* Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e biólogo, professor e pesquisador nas áreas de Bioética, relação Igreja e cultura, e Ecologia Social, é coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
O que fazer diante de crimes hediondos? Como trabalhar educação sexual e métodos contraceptivos? Esses temas - destaques recentes nos jornais - parecem distantes um do outro, mas respiram as mesmas pretensões e contradições da cultura moderna.
A modernidade se estruturou em torno do ideal da autonomia individual, supondo que a liberdade e a realização do eu corresponderiam à independência de laços e limitações materiais ou sociais. A ética liberal se organiza buscando administrar os conflitos nascidos do inevitável choque entre vontades e realidades que nasce dessa nossa auto-imagem. Essa autonomia, ainda que permita um aparente exercício das vontades, não parece trazer a prometida felicidade e realização pessoal. O reino da autonomia, mais que o lugar da realização, é o lugar da solidão... Mais que o lugar da solidão, é o lugar do vazio.
O problema não reside na autonomia, e sim na racionalidade pragmática e utilitarista, que tudo analisa apenas em suas relações causa-efeito, vendo apenas funcionamentos e utilidades. O mundo humano não consiste apenas de funções e usos. O que o caracteriza é ser um mundo de significados, de sentidos. O outro conta não só por aquilo que eu posso fazer-lhe (ou que ele pode fazer-me), mas pelo que me revela a respeito de mim mesmo e da minha sede de realização.
Muitas discussões e práticas relativas a contracepção, planejamento familiar e educação dos jovens reduzem a questão ao seu aspecto técnico-instrumental, como se soluções biológicas eficientes bastassem para resolver os problemas humanos. Em nome de uma pretensa autonomia das consciências, o instrumento é apresentado sem a reflexão sobre o sentido subjacente a seu uso. Porém, a própria ausência de reflexão oferece, em si, um sentido: o outro é alguém com o qual conseguir o máximo e se comprometer o mínimo. Quando se trata, por exemplo, dos Parâmetros Curriculares Nacionais, obrigatórios no sistema educacional brasileiro, fala-se muito na "educação sexual" e pouco na "educação afetivo-sexual". A visão da afetividade oscila de uma conseqüência da sexualidade a uma opção individual, excluída do processo educacional.
A convivência com o crime hediondo e com a morte aparentemente absurda retoma, sobre outros aspectos, a mesma problemática. Novamente, os percalços da autonomia dos indivíduos e a busca por um sentido na realidade. Diante dessas situações, não existe um clima adequado para se encontrar a resposta à pergunta "qual a melhor forma de evitar que isso volte a acontecer?", sem enfrentar outra pergunta, "qual o sentido desse sofrimento horrendo e absurdo?". Mas existe apenas uma resposta realmente satisfatória, correspondente ao desejo humano, para a pergunta sobre o sentido das coisas. O único sentido pelo qual clamamos é o amor. Qualquer outro, quando levado às últimas conseqüências, se revela desumano e destruidor da própria pessoa.
Aqui reside a importância do perdão. Todos somos chamados a perdoar e ser perdoados, pois todos somos, em alguma medida, vítimas e algozes de algum mal. O perdão recoloca, diante da dor, a possibilidade do amor. A única forma de se enfrentar a perda - sem esquecimentos, racionalizações absurdas ou hipocrisias - é torná-la um caminho para crescer no amor. Isso permite reencontrar um sentido no real, e o sentido é capaz de nos dar forças para enfrentar adversidades que pareciam intransponíveis.
Bento XVI retoma, em sua pregação, a questão do amor verdadeiro, que não destrói a si mesmo como fogo que consome o carvão que lhe dá vida. Esse amor só pode ser descoberto quando se evolui do justo desejo pelo outro até a doação de si a ele. Por isso, a educação da sexualidade e o planejamento familiar devem contemplar não só técnicas contraceptivas que dão autonomia para ter satisfação junto ao outro, mas também o crescimento na doação de si a ele, aos filhos e a todos os que necessitam. Também para enfrentar os crimes hediondos deve-se olhar o mundo a partir do amor, com a dor e a positividade inerentes a esse olhar... Mesmo que isso implique num reposicionamento da racionalidade moderna, que se recusa a enfrentar a questão do sentido do real.
Vivemos numa sociedade laica, onde Estado e Igreja não devem se confundir. Nesse contexto, a Igreja deve colocar com clareza o sentido de suas ações. Ela propõem , a cristãos e não-cristãos, as mesmas perguntas e propostas de diálogo: o que satisfaz o nosso coração? pelo que vale a pena viver? como agir para sermos felizes?
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