Uma incursão de risco
Especial para a Folha
Em relação à resenha do meu livro "Francis Ponge - O Objeto em Jogo" (Iluminuras), publicada no Mais! em 11/6, e em atenção aos leitores do caderno gostaria de observar que:
1. O poeta Francis Ponge (1899-1988), ainda que não sem angústia, não faz qualquer distinção entre prosa e poesia, o que aliás, entre outras coisas, o leva a chamar o poema de "proema" ou "proêmio" ("proême"). Assim, quando eu comento longamente, no capítulo três, um dos mais extensos e torturantes textos de Ponge, o texto intitulado "Tentativa Oral" (inteiramente traduzido por mim noutra parte: "Francis Ponge, Métodos", Imago, 1997), acho que estou fazendo bem aquilo que o resenhista diz que eu não faço, a saber: análise do... poema.
Como ainda estaria fazendo análise do poema se estivesse comentando, por exemplo, o texto "O Cão e o Frasco" ou "Senhorita Bisturi", do volume "O Spleen de Paris", de Baudelaire (também traduzido por mim, em 1995), em que, justamente, começam as não-fronteiras. Como ainda estaria fazendo análise poética se me dedicasse às "Poesias", de Lautréamont, que acontecem em frases e períodos, não em versos ou estrofes, ou se me ocupasse -eu, aliás, me ocupo, no quarto capítulo do meu livro, até porque Borges foi tradutor de Ponge, o que não é dizer pouco sobre Ponge- daquela prosa do autor do "Elogio da Sombra" inserida, tão indiscriminada quanto vertiginosamente, em livros ditos de poemas.
2. Eu estou, justamente, querendo ser "indelicada" -como diz o resenhista, usando dessa expressão- com todos os demais poetas da segunda metade do século 20 francês quando digo que Ponge é, talvez, o mais relevante de todos. Aí incluída -para apontar o que a resenha não apontava- gente como Yves Bonnefoy, Henri Michaux, Edmond Jabès, Henri Meschonnic, Denis Roche, Jacques Réda, Jacques Roubaud, Henri Deluy... Trata-se, mais e melhor que "indelicadeza", de uma incursão de risco, ou de risco crítico, e é porque risco há que o crítico assina embaixo, depois de sua demonstração. Trata-se também de certo atrevimento, inspirado, entre outros, no Eliot que diz das "Flores do Mal" que esse é o mais importante exemplar de poesia moderna em termos absolutos.
E também -o que é politicamente incorreto, eu sei- de trabalhar com um cânone restrito, e mais que isso, com um centro do cânone. Que é bem no que Otto Maria Carpeaux devia estar pensando quando diz de Thomas Mann que ele é o maior dos pequenos escritores. E no que devem estar pensando todos aqueles que não costumam meditar longamente antes de pôr um "negócio" chamado "Em Busca do Tempo Perdido" (de que trata meu livro "Catedral em Obras", de 1995) na posição em que, neste século, o põem.
3. Finalmente, eu não "seguro o (meu) discurso", mesmo, como se lia na resenha. Até porque eu sou uma leitora de Ponge, uma perseguidora de seus irônicos "Métodos", e as idéias, para falar como o poeta, avesso a toda pose, embora não a todo risco, "não são o meu forte". Se fossem, eu seria mais "pedagógica". E, em vez de ficar girando em torno de Baudelaire, Proust, Borges e o autor de "O Partido das Coisas" (para não falar de Céline), como os leitores da Folha sabem que eu giro, eu poderia, enfim, me dedicar a temas mais... prestantes. Algo assim como... Francis Ponge e o Brasil!