesquisador continua se vendo coagido a servir-se dos instrumentos teóricos e metodológicos que lhe são oferecidos pelas Ciências da Religião contemporâneas. Este uso deve, no entanto, ser criterioso e exige cuidados especiais.
Existem atualmente na Psicologia Social da Religião " dois tipos básicos de aproximação ao fenômeno da conversão e da pertença religiosa. O primeiro, com origem no século XIX, é o que privilegia o que se passa "no interior" do indivíduo que se converte e passa a aderir a um dado grupo religioso. O segundo, sem negligenciar a via considerada pelo primeiro grupo, presta maior atenção ao que se observa no nível psico-grupal e psico-sociológico"[9].
Estudiosos[10] como E.D. Starbuck, J.H. Leuba, nos Estados Unidos, ou K. Girgensohn, na Europa de língua alemã, exemplificam bem os modelos e tentativas clássicas de aproximação do primeiro tipo às vivências de um convertido. Seu principal centro de interesse estava no que o sujeito experimentava dentro de si mesmo. É’ provavelmente essa a razão pela qual estes pioneiros --- e muito especialmente W. James -- colocam o tema da experiência subjetiva do sagrado como sendo uma prioridade no estudo psicológico do comportamento religioso. Este acento posto na subjetividade se reflete em suas concepções sobre a conversão. Eles a vêm, via de regra, como um poderoso jogo de motivações, necessidades e percepções psicológicas que acontecem na intimidade pessoal do convertido ou, na clássica definição de James "são sentimentos, atos e experiências do indivíduo humano, em sua solidão". A conversão, para J.H. Leuba, tem íntima relação com "uma experiência emocional que renova as potências vitais de uma pessoa. Trata-se de um estado emocional que transmite resistência, ou prazer, ou sentido". Assim, a experiência do sagrado vivida no movimento da conversão tem "uma utilidade subjetiva e (essa) "é a chave de seu significado". Os pesquisadores norte-americanos, seguindo essa trilha aberta por James e Leuba, tendem até hoje a aceitar o uso de palavras do vocabulário religioso cristão (tais como, renascimento – rebirth - ou reavivamento – revival -) para descrever o que se passa na "alma" do convertido. Será isto o que se dá com um brasileiro que "passa" ao Budismo tibetano?
Para esse posicionamento dos primeiros psicólogos da religião, contribuiu, sem dúvida, o fato de o protestantismo norte-americano estar passando, na virada do século XIX, por transformações culturais de peso. Verificava-se nos Estados Unidos uma mudança econômica de grande porte. Era a fase inicial da urbanização que trazia, por sua vez, um questionamento às igrejas constituídas e gerava um desprendimento das pessoas em relação às suas práticas e doutrinas. Daí o surgimento de um sem número de "seitas", marcadas pela convivência intensa dos membros, pelo ardor missionário e pelo sentido de um toque direto de Deus ou do sagrado. É neste instante cultural que tem início a atração ocidental mais explícita pelas mensagens que vinham, com cada vez maior intensidade e pregnância, do Oriente.
Disciplinas e teorias desenvolvidas na primeira metade do século XX, como a psicanálise, o introspeccionismo e a Gestalt, devido à sua contextuação européia e aos seus pressupostos e pontos de partida[11], caminharam na direção de um interesse preferencial pelos aspectos perceptivos e psicoafetivos (inconscientes, sobretudo) da conversão. Com o amadurecimento e complexificação da ciência psicológica, cada uma destas escolas trilhou um caminho autônomo, descolando-se, parcialmente, das posicões filosóficas e teológicas do idealismo, do positivismo e da fenomenologia. Nas décadas seguintes, porém, com o avanço da sociologia e da antropologia, a preocupação dos pesquisadores voltou-se para aspectos de natureza psicossocial e psicossociológica. Era um movimento necessário para escapar à tendência psicologizante de certas abordagens. Como resultado, após a segunda guerra mundial, surgiram teorias gerais mais compreensivas e abrangentes que, mesmo reconhecendo a importância dos processos idiossincráticos presentes na conversão e na adesão a um grupo religioso, não perdiam de vista as relações que o comportamento religioso da pessoa tem com o pluralismo das culturas e a feição "peregrina"[12] que a religiosidade globalizada vai assumindo no contexto da "aldeia global" de hoje. São câmbios de época que obrigam os estudiosos da conversão religiosa a se preocuparem com os aspectos claramente históricos, sociológicos e culturais que influenciam as religiões e incluem alguns mecanismos relacionais, organizacionais e grupais que pesam na adesão inicial e na posterior permanência do convertido em um dado grupo religioso.
Certos conceitos, como os de "coesão social", "sentimento de pertença" , "grupos de referência", "identidade", "crise religiosa", "personalidade religiosa", "socialização religiosa", etc só podem ser entendidos se postos nesta perspectiva psicossocial mais integrada que considera simultâneamente o sociológico[13] e o psicológico, incluída a psicanálise. É nesse contexto que Carrier diz[14] que no estudo do comportamento religioso"as atitudes e pertenças sociais nos levam a tomar em consideração dois aspectos complementares na interação entre a pessoa e o grupo com o qual essa se identifica. De um lado, a pertença pode ser vista como uma 'fonte' da qual têm origem as atitudes. ... (Isto) tem um significado evidente, devido ao caráter ‘compreensivo’ dos comportamentos religiosos, pois, como escreve Stoetzel, ‘a influência da afiliação religiosa se faz sentir sobre as atitudes em geral’ ... Mas há um segundo ponto de vista que toca mais de perto ainda o fenômeno da pertença...consiste na consideração da pertença como objeto da atitude, ou melhor ainda, como uma 'atitude específica'.
A pertença e a conversão não devem, contudo, ser entendidas como origem e fonte única dos comportamentos, mas sim -- e talvez antes, até -- como uma "atitude fundamental do convertido em relação ao seu novo grupo de pertença". É daí que Carrier conclui que
"a pertença equivale a uma ‘disposição psicossociológica’; deve ser concebida como ‘uma estruturação estável dos processos perceptivos, motivacionais e emocionais’ que são exercidos pelo novo membro inserção em relação a esse seu grupo de inserção".
Pode-se concluir do acima dito que o pesquisador não deve ver a conversão e a pertença desde categorias classificatórias calcadas em comportamentos externos, como faziam alguns dos primeiros sociólogos da religião, mas como uma realidade psicossocial complexa da qual faz parte integral o itinerário pessoal do convertido. O esforço, as contradições e avanços das pessoas são momentos integrantes do processo maior. É’ por essa razão que Geraldo José de Paiva, em sua leitura da "religião dos cientistas"[15], se diz impressionado com uma observação que encontrou em um livro de François Dolto sobre a "fé nômade": é a palavra "itinerário". Julgo tal termo apto para designar o que Vera Andrada quis pesquisar nos sujeitos por ela entrevistados. Seu objetivo era o de descobrir o "itinerário" ou "jornada" pessoal deles no interior da galáxia budista. O termo "itinerário" tem uma conotação psicológica com um tipo de inquietação e busca anterior que Paiva chama de "inquieta itinerância". Não pode ser desvinculado da vivência eminentemente pessoal que o convertido tem da própria experiência de encontro/desencontro com o que, por vezes, de modo intuitivo e confuso, está buscando. Escreve Paiva, neste sentido: "O vocábulo (itinerário) sugere caminho, etapas, movimento, paradas, retomadas, possíveis retornos, transumâncias, desvios de rota e, eventualmente, o fim da jornada. Com essa palavra quero, então, indicar que, no encontro/desencontro do cientista [nos casos estudados por Andrada, do convertido] com a religião, não há um roteiro predeterminado e nem um termo necessário, ficando a pesquisa aberta, com a possibilidade de novos desdobramentos".
O estudo de Andrada, que é um passo preliminar de um esforço que carece de inúmeras complementações, quer, no fundo, é captar e descrever este itinerário pessoal dos convertidos ao Budismo tibetano. Ela investiga e descreve itinerários vividos por brasileiros que entram pessoalmente em contato com três distintos grupos do Budismo tibetano. Seu objetivo é o chegar a levantar as caraterísticas comuns e os aspectos idiossincráticos de cada pessoa ao se fazer membro vivo de uma "sangha", comunidade que lhe dá acesso aos comentários das sutras e às meditações e práticas tântricas destinadas a abrir ao neófito um caminho sapiencial bem diverso do trilhado por ele em sua socialização religiosa familiar. O que se quer colher é o itinerário percorrido pela pessoa antes, durante e depois de seu progressivo mergulho no Dharma. Ou seja, investiga-se o que Carrier, na linguagem da psicossociologia, chama de "a estrutura psicológica de sua disposição atitudinal". Esta se associa a um "comportamento específico" de cunho discipular (donde a importância do guru no processo). Desta maneira o convertido , através de um percurso psicossocial reconhecível, se torna um "budista tibetano", amoldando seu percurso interior às propostas do grupo A, B ou C.
Quero situar a conversão religiosa na atual dinâmica socio-religiosa brasileira. Existem hoje muitos textos de qualidade a respeito das religiões no Brasil. Eles oferecem uma boa visão geral das mesmas[16]. Não é minha intenção entrar em uma ampla apresentação das conjunturas, cenários e agentes que caracterizam este quadro tão colorido.
Parto da premissa elementar da existência de uma intensa mobilidade e pluralidade dentro deste campo. A chegada ao Brasil do budismo tibetano em suas várias vertentes constitui um aspecto relativamente novo. Não obstante seja ainda bastante restrito numericamente ele é significativo do ponto de vista analítico e qualitativo.
O Brasil atravessa uma onda conversionista sem precedentes. O brasileiro médio nunca se distinguiu pela sua adesão à essa ou aquela igreja. Seu comportamento religioso sempre foi de tipo de "bricollage". A identidade religiosa do brasileiro costuma ser um mix por ele mesmo construído com materiais retirados de procedências bem diferenciadas, mas que para ele não se apresentam como contraditórias. A razão de tal fato talvez esteja no caráter majoritariamente cultural de um catolicismo popular tecido com materiais de várias culturas de base. Com a entrada das religiões protestantes, no século XIX, criaram-se parâmetros e exigências de pertença mais definidos. Também dentro da religião dominante – o catolicismo -- deram-se movimentos pastorais que levaram as elites religiosas deste agrupamento majoritário a uma maior consciência de pertença e, por vezes, a experiências diretas de conversão em massa. Manteve-se, no entanto, a tendência geral à bricolagem religiosa, que dá margem a uma organização mais livre da identidade religiosa pessoal[17].
O fato é que, a cada ano, milhões de pessoas se convertem no Brasil a uma "nova" religião. Essa conversão verifica-se na maior parte das vezes dentro da main stream religiosa e cultural. É’ oportuno mencionar diversas possibilidades neste trânsito. Por vezes, a pessoa passa de uma a outra igreja cristã. Outras, permanecendo na mesma igreja, abandona uma certa maneira de viver e praticar a fé, em favor de outra, mais intensa e pervadente. Outras, ainda, a ruptura de paradigmas se mostra mais radical, embora também dentro do referencial cultural típico do brasileiro. Há, por exemplo, uma passagem silenciosa de pessoas das classes médias urbanas para uma postura de busca (mais espiritualizante que religiosa) que se processa fora das igrejas institucionais e das religiões e movimentos constituídos. Nessa linha pode-se mencionar o que globalmente pode ser chamado de Nova Era. Mas sempre que existe um movimento mais profundo de reorganização da pessoa pode-se legitimamente falar de processos que merecem o nome de "conversão", pois as pessoas passam por significativas transformações no nível da personalidade. No caso da Nova Era, o processo parece ser de cunho mais individualizado e individualista[18]. Não sofre necessariamente a influência de grupos organizados com tradições e práticas definidas. A cultura dominante das classes médias secularizadas está exposta a uma irradiação efetiva – nem sempre formal – de componentes mais ou menos religiosos que constituem uma espécie de camada de ozônio posta sobre nossas cabeças. E’ uma situação espiritual nova[19], tornada possível por vários e complexos fatores, entre os quais o fenômeno urbano e a ação da mídia. Mesmo sendo parcialmente "invisível", como mostra Luckman[20], esta situação pode levar a alterações significativas no nível pessoal e socio-grupal. Na situação de anomia, pluralismo e transição criada pelo consumo e pelo "mercado"[21] de ofertas religiosas, os indivíduos parecem experimentar processos de busca que afetam sua emoção, seus valores e seu comportamento, recentrando-os, de alguma forma, no religioso e no espiritual. O religioso readquire uma função reordenadora da percepção de si (auto-imagem, senso de identidade) e do mundo (sentido e opções de vida) que havia sido (parcialmente, ao menos) perdida com o desencantamento do mundo provocado ali onde a razão secularizada adquiriu hegemonia. O religioso exerce, além disto, uma função de inserção e/ou reinserção do indivíduo em um grupo, respectivamente em um meio socio-cultural motivador e dotado de sentido.
A extensão e o modo como se dão hoje essas "passagens" religiosas e mutações espirituais se conectam a situações culturais, econômicas e sociais muito concretas[22]. Não trataremos deste aspecto aqui, uma vez que nosso interesse se concentra é no trânsito religioso vivenciado por quem se põe no caminho de Buda. Existem razões para supor que esse trânsito tenha elementos que são verificáveis também em outros tipo de conversão. Contudo, a conversão ao Budismo e, mais exatamente ainda, às três modalidades de sua vertente tibetana estudadas por Vera Andrada e Silva, precisa ser compreendido em sua originalidade. Nos itinerários que cada convertido realiza desde suas vivências e condicionamentos próprios aparecem aqui e ali ressonâncias psicológicas de nível inconsciente (em geral as abordadas pela psicanálise), mas em um estudo empírico essas só ocasionalmente podem ser levadas em consideração. Sua abordagem pediria uma metodologia muito diversa da empregada pela Psicologia Social. No centro da atenção do psicólogo social está a maneira com que os convertidos sujeitos percebem o percurso religioso que os levou ao encontro de uma filosofia de vida à qual estavam pouco ou nada afeitos e à qual chegaram trazendo seus outros itinerários existenciais já percorridos.
Mas, seja como for, psicossociologicamente falando, penso ser válido assumir que as conversões investigadas por Vera Andrada e Silva, salvaguardados os pontos que lhe são específicos e que a pesquisa mostrará, se inscrevem no quadro religioso brasileiro em mudança, para o qual vale a observação aguda de Prandi[23]: "A religião que se professa hoje já não é aquela na qual se nasce, mas a que se escolhe. A religião que alguém elege para si hoje, escolhida de pluralidade em permanente expansão, também não é a que seguirá amanhã. [ ....] Houve um tempo em que a mudança de religião representava ruptura social e cultural , além de ruptura com a própria biografia, com a adesão a novos valores, mudança de visão de mundo, adoção de novos modelos de conduta, etc. A conversão era um drama, pessoal e familiar, representava mudança drástica de vida..."
1.1. As definições de conversão cunhadas pelas Ciências da Religião não podem ser negligenciadas para a elucidação do conceito operacional de conversão a ser usado pelos pesquisadores brasileiros. Menciono três delas, que servirão para a orientação geral sobre a questão da conversão..
Uma é clássica em Psicologia da Religião. É de William James[24]. "Converter-se" -- escreve ele – "regenerar-se, receber a graça, sentir a religião, obter uma graça, são tantas outras expressões que denotam o processo, gradual ou repentino, por cujo intermédio um eu até então dividido, e conscientemente errado, inferior e infeliz, se torna unificado e conscientemente certo, superior e feliz, em conseqüência de seu domínio mais firme das realidades religiosas. Isto, pelo menos, é o que significa a conversão em termos gerais, quer acreditemos quer não, que se faz mister uma operação divina direta para produzir uma mudança natural dessa ordem."
Para James a conversão se associa à experiência mística e tem os mesmos componentes atribuídos a esse estado religioso que envolve a totalidade da pessoa. Pode irromper de modo súbito ou gradual e se conectar, psicologicamente, a uma maior ou menor intranqüilidade ou inconsistência interna da pessoa. São vários os seus componentes: ela, quando profunda, é de alguma maneira "inefável"; é mais um estado de intuição da evidência tangível de um objeto igualmente inefável do que o resultado de uma penetração intelectual do mesmo. Não dura, além disto, muito longamente em seu estado de quase êxtase, mas é processada ao longo de um tempo psicológico que pode ser mais ou menos longo. Finalmente ela é uma experiência que não está sob o controle voluntário do sujeito, uma vez que resume e reassume suas vivências pregressas e é, nesse sentido, mais passiva que ativa. Para James a conversão, em especial quando repentina, implica quase necessariamente uma crise do universo interior do convertido, provocando por isto mudanças profundas na personalidade do convertido e repercutindo em seu comportamento exterior global. Parece que James a via como sendo uma irrupção de energias e motivações que não tinham maiores conexões com o meio cultural e as tensões da época. O mesmo se diga com relação à biografia do sujeito: essa era considerada, sim, por James, mas, para ele, o peso da experi6encia de conversão estava era na presença avassaladora do sagrado na pessoa em crise.
"São relatos impressionantes de sentimentos poderosos que empurram o indivíduo para fora do cotidiano, deixando nele um sentimento "oceânico" (adjetivo que até Freud aceita) de unidade com o transcendente. James não quer, no entanto, negar que a conversão possa se dar de maneira suave e integrada em alguns indivíduos, como no caso de Francisco de Assis e Tereza de Ávila, por ele citados"[25] (VALLE, 1999: 2) .
A segunda definição é a de Carrier. Note-se que também ele insiste no caráter repentino e totalizante da experiência do convertido, ponto que considero importante, não necessariamente como absoluto, em conversões que supõem uma iniciação como é o caso do Budismo. Mas, pode também verificar-se.
Para o sociólogo canadense (CARRIER, 1988: 41)[26] a conversão como "uma adesão total, repentina e freqüentemente acompanhada de crise, aos valores compartilhados com uma dada comunidade; a experiência tenderá à reunificação da personalidade e à integração social".
Carrier, dado seu prisma sociológico, julga fundamental ter presente os significados (entre outros: doutrina, comportamentos, código de deveres, mística e rituais) que cada grupo religioso, tácita ou explicitamente, pede ao convertido. Neste ponto, estamos próximos aos itens da famosa taxonomia criada por GLOCK e STARK (1965)[27] (a experiencial, a conseqüencial, a ritualista, a ideológica e a cognitiva). São itens que, naturalmente, variam de grupo a grupo, podendo variar em função das pessoas concretas e da maneira como essas se relacionam dentro do grupo.
A terceira definição é assinada pelo sociólogo ZETTERBERG (1952)[28] e antecipa de alguma forma a famosa teoria dos papéis de H. SUNDEN. (1966)[29]. A conversão para Zetterberg é "a aceitação imprevista de um papel social valorizado pelo grupo religioso" no qual ela entra. Nessa abordagem prevalece o lado psicogrupl da experiência de conversão. O que se sublinha é a influência das posições de status/poder/participação a possibilidade de acesso a papéis sobre o processo de conversão a uma religião. Nessa perspectiva importa sublinhar o que se passou nas socializações prévias do sujeito, especialmente na primária: como se deram a aprendizagem dos papéis sociais, a aquisição de status no seio do grupo, as relações com as figuras significativas do grupo, o caráter mais ou menos institucionalizado dos passos que levam à iniciação, etc. Nas conversões que estão acontecendo no Brasil parece-me importante não se olvidar o papel que a agência religiosa e o agente institucional (o pregador, o pastor, o lama) com suas orientações, restrições, práticas e expectativas, desempenham em todo o processo que muitas vezes se inscreve em um clima de aconchego caloroso em um grupo de irmãos com uma possível perda (parcial e em geral provisória) do senso usual de orientação individual da pessoa.
Seguramente o significado e repercussão psicológica e social do choque da conversão não são os mesmos em um grupo extático e em um outro onde a ênfase está no conhecimento de um livro. Por exemplo, uma coisa é participar intensamente de um grupo de laços sociais e comportamentais mais frouxos e outra passar a fazer parte de uma agremiação religiosa emocionalmente coesa, como, por exemplo, parece ser o Hare Krishna; ou, ainda, envolver-se pessoalmente em uma proposta de iluminação e regeneração como a sugerida pelo Budismo, seja ele tibetano ou zen, popularizado ou mais de elite. E, mesmo dentro do relativamente homogêneo mundo budista-tibetano, não é o mesmo optar pelo caminhos de iluminação apontados por grupos mais liberais, como o da Lama Tsering Everest, americana que dirige um concorrido Centro em São Paulo, ou assumir as práticas e ensinamentos psicossocialmente mais fechados como os vividos por um dos grupos que Vera Andrada e Silva estuda. Ou seja, "a conversão de uma pessoa a uma determinada religião, assim como suas crenças e comportamentos religiosos, não podem ser entendidos, psicologicamente, somente como um processo de iluminação e integração interior, ou como a conquista de um self que se integra autonomamente, ou como expressão secundária de repressões mais ou menos neuróticas do sujeito, ou, ainda, como um dom recebido de uma divindade"
1.2. De um ponto de vista mais prático e operacional – ponto decisivos para definir o que investigar de fato nas entrevistas com as pessoas -- penso que um pesquisador interessado em entender a conversão ao Budismo tibetano não poderá deixar de considerar, a exemplo do que fez Vera Andrada e Silva, as seguintes quatro dimensões no processo vivido pelo convertido:
A noção de conversão não é, evidentemente, unívoca e não pode tampouco ser "deduzida". Eu a entendo, na linha de H. Carrier, como sendo uma "atitude" que conota elementos afetivos, cognitivos e conativos. Max Weber o sabia e por essa razão distingue bem entre duas funções das religiões: a de propiciar um sentido (meaning function) e a de oferecer à pessoa um lugar social d pertença no qual possa ancorar sua identidade (belonging function). Conceitualmente o pesquisador deve ver estes dois aspectos com conjugados. Um vem da psicologia social e tem a ver com o que poderíamos chamar de "self" pessoal, no sentido de Mead[33]. Toda atitude tem por baixo processos sensoriais, perceptivos e motivacionais de natureza idiossincrática. É uma maneira pessoal de relacionar-se psico-afetiva e comportamentalmente com certos objetos privilegiados do campo de consciência. Estes objetos afetam o self do convertido tanto emocional quanto cognitivamente, influenciando seu agir (intrapessoal e interpessoal). A atitude, como insistem em acentuar os psicólogos sociais, não é um vago sentimento de auto-percepção ou um mera valorização de um objeto religioso. Ela envolve dinamismos conativos e levam à ação de afirmação ou de negação em relação a questões extremamente concretas (que irão variar segundo cada grupo). Modifica, por isto, a personalidade do sujeito e é dela inseparável. Nas religiões orentais talves se devam usar ainda outras aproximações para designar todo leque de variações recoberto pela experiência religiosa típica de tais religiões. Não tenho nem formação nem informação suficientes para fazê-lo.
Em uma pesquisa, nunca é demasiado repetí-lo, há a necessidade de se chegar a um conceito operacionalizavel do que se pretende observar, descrever e analisar. De que teorias e modelos partir?
Em estudos como o de Andrada e Silva sempre sugiro modelos psicossociais. Eles são muitos e devem, naturalmente, ser usados criticamente e não como uma camisa de força. Andrada e Silva, caminhando por vias próprias, chegou, de alguma maneira, a algo semelhante ao que tais modelos sugerem ,mesmo não tendo se inspirado de modo direto em um só deles. Considerou mais de perto os modelos de R.W. HOOD Jr. e B. SPILKA[34], o de J. LOFLAND e N. SKONOVD (1981) e o de L. R. RAMBO (1993)[35]. Cada um deles se orienta em uma direção, mas existe uma complementaridade entre eles.
Como exemplos vejamos dois destes modelos. O proposto por LOFLAND e SKOVONOD (1981)[36] presta especial atenção às motivações responsáveis pelo movimento de conversão. Propõe diversos indicadores e níveis de realidade a serem considerados. Estes dois conhecidos especialistas observaram que os movimentos religiosos usam estratégias diferenciadas para elicitar e dar uma configuração própria à conversão das pessoas que a eles acorrem. Eles chegaram à conclusão de que as motivações empregadas por estes grupos religiosos – todos dos estados unidos -- são de seis distintas natureza, a saber: de tipo místico, de tipo intelectual, de tipo afetivo, de tipo "revival", de tipo experiencial e de tipo coercitivo.
Sugerem que estes seis motivos sejam cruzados com três níveis de realidade [a) o da realidade vivida e que não é diretamente alcançável pelo pesquisador; b) o do relato que o convertido faz de sua experiência e c) o da análise interpretativa do próprio pesquisador]. Os seis motivos, além do mais, devem ser ponderados em função de suas dimensões de intensidade (intensidade da pressão social, da direção no tempo, do nível e do conteúdo afetivo e o da relação seqüencial entre crença e comportamento).
Um outro modelo é o de TIPPETT, que Vera Andrada considerou menos mas do qual se aproxima bastante quando passa a construir seu instrumento de pesquisa, um questionário usado em entrevistas individuais . Este instrumento não foi fruto de uma intuição ou dedução e sim resultado das próprias conversas que a autora foi tendo com os sujeitos de sua amostragem. Funcionou como um roteiro aberto, mas semi-estruturado, a ser aplicado à 30 participantes (10 de cada um dos três agrupamentos budistas estudados). O objetivo das entrevistas deixou o de ser o aprofundamento das vivências subjetivas profundas da conversão (finalidade perseguida em uma etapa mais inicial da pesquisa) e passou a visar a caracterização dos itinerários percorridos pelos sujeitos em seu processo de encontro com o Budismo tibetano.
Ao estudar os métodos adotados por outros pesquisadores, deparei com o de Tippett, que me pareceu ser o mais indicado para o que eu já havia intuído e pretendia colher nas entrevistas da segunda fase. Vejamos algo do modelo de Tippett, que pessoalmente vejo como bastante completo e bastante apropriado para pesquisas no Brasil. A versão abaixo foi por mim adaptada e julgo que ela encerra os pontos essenciais a serem considerados por um bom roteiro de entrevistas. O de Vera Andrada tem com ele pontos de contato.
2.1. Pontos essenciais de entrevistas psicossociais sobre a experiência da conversão
São seis os pontos que para Tippet precisam merecer especial atenção atenção:
2.2. Delineação do roteiro usado nas entrevistas
O roteiro usado por Andrada e Silva teve origem em uma das primeiras e mais completas longas conversas com um dos primeiras entrevistadas. Àquela altura Andrada e Silva não havia ainda definido[38] bem o objeto da pesquisa. Tentava compreender mais o que se passava na profundidade da pessoa, objetivo que levava `sondagem de temas que em nossa cultura são normalmente reservados ao set psicoterapêutico. Ao mesmo tempo porém, as conversas havidas com esse sujeito – uma jovem com formação psicológica e com experiência pessoal de tratamento analítico --, mostravam a importância do que Lofland Skovod, Rambo e Tippett indicavam como marcos referenciais em uma investigação psicossocial sobre a conversão. No momento em que o objetivo da pesquisa se tornou claro, foi possível montar um roteiro apto a objetivar algumas questões fundamentais para se entender a conversão ao três grupos do Budismo tibetano em estudo. As entrevistas que se seguiram com os sujeitos dos três grupos em estudo, já dentro de um delineamento formal do projeto, mostraram que o roteiro compendiava os itens mais relevantes para a compreensão psicossocial do itinerário que levou os entrevistados ao primeiro encontro e ao ulterior aprofundamento de sua experiência e de seus laços com o Budismo Tibetano.
Ao que tudo indica, exploração sistemática das respostas já obtidas dos membros dos três grupos, provavelmente poderá mostrar os pontos chave do processo de conversão que são comuns a todos e os que diferem em virtude das caraterísticas de cada um dos três grupos.
Apresento a seguir o roteiro, estruturado em sete pontos, numa formulação que não é necessariamente a da autora do mesmo, mas colhe bem o que ela buscou em suas entrevistas:
Ponto 1: A descoberta e o encontro inicial com o Budismo
Ponto 2: Eventos e experiências pessoais anteriores à conversão: o antes
Ponto 3: Balanço geral das aprendizagens realizadas no Budismo: o durante
Ponto 4: A experiência de contato com a Sangha: os aspectos psico-relacionais
Ponto 5: As relações com o Lama: a iniciação desde a orientação do mestre
Ponto 6: Avaliação do processo de crescimento pessoal: nuances do itinerário pessoal
Ponto 7: Relações entre processos/cura psicoterapêuticos e iluminação/cura budista
Ao ler este roteiro aparentemente tão simples alguém pode imaginar que ele poderia ter sido elaborado sem tantos percalços. Quem tem alguma familiaridade com a pesquisa científica sabe, porém, que não é este o caso. Por trás de um instrumento como este há todo um complexo processo de reflexão no qual o concreto é a referência para a teoria e essa a iluminação para o aprofundamento do real. Era sobre este iter tão singelo e tão árduo, quando se baixa a campo, que eu queria refletir com o leitor.
[1] O presente número da Revista Eletrônica de estudos da Religião REVER (endereço eletrônico http://www.pucsp.br/rever) apresenta dois exemplos deste tipo: PAIVA, Geraldo José de, Imaginário e Simbólico: aspectos psicológicos na adesão à Seicho-no-iê e à PL- Instituição Religiosa Perfeita Liberdade e o de SHOJI, Rafael, Uma perspectiva analítica para os convertidos ao Budismo japonês no Brasil. Em: Revista Eletrônica de Ciências da Religião, Rever, Ano 2, 2002, no. 6. Um terceiro exemplo é a dissertação de mestrado em Ciências da Religião em fase final de redação e defesa pública, de SILVA, Vera de Andrada, Conversão ao Budismo Tibetano: trajetórias em três grupos de São Paulo, PUC-SP, 2002.
[2] Dois estudos oferecem a moldura para o que aqui será discutido. Um é de ROCHA, Cristina Moreira da, 2000. "Catholicism and Zen Buddhism: a Vision of the Religious Field in Brazil’. Paper presented at 25th Annual Conference of the Australian Anthropological Society, University of New South Wales, Sidney, 2000. Em F. Usarski se tem um boa visão de conjunto do Budismo no Brasil. CF USARSKI. Frank (Ed.). 2002. O Budismo no Brasil. São Paulo, Lorosae.
[3] Em SHOJI (2002) e USARSKI (2002) encontram-se tentativas de classificação relativas a tais modalidades. Estes autores, de maneira não idêntica mas vizinha. Usarski menciona duas ondas de conversão de brasileiros ao Budismo no Brasil: a primeira seria erudita, individual e universalista. A segunda seria globalizada e teria a ver com o Zen ocidentalizado, do qual a Soka Gakkai e o Budismo tibetano seriam representantes. Já Shoji usa como critério para sua classificação a motivação que levou à conversão e a prática religiosa realizada, dando destaque à influência das religiões e das culturas existentes no Brasil. Sua principal diferenciação se fz entre um Budismo intelectualizado, mais das elites, e um Budismo de resultados, esse último mais popular.
[4] Agradeço à Vera Andrada e Silva ter lido este texto – que é de minha inteira responsabilidade – e de ter feito sugestões ao mesmo, mormente nos pontos que ela trabalhou em sua dissertação. É evidente que uma informação completa sobre o estudo em questão só será possível mediante a leitura da dissertação que está para vir à luz. Esforço-me por não antecipar dados e conclusões, circunscrevendo-me em aspectos que não são objeto direto da dissertação. Meu interesse é o de mostrar algo do esforço que Vera Andrada e Silva, como qualquer pesquisador, teve de fazer para "descer" das teorias gerais a conceitos "operacionais" aptos a levar o pesquisador a instrumentos de pesquisa realmente eficientes.
[5] Cf a reportagem: "O sucesso da versão light. Com ênfase na auto-ajuda, o budismo tibetano cresce". Em: Veja, Revista Semanal, Ano 34, 2001, No. 45 (14-11-01) p. 72.
[6] Cf SHOJI, lugar citado, no. 3.3.2. A menção a Montes, fazendo importante ponte com o contexto brasileiro, é também de Shoji. Cf. MONTES, Maria Lúcia, 1998. "As figuras do Sagrado: entre o público e o Privado". Em: SCHWARCS, Lília Moritz.(Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, vol 4. P. 63 – 172.
[7] CAMPBELL, Colin. "A orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio". Em: Religião e Sociedade, vol. 18, 1997, No. 1, p. 5- 21.
[8] De um modo bem amplo, a psicologia entende a conversão como sendo o processo de encontro da pessoa com um novo grupo religioso. É a pessoa, com o seu modo próprio de ser, sentir e pensar que é chamada em causa na conversão, mas o grupo oferece a contextuação do que ela experimenta. A pertença é uma noção associada à de conversão, mas designa mais os laços que prendem o sujeito ao modo de ser, aos comportamentos e estilos do grupo no qual entra, fazendo com que ele se sinta e aja como membro pleno do grupo, sobretudo no que diz respeito aos papéis sociais, às normas e valores.
[9] Cf Valle, Edenio, Conversão e pertença religiosas, Mestrado em Ciências da Religião, PUC-SP, 1999, p. 1 (paper).
[10] Para uma análise mais melhor dessa afirmação, cf. Valle, Edenio. Psicologia e experiência religiosa, São Paulo, Editora Loyola, Paulo, 1998, p. 44-51 e p. 75 –85.
[11] Sobre este aspecto veja-se VALLE, Edênio, Psicologia e experiência religiosa, obra citada, p. 45-51.
[12] Cf VALLE, Edênio, "L’illusione religiosa in un movimento parareligioso del Brasile". Em: REVER (Revista Eletrônica da PUCSP, 2001, No. 1. [Endereço eletrônico: http://www.pucsp.br/rever]
[13] O bem documentado livro de Hervé Carrier ilustra com propriedade o avanço da Psico-sociologia da Religião ao longo do século XX. Cf CARRIER, Hervé. Psico-sociologia dell’appartenenza religiosa, Torino, Editrice Elle Di Ci,, Nuova edizione aggiornata, 1988. Ver especialmente, p. 29-31.
[14] Carrier, Hervé, livro citado, p. 32. As duas outras citações que seguem estão na mesma página.
[15] Paiva, Geraldo José de. A religião dos cientistas. Uma leitura psicológica, São Paulo, Editora Loyola, 2000, p. 10. Também em Roger Bastide e em Renato Ortiz, Paiva encontrou a mesma expressão.
[16] Sobre a situação sociológica mais geral da religiosidade e das religiões no Brasil, cf. SOUZA, Beatriz Muniz de e outros (Org.). Sociologia da Religião no Brasil. São Paulo, PUCSP-UMESP, 1998; PIERUCCI , A. Flávio e PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil., São Paulo, Hucitec, 1996.
[17] Cf. MACHADO, Maria das Dores C. Adesão religiosa e seus efeitos na esfera privada. Um estudo comparativo dos carismáticos e pentecostais no Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, IUPERJ, 1994.
[18] Uso o termo "individualista" no sentido de Dumont. Para este antropólogo francês a existência religiosa não pode mais ser vista como algo culturalmente partilhado com um grupo cultural, institucionalizado ou não. Ou seja não é só uma "construção social", no sentido de Berger. É também e hoje, muito mais, uma escolha do "indivíduo". Essa é para Dumont a principal caraterística das ideologias que perpassam a cultura urbana contemporânea. Cf. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Editora Rocco, São Paulo, 1985.
[19] No Brasil, Magnani estudou a expansão da nebulosa esotérica, assim como essa aparece na cidade de São Paulo. Ele conseguiu detectar mais de mil pontos de uma nuvem não muito precisa que se espalha pela cidade, concentrando-se em bairros de classe média. Cf. MAGNANI, José, G. "O neo-esoterismo na cidade", Em: Revista da USP, no. 31, 1996, p. 6 – 15.
[20] Cf LUCKMAN,Th., La religión invisible. Salamanca, Sígueme, 1973
[21] A noção de mercado tem sido usada por muitos autores como categoria explicativa de valor heurístico. Cf WOHLRAB-SAHR, Monika, Symbolizing Distance: Conversion to Islam in Germany na the United States. Em: Rever: Revista Eletrônica de Ciências da Religião, 2002, no. 6 e VALLE, Edênio, A Universal: fenômeno mercadológico ou fenômeno religioso? . Uma reflexão pastoral. Em: Revista Eclesiástica Brasileira, fasc. 230, 1998, p. 350 – 384.
[22] Como exemplo de estudos onde se tenta fazer a ligação entre o contexto macrossocial e o fenômeno religioso podem ser consultados o capítulo 4 e 6 do livro de Edênio Valle, citado na nota 10.
[23] PRANDI, Reginaldo, "Religião, biografia e conversão: escolhas religiosas e mudanças da religião". Em: O itinerário da fé na ‘iniciação cristã de adultos,.São Paulo, Editora Paulus, 2001, p. 51 s.
[24] JAMES, William, As variedades da experiência religiosa. Um estudo sobre a natureza humana. São Paulo, Editora Cultrix, 1995, p. 126.
[25] Cf VALLE, Edênio. Conversão e pertença religiosa.. Programa de Mestrado em Ciências da Religião, PUC-SP, 1999, p. 2.
[26] Cf CARRIER, H., obra citada, p. 41-42
[27] Cf GLOCK, C.Y. e STARK, R. Religion and Society in Tension.. Chicago, Rand Mc Nally, 1965. Apud VALLE, Edênio. Psicologia e experiência religiosa, obra citada, p 67-68.
[28] Apud VALLE, Edênio. Conversão e pertença, Obra citada, p. 3. Cf também ZETTERBERG, H.L. "The Religious Conversion as a Change of Social Roles". Em: Sociology and Social Research, 1952, No. 36, p. 159 – 166.
[29] SUNDEN, H. Die Religion und die Rollen. Eine psychologische Untersuchung der Fömmigkeit, Berlin, Töpelman, 1966.
[30] Cf SAFRA, Gilberto. "Sacralidade e fenômenos transicionais: visão winnicottiana". Em: MASSIMI, M. e MAHFUD, M. (Org.). Diante do mistério. Psicologia e senso religioso. São Paulo, Loyola, 1999, p. 173 – 182.
[31] Berger trata desta noção em vários escritos. Cf , por exemplo, BERGER, P. Para una teoria sociológica de la religión, Barcelona, ediciones, Kairós,
[32] Cf: Veja, Ano 34, 2001, No. 45, p. 72. Também a citação da praticante é tirada do mesmo texto.
[33] MEAD, G.H.. Mind, Self and Society. Chicago, Chicago University Press, 1934.
[34] Uma informação a respeito deste modelo pode ser encontrada em HOOD, Ralph W. Jr. (Ed.) Handbook of Religious Experience, . Birmingham, Alabama, Religious Education Press, 1995.
[35] J. LOFLAND e N. SKONOVOD, Conversion Motifs. Em: Journal for the Scientific Study of Religion Vol. 20, 1981) p. 373 – 385., RAMBO, L.R., Understanding Religious Conversion, New Raven, CT, Yale University Press, 1993 ; HOOD, R.W.Jr. e SPILKA, L.
[36] J. LOFLAND e N. SKONOVOD, Conversion Motifs. Em: Journal for the Scientific Study of Religionm Vol. 20, 1981) p. 373 – 385.
[37] Cf ERIKSON, E. Infância e Sociedade, Rio de Janeiro, Zahar, s/d, p. 227 – 248. Para uma exposição rápida cf DEL’ACQUA, Terezinha M., "A generatividade: matriz de vigor" . Em: VVAA. A segunda idade da vida religiosa. Psicologia na idade dos 40-60 anos. Rio de Janeiro, Publicações CRB, 1995, p. 105 – 115.
[38] Foi só por ocasião do exame de qualificação, já após dois anos de leituras e contatos com o tema e de presença em campo, foi possível firmar com clareza o objeto da pesquisa. Deixando de lado o viés psicanalítico inicial, passou-se a uma preocupação maior com a contextuação histórica, com os passos do processo da conversão e com alguns de seus conteúdos e características específicas.