A separação operada pelo pensamento cristão entre metafísica e física vem sendo progressivamente abandonada: tudo precisa voltar a ser “física”. A teoria da evolução vai se delineando como a via para finalmente provocar o desaparecimento da metafísica e tornar supérflua a “hipótese de Deus” (Laplace), formulando uma explicação estritamente “científica” do mundo. Uma teoria da evolução que queira explicar toda a realidade torna-se uma espécie de “filosofia primeira”, que, por assim dizer, representa o verdadeiro fundamento da compreensão racional do mundo. Qualquer tentativa de colocar em ação causas diferentes daquelas elaboradas por tal teoria “positiva”, qualquer tentativa de “metafísica”, é tachada como um retrocesso para uma era anterior ao iluminismo, como renúncia à aspiração universal da ciência. Portanto, a idéia cristã de Deus deve ser considerada não-científica. A ela não corresponde mais nenhuma theologia physica: em tal visão, a única theologia naturalis é a teoria da evolução; e esta, justamente, não conhece nenhum Deus, nenhum criador, no sentido dado ao termo pelo cristianismo (pelo judaísmo e pelo islã), nem uma alma do mundo e nem mesmo uma força propulsora ou dynamis, no sentido da “stoa” [escola estóica]. No entanto, no sentido do budismo poder-se-ia considerar todo este nosso mundo como uma aparência, e o nada seria a verdadeira realidade; nesse sentido, justificam-se formas místicas de religião, que pelo menos não competem diretamente com o iluminismo (ou seja, com a razão).
Com isso, está dita a última palavra? A razão e o cristianismo estão definitivamente separados entre si?
De qualquer modo, não há como fugir da discussão sobre o alcance da teoria da evolução como filosofia primeira e sobre a exclusividade do método positivo como a única modalidade da ciência e da racionalidade. Essa discussão deve ser empreendida por ambas as partes de modo sereno e com disposição para o diálogo, o que até agora tem sido muito difícil.
Ninguém pode seriamente colocar em dúvida as provas científicas em relação aos processos microevolutivos. Reinhard Junker e Siegfried Scherer, em seu “manual crítico” sobre a evolução, dizem: “Tais processos (processos microevolutivos) tornaram-se bem conhecidos a partir dos processos de variação e de formação naturais. O exame deles mediante a biologia da evolução permitiu a aquisição de importantes conhecimentos sobre a genial capacidade de adaptação dos sistemas vitais”. Eles afirmam, conseqüentemente, que o estudo das origens pode ser bem definido como a disciplina principal da biologia. Portanto, a pergunta que um crente faria à razão [evolutiva] não se refere a isso, mas à sua pretensão de se tornar philosophia universalis, explicação global do real, e assim rejeitando qualquer outro nível de pensamento. No seio mesmo da teoria da evolução o problema aparece quando da passagem da micro para a macroevolução. Sobre isso, porém, Szathmáry e Maynard Smith – ambos convictos defensores de uma teoria globalizante da evolução – declaram: “Não há nenhum motivo teórico para se presumir que as linhas evolutivas, com o tempo, aumentem de complexidade; não há nenhuma prova empírica de que isso ocorra”.
A questão que devemos levantar vai mais fundo: o problema é se a teoria da evolução pode se apresentar como teoria universal de todo o real, além da qual não são mais admissíveis e nem mesmo necessárias ulteriores perguntas sobre a origem e sobre a natureza das coisas; ou se tais questões últimas não podem ultrapassar o âmbito do que é possível investigar só com as ciências naturais.
Gostaria de colocar a pergunta de uma forma ainda mais direta. Será que já se disse tudo com um tipo de resposta como aquela que encontramos, por exemplo, na seguinte formulação de Popper: “A vida, tal como a conhecemos, é constituída por corpos físicos (ou melhor, por processos e estruturas) que resolvem os problemas. As diversas espécies aprenderam isso através da seleção natural, isto é, através do método da reprodução mais variação; um método que, por sua vez, foi aprendido com o mesmo método. Isso é um regresso, mas não é infinito...”? Não acredito.
Em última análise, trata-se de uma alternativa que não pode ser resolvida só naturalisticamente e nem mesmo filosoficamente. Trata-se da questão se a razão ou o racional surgiu por acaso e por necessidade (ou, com Popper, que se reporta a Butler, por luck e cunning – o acaso fortuito e a previsão), portanto do irracional, se a razão é um subproduto casual do irracional finalmente irrelevante no oceano do irracional, ou se continua sendo verdade a convicção basilar da fé cristã e de sua filosofia: In principio erat Verbum – na origem de todas as coisas está a força criadora da razão.
A fé cristã é, hoje, tal como no passado, a opção pela prioridade da razão e do racional. Tal questão última não pode mais – como dissemos – ser decidida com argumentos derivados das ciências naturais, e até mesmo o pensamento filosófico bate-se, aí, contra os próprios limites. Nesse sentido, não há uma demonstrabilidade última da opção cristã fundamental. Mas a razão poderia verdadeiramente renunciar à prioridade do racional sobre o irracional, à prioridade do Logos, sem se auto-anular?
O modelo de explicação apresentado por Popper, que com variações diversas retorna à apresentação da “filosofia primeira”, demonstra que a razão não pode deixar de pensar também o irracional segundo a sua medida, portanto racionalmente (resolver problemas, aprender métodos), restabelecendo desse modo, implicitamente, o primado da razão, que acabara de ser negado.
Mediante a sua opção pelo primado da razão, o cristianismo continua sendo, ainda hoje, “iluminismo”. Eu penso que um iluminismo que cancele essa opção, contra todas as aparências, não representa uma evolução, mas uma involução do iluminismo.
Vimos que na concepção do cristianismo primitivo os conceitos de natureza, homem, Deus, ethos e religião estavam indissoluvelmente ligados entre si e que justamente essa imbricação contribuiu para a racionalidade do cristianismo na crise dos deuses e na crise da antiga racionalidade. A orientação da religião para uma visão racional da realidade em geral, o ethos como parte dessa visão e a sua concreta aplicação sob o primado do amor combinavam-se perfeitamente. O primado do Logos e o primado do amor mostraram-se idênticos. O Logos não apareceu só como razão matemática na base de todas as coisas, mas como amor criativo até o ponto de se tornar compaixão com a criatura. O aspecto cósmico da religião, que adora o Criador na força do ser, e o seu aspecto existencial, a exigência de redenção, confluíram e se tornaram um unicum.
De fato, qualquer explicação da realidade que não seja capaz de fundar significativa e racionalmente um ethos permanecerá insuficiente. Ora, a teoria da evolução, lá onde se arroga o status de philosophia universalis, procura fundar de novo evolucionisticamente também o ethos. Mas esse ethos evolucionista, que reencontra inevitavelmente o seu conceito-chave no modelo da seleção, portanto na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação bem-sucedida, tem a oferecer algo muito pouco consolador. Mesmo quando procura melhorá-lo de vários modos, continua sendo, em definitivo, um ethos impiedoso. A tentativa de instilar o racional em algo que é irracional em si fracassa aí de modo evidente.
Para uma ética da paz universal, do amor efetivo ao próximo, da necessária superação do particular, de que temos necessidade, tudo isso tem pouca serventia. Nessa crise da humanidade, a tentativa de dar novamente um sentido racional à idéia do cristianismo como religião verdadeira deve, por assim dizer, apoiar-se em igual medida na ortopráxis e na ortodoxia. Seu conteúdo, hoje, tal como no passado, deve consistir essencialmente no fato de que o amor e a razão, como dois verdadeiros pilares do real, confluem mutuamente: a verdadeira razão é o amor, e o amor é a verdadeira razão. Em sua unidade, eles constituem o verdadeiro fundamento e o objetivo de todo o real.
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