A guerra entre a polícia e as organizações criminosas abalaram São Paulo. Pela imprensa, as notícias aguçam o ódio e a incompreensão das profundas causas do terror. Algumas vozes, como a padre Valdir João da Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária no Estado de São Paulo, levanta a realidade do lado de dentro do muro. "Quem criou as facções foram o Estado e a sociedade, quando viraram as costas para os presos", declara.
Leia entrevista:
FCOnline: Quais são as raízes desta onda de violência e terror que São Paulo está vivendo nestes últimos dias?
Padre Valdir: Essas rebeliões são resultado do abandono em que vivem as periferias e a população pobre dos presídios. Sabemos que tudo isto está ligado à desigualdade social e principalmente, à carência em que vive a classe pobre no que toca às questões da educação, do emprego, da moradia, das políticas públicas.
E, dentro dos presídios, a ausência do Estado e da sociedade também é grande. Viraram as costas para os presos. As facções começaram a se organizar para sustentar e manter os presos e suas famílias.
Quando chegam nos presídios, os presos, precisam de imediato de material de higiene básica. O Estado não fornece isso. Quem fornece são as facções. Começa aí uma forma de envolvimento e sedução.
Depois, as famílias dos presos, as esposas e os filhos, ficam abandonados na periferia. O Estado e o município não trabalham com essas famílias, que ficam esquecidas e também à mercê do crime organizado. Outro fator é que a maioria dos presos da capital estão no interior e precisam do contato e do acompanhamento da família. Quem vai pagar as passagens e quem vai ajudar a família a visitá-los são as facções. Nada disso é divulgado pela imprensa.
FCOnline: Então, de certa forma, as facções tiveram uma origem do lado de fora dos presídios?
Padre Valdir: Quem criou as facções foram justamente o Estado e a sociedade, virando as costas para os presídios. A grande imprensa só fala em punir e fechar os presos no presídio. Agora se fala somente em penas mais longas. Mas, ninguém tem coragem de conviver com alguém que passou 40 anos na cadeia. O sistema prisional destrói a pessoa, a transforma em monstro. Não se pensa que a pessoa deve ser re-socializada. Quem vai para o presídio vai pagar por um crime, mas também para ser reabilitado para a convivência social. Mas, não se pensa na segunda etapa. Só se pensa em punir e castigar. E o retorno disso? Temos o resultado agora.
FCOnline: O sr. visita muitos presídios. Como é a relação entre os presos e as facções?
Padre Valdir: Essas facções também surgiram como uma forma de os presos se protegerem contra a violência interna, como as torturas e maus-tratos da polícia e funcionários. Depois que os presos começaram a ser organizar, a violência interna diminuiu muito. Mas, entre eles, também existem a violência, a punição. Eles também têm a lei da tortura. Quem a desobedece é punido severamente. Os presos e suas famílias recebem a ajuda, mas depois são cobrados e devem pagar do jeito que as facções pedem.
FCOnline: Como surgiram essas organizações do crime?
Padre Valdir: O grande impulso foi dado após o massacre do Carandiru, quando os presos passaram a se organizar mais. E depois teve a mega rebelião, em 2001, quando as facções estavam mais centralizadas no Carandiru. Como houve a distribuição dos presos do Carandiru pelas cidades do interior, as facções se multiplicaram e se fortaleceram. Outras facções foram organizadas, como o PCC [Primeiro Comando da Capital].
FCOnline: Quantas facções existem hoje no Estado de São Paulo?
Padre Valdir: Temos no Estado, hoje, 12 facções. É bom lembrar que não são todas que estão concordando com as rebeliões. A segunda facção mais forte, e as outras, estão totalmente contra as rebeliões e as ações que acontecem nas ruas. Estão revoltadíssimos e condenando veemente a posição do PCC.
FCOnline: E quanto à reação da polícia. Como o senhor a avalia?
Padre Valdir: A polícia está recebendo ordens para matar, extirpar e eliminar. E a população aplaude isso. Só que estão matando pessoas sem identificação. Segundo os relatos, há mais de 40 corpos sem identificação no IML [Instituto Médico Legal], em São Paulo. A polícia rasga os documento das pessoas e anulam qualquer identificação para evitar um processo de acompanhamento de como aconteceu aquela morte. Eu já ouvi pais chorando que os filhos inocentes morreram em confronto com a polícia nesses dias.
Outra preocupação é que as medidas estão sendo aprovadas em Brasília no âmago da emoção e assim, modifica-se a Lei, sem raciocínio ou critério, o que é muito perigoso. Pensam em castigo e pena longa, sem uma discussão mais ampla e sem análises.
FCOnline: Como está sendo defender os direitos humanos dos presidiários neste momento?
Padre Valdir: Nós já estamos sendo muito hostilizados, pois acham que só protegemos bandidos. Mas a Igreja e a Pastoral Carcerária querem proteger a vida. Somos contra qualquer forma de violência, venha de onde vier, seja dos órgãos do Estado ou das facções. Não aceitamos. A pastoral não trabalha com as facções e não as reconhece. Ela lida com a pessoa humana do preso.
FCOnline: A sociedade é considerada culpada, mas ela não tem acesso a tantas informações sobre essa realidade...
Padre Valdir: A sociedade é culpada também porque ela só quer que a pessoa seja presa e afastada do convício social, jogada nos porões. No entanto, essa pessoa pertence à sociedade. Deveríamos adentrar mais nos presídios. Porque como o hospital e a escola, o presídio também é uma repartição pública, onde a sociedade tem a obrigação de acompanhar e fiscalizar. Mas para o presídio, se vira as costas e as pessoas sentem um profundo ódio.
FCOnline: Mas todos têm medo...
Padre Valdir: As pessoas estão feridas pela violência. A maioria das pessoas já sofreu violências, como assalto, furto, roubo. Isso é comum em nosso meio. Encontrar uma família que nunca sofreu uma violência em São Paulo é raríssimo. E a imprensa colabora, passando só a questão da vingança.
FCOnline: E o que o senhor diz do papel da Igreja nesta questão?
Padre Valdir: As nossas comunidades cristãs e católicas também abandonam as famílias dos presos. Existe o preconceito muito forte entre nós também. Quem dá assistência aos filhos abandonados? As famílias, em sua maioria, ficam totalmente à mercê das organizações criminosas para sobreviver.
Às vezes, em alguns presídios que visito, me sinto até envergonhado. Os presos fazem abaixo-assinado pedindo a presença da Igreja. Em todos os presídios somos muito bem aceitos e a nossa presença é reclamada. Mas, os padres, os catequistas, os religiosos não estão mais presentes. A grande reclamação é sempre de abandono e de esquecimento.
FCOnline: Em que época a Igreja foi mais presente?
Padre Valdir: Durante a Campanha da Fraternidade de 97, houve uma reflexão muito grande sobre a situação dos presos no Brasil todo. Passou aquele momento e tudo esfriou novamente. Começamos um trabalho há alguns anos em SP, para renovar essa preocupação e somos 1.400 agentes de Pastoral Carcerária em todo o Estado. Mas é pouco para uma população de 140 mil presos. Algumas dioceses estão acordando agora para o trabalho, outras ainda muito inertes e apáticas. E grande parte dos presos foi batizada na Igreja Católica.
FCOnline: Os evangélicos ocupam essa vácuo deixado pela Igreja nos presídios?
Padre Valdir: Os evangélicos são muito mais presentes do que os católicos. Só que o nosso trabalho nos dá um diferencial, que faz com que os presos, sendo de qualquer religião, nos aceitem e nos chamem. A Pastoral Carcerária não se preocupa só com a alma, mas sim com a alma encarnada de suas relações, ou seja, com o presídio, com os funcionários, com a família e com a sociedade. Atuamos muito com as política públicas para melhorar o sistema prisional e todos que estão envolvidos nele.
FCOnline: E qual as saídas, na sua opinião, imediatas para esta crise?
Padre Valdir: As imediatas são que os presídios tenham escola, trabalho e atendimento à saúde. Que as famílias dos presos sejam acompanhadas em seus municípios e comunidades.
Também há a questão da Justiça, para que tudo o que a Lei seja cumprida, como por exemplo, a visita mensal do juiz nos presídios, a visita do Ministério Público e do Conselho Penitenciário e a criação urgente dos Conselhos da Comunidade, onde ainda não existem. E aonde eles existem, que eles comecem a trabalhar, com a visita periódica aos presídios, trazendo a realidade de lá para a sociedade e vice-versa, levando escola, trabalho e acompanhamento.
FCOnline: O que é Conselho da Comunidade?
Padre Valdir: O Conselho da Comunidade é um grande braço na área jurídica para o sistema prisional. Depende do juiz de cada comarca criá-lo com urgência. Pela Lei de Execução Penal, todo juiz deve criar este grupo para apóia-lo, atuando dentro dos presídios. Inclui pessoas da OAB, comerciantes, profissionais da área social e representantes de entidades sociais. Já existem alguns. Em SP, já existem há um ano, mas ainda não funcionam e não visitaram um presídio sequer.
FCOnline: E a longe prazo? Quais as medidas?
Padre Valdir: Os centros de ressocialização. Já foram criados alguns no Estado de São Pauoo e estão dando certo. São pequenos presídios, para um máximo de 200 presos, e se localizam numa região próxima ao presídio. Têm assistência técnica e jurídica e a sociedade é convidada a atuar dentro deles. Isso vem dando um bom resultado e deve ser expandido para todo o Estado.
FCOnline: O que o sr. acha da política da Tolerância Zero, aplicada em Nova York, e da criação dos presídios federais?
Padre Valdir: Não seriam a solução. Os modelos de outros paises não servem para o Brasil. Temos de tratar a nossa própria realidade. Nem sequer a solução de presídios federais, com um protótipo para todo o país, não funcionaria. Pois um presídio da região Norte não pode ser igual à da região Sul. São regiões e culturas diferentes. Tomar medidas intolerantes como essas é jogar gasolina no fogo.
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