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100 anos de nascimento de Claude Lévi-Strauss

Artigo publicado no Caderno Cultura de 'O Estado de São Paulo' por ocasião dos 100 anos de nascimento de Claude Lévi-Strauss

Leda Tenório da Motta
As estruturas não saem às ruas, denunciavam os estudantes de esquerda, em Maio de 1968, assinalando com a tirada a distância indolor da realidade pela qual se pautavam, segundo eles, Lévi-Strauss e seus companheiros. Foi em meio a esse clima de denúncia que Roland Barthes, por exemplo, um dos companheiros em questão, deixou a França, em 1969, e se auto-exilou no Marrocos. E foi dentro desse mesmo contexto que, pouco depois da partida de Barthes, Jacques Lacan recebeu vaias em Vincennes, quando de uma visita ao campus que ficou famosa, não apenas porque o inconsciente foi aí recusado pela gauche, mas porque, para impor respeito, o psicanalista que redefiniu a proibição do incesto como um operador simbólico, contra a idéia de que seria uma evento de fato ocorrido na horda primitiva, teve que lembrar aos alunos sublevados que havia, um dia, pertencido aos quadros do movimento surrealista, e não era tão reacionário assim.

Que tão brilhante escola de pensadores tenha despertado tão viva oposição da parte de tão bela revolta juvenil não deixa de ser indicativo do quanto a palavra “estrutura”, de par com a palavra “signo”, que também estava entrando em cena, podia ser incômoda, nesses tempos em que ainda imperava a palavra “homem”. E não apenas para os leitores de Marx, Adorno e Guy Débord, que reclamavam da ausência da vida real nos domínios estruturalistas, entendendo por vida real as condições materiais de existência nas sociedades capitalistas. Mas também para todos aqueles que, pouco se importando com questões políticas, e somente interessados na psicologia profunda, acusavam, por sua vez, uma falta de reconhecimento da dimensão da subjetividade no método straussiano. Ou melhor dizendo saussuriano-straussiano, já que, tendo Lévi-Strauss à frente, toda essa elite universitária se assumia devedora da lingüística de Saussure, com sua demonstração de que a “langue” é uma bateria combinatória, de elementos diferenciais de tal modo organizado que cada um só tem valor por oposição ao outro, o sentido nada mais sendo, assim, que um efeito dessas tensões. Toda essa gente estava, justamente, empenhada em transferir esse funcionamento da linguagem verbal articulada para o mundo empírico, já que ele deixava pressupor, na variedade das experiências extra-lingüísticas, o sistema.

Aos politizados e aos despolitizados, a assim chamada vida real proporcionaria um acontecimento tão trágico quanto espetacular, que, aparentemente, vinha dar razão a todo mundo. Esse acontecimento foi o break down de Louis Althusser, um representante do método no campo da filosofia política, que havia revolucionado a leitura de O Capital, com uma obra que se tornara uma bíblia das novas esquerdas: Pour Marx. Em 1980, num surto, até hoje não completamente elucidado, Althusser estrangulou a própria mulher, nas dependências da prestigiosa École Normale Supérieure, onde dava aulas, sendo recolhido a um asilo psiquiátrico, depois de considerado inimputável. O que, de imediato, foi tomado como um alerta no sentido de que os valores do humanismo não podiam ser derrubados pelas categorias gramaticais. Era a tragédia pessoal que, cobrando o seu preço, se infiltrava no seio da impessoalidade. E ela foi saudada pelos inimigos dos formalistas nestes termos cruéis: quem não reconhece o processo do sujeito pode terminar como o sujeito de um processo.

Se os processos do sujeito não desdouram minimamente essa intelectualidade que, jogando com signos, fez uma revolução de 360 graus na história das idéias, o fato é que tornam particularmente comovente uma espécie de retrato de grupo da nata da plataforma, feita a crayon por Roland Barthes, já em sua fase heterodoxa. Trata-se, muito provavelmente, do único documento a registrar, lado a lado, as figuras de Barthes, Lévi-Strauss, Lacan e Michel Foucault. Relativamente conhecido dos estudiosos _ já que, por força de uma interessante iniciativa editorial, passou a figurar na capa das muitas traduções da História do Estruturalismo por François Dosse, inclusive na da brasileira _, esse inesperado portrait geracional é incluído, em 1975, entre as muitas fotografias familiares e as muitas confidências que o semiólogo-desenhista inseriu em seu Roland Barthes por Roland Barthes.

Nessa charge, todo o quartel-general do estruturalismo foi posto numa roda, para conversar. Despidas de sua urbanidade acadêmica e de suas insígnias professorais, todas as personagens estão sentadas, de pernas cruzadas na frente, como se fossem índios, e trajando tanga.Logo abaixo da imagem, uma legenda explica: “a moda estruturalista”. De fato, nada melhor para ilustrar a estrutura que as oposições com que o desenhista brinca: o nu e o vestido, o primitivo e o civilizado.

Duas coisas nos tocam nessa brincadeira de Barthes, que é também uma espécie de vôo metalingüístico de alguém da tribo sobre a própria tribo. A primeira é que, não muito tempo depois da saída do livro em que o desenho aparece, quase todos os retratados já estariam mortos, de forma precoce, quando não violenta, como no caso do próprio Barthes, que morre atropelado na porta do Collège de France, nesse mesmo annus terribilis de 1980 em que Althusser enlouquece, ensejando a Tzvetan Todorov, outro correligionário, falar em suicídio branco. Ou estariam perdidos em suas iluminações alquímicas, como dirá de Lacan sua biógrafa, Elisabeth Roudinesco. Todos menos um: o mais longevo, este que chega agora aos 100 anos.

A segunda coisa tocante é que, embora se saiba que Barthes, irrequieto como era, é o primeiro dos pós-estruturalistas, não se trata de moda, como ele brincalhonamente insinua. Nem é possível pensar que o autor de Sur Racine, o livro que dá origem à peleja de que sai a “nouvelle critique”, não tenha levado a sério a proposta de mudar a crítica literária com os aportes das lingüísticas, das semióticas e das semiologias, já que ele responde, nessa frente, por uma virada célebre, a troca dos enquadramentos sócio-históricos das obras pela leitura de suas molas discursivas, ou de uma crítica ideológica por uma crítica interpretativa, para lembrar suas palavras mesmas. É bem isso que abespinha os donos de Racine reunidos na Sorbonne. O fato de que o novo crítico ousa lançar, de sua École des Hautes Études, uma interpretação do maior trágico francês do período clássico que desconsidera o seu século do autor, e nesse sentido qualquer dimensão cronológica, para visar, também no melhor estilo antropológico, não o tempo, o operador da História, mas o espaço, o operador de Lévi-Strauss. É o que faz, escandalosamente, Sur Racine, onde se investiga o locus racinianus, e se atrela tira a contradição trágica à tensão entre os lugares de que falam as personagens: a câmara, a ante-câmara, o palácio real, o exterior do palácio, o dentro e o fora.

Não se trata de moda, mas, sim, de uma poderosa corrente de força que, em plena vigência da autoridade de Marx, Freud e Sartre, vai interceptar as filosofias da história e do sujeito, permitindo-se ficar fora destas referências, e dentro de uma paixão pela linguagem jamais vista, antes, longe dos laboratórios das artes. Fato que explica, de resto, que _ Lévi-Strauss à frente _, todos os estruturalistas tenham se interessado tanto por artes, e que a escola das estruturas seja, ainda por cima, um poderoso ateliê de críticos de arte. De fato, além de ser um dos mais importantes pensadores do século passado, o mestre de todos, que agora homenageamos, é também um perfeito comentador de Proust e dos pintores cubistas, em seu Regarder, écouter, lire. E um intérprete inaudito de Baudelaire, que pega o poeta pela palavra, em sua célebre análise do poema “Les chats”, feita a duas mãos com o lingüista Roman Jakobson. Aí, sem temer tratar o texto baudelairiano como um objeto, ambos realizam uma exemplar escansão morfo-sintática _ que tipo de verbos?, que substantivos?, que conectores? _ e é dessa peritagem que sai, no final, a revelação do sentido profundo. Desde 1962, quando esse modelo de leitura poética chegou aos Departamentos de Letras, nunca mais a análise de texto foi a mesma, nunca mais ousamos atribuir qualquer significação a uma peça literária, mesmo em prosa, sem antes tomar o cuidado de verificar com quê materiais era feita.

É bem verdade que, a partir de determinado momento, no final do século, também aprendemos a suspeitar de que a escola das estruturas impunha uma estabilização do sentido, e Encerrava assim uma última armadilha dogmática, a se descosntruir...

Nem por isso esqueceremos que os estruturalistas nos ensinaram a ler o grande livro do mundo! Que bom que os signos ainda têm Lévi-Strauss!

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