Conferência de D. Claudio Hummes, cardeal-arcebispo de São Paulo na abertura do Seminário Internacional Cristianismo - Filosofia, Educação e Arte 2: "Ética e situações-limite", Faculdade de Educação da USP, 16-4-02
Apresentação - Profa. Dra. Selma Garrido (Diretora da Fac. de Educação da USP)
Em nome da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, como diretora da Faculdade, tenho muita satisfação em dirigir breves palavras de boas-vindas a todos os colegas e convidados e especialmente a Dom Claudio Hummes. Dom Claudio, é um motivo de muita satisfação e orgulho recebê-lo na Faculdade. Nós acompanhamos - e procuramos colaborar -, a partir deste nosso espaço, as importantes questões que a Arquidiocese de São Paulo vem trabalhando, especialmente naquilo que diz respeito à temática deste Seminário, que é a questão da inclusão dos excluídos.
Participantes: Jean Lauand (FEUSP), Dom Cláudio Hummes, Selma Garrido (Diretora da Fac. de Educação USP), Gilda N. M. de Barros (FEUSP), Celso Beisiegel (Chefe do Dep. Filosofia de FEUSP)
Conferência de D. Claudio (seleção e edição Hermenegildo Marianetti Neto)
Eu quero saudar a todos, de modo especial a presidente da mesa, Profa. Selma Garrido, diretora da Faculdade de Educação da USP, e os demais mesários. Agradeço o convite do Professor Lauand, organizador deste Seminário, para esta noite poder compartilhar com vocês este assunto que interessa muito aos nossos tempos e, de modo especial, também à Arquidiocese de São Paulo. Quero saudar os estudantes, as estudantes, os senhores, as senhoras, todos, enfim, que aqui estão. E me sinto muito feliz, de verdade, de estar aqui. Trabalhei também em universidade antes de ser bispo, fui professor de filosofia por muitos anos e tenho muito amor à vida universitária.
Cheguei a São Paulo, há quatro anos, para suceder ao nosso caríssimo e grande Cardeal D. Paulo Evaristo Arns. Claro que isto para mim representou um grande desafio. E eu me perguntava, como dar continuidade a esse seu trabalho e atualizar a atuação e presença da Igreja, sua atuação social, dentro do contexto da fé cristã... Porque as grandes questões humanas - e a questão da solidariedade - têm muito que ver com a fé cristã, com a mensagem de Jesus Cristo.
Há aí duas vertentes: por um lado, retomar a questão da evangelização: apresentar as razões pelas quais a Igreja se interessa pelos pobres, oprimidos e excluidos. Por que devo ocupar-me do próximo, ocupar-me do outro?
E o outro eixo era a propria continuidade da solidariedade, dessa presença, dessa militância da Igreja naquilo que tem que ver com a dignidade humana, com os direitos humanos, com a liberdade, com a exclusão. E é aí onde vivemos nossa fé cristã; a fé se transforma em ação e nós chamamos isto de caridade. A palavra "caridade" anda tão desgastada e carente de elementos conceptuais mais fortes (desvirtuada, acabou identificando-se com dar alguns centavos de esmola...) e nós procuramos resgatar a verdadeira caridade, trabalhando mais objetivamente e mesmo mais cientificamente... Começamos por uma nova avaliação da realidade da pobreza e da exclusão em São Paulo e estabelecemos o "Seminário da Caridade", um seminário permanente e dura já mais de um ano.
Como estamos desenvolvendo este Seminário? Na arquidiocese começamos por fazer um grande levantamento de todas as obras sociais da Igreja. De todos aqueles que são católicos e se reúnem e estão levando em frente alguma obra social. Tivemos uma surpresa, porque são milhares de obras! Isso é bom para conhecer de novo a sociedade. Porque às vezes a mídia acha uma obra interessante e faz uma grande propaganda e parece que é a única obra em que se está trabalhando em toda esta grande São Paulo, quando são milhares. E não é para um ufanismo, para a gente se orgulhar das obras. É para aquilo que Jesus Cristo dizia: para que, vendo as suas boas obras, glorifiquem o Pai, que está no céu. O cristão tem que dar testemunho e ter visibilidade o seu testemunho.
Hoje, mais ainda, numa sociedade tão complexa como a nossa, que tem um pluralismo muito grande. A Igreja precisa de visibilidade pelo simples fato de que Deus se fez visível em Jesus Cristo. Deus quis ser visível para nós. Deus se fez homem exatamente para se tornar visível para nós. E a Igreja deve ser visível porque dá continuidade a Jesus Cristo. Ela deve ser visível também em suas obras. Ela dá testemunho pela caridade. Isso é até um aspecto sacramental. Os sacramentos têm sinais próprios perceptíveis. E é curioso que ainda hoje haja a questão das imagens, que algumas pequenas comunidades evangélicas levantam. Mas se Deus se fez imagem em Jesus Cristo... e essa questão, portanto, está superada: essa questão não existe! Deus quer ser imagem, quer ser visível, perceptível. É claro que não podemos adorar imagens. E ninguém adora imagens. Apenas, pelas imagens, chegamos às realidades.
O segundo passo foi fazer o mapa da pobreza. Definimos oito grandes áreas em que a exclusão aparece mais como pobreza, miséria, fome, carência, etc. E para isso pedimos o auxílio das universidades, pois a Igreja não é especialista em levantamentos... A Igreja quer fazer um trabalho a partir de um novo estudo científico e também sociológico, junto com esse auxílio das universidades, que eu aqui quero mais uma vez agradecer. Porque não podemos trabalhar com dados "chutados" (fáceis de serem aceitos em nossos pequenos encontros em pastorais com gente simples...): eu lembro, por exemplo, que há alguns anos circulava um dado: 3 milhões de favelados na Arquidiocese de São Paulo; aí veio a Erundina, que nesse ponto é insuspeita porque é da esquerda, mandou contar e não chegava a um milhão... E o "chute"era de 3 milhões!!!
"Chuta-se" muito na Igreja, desrespeitam-se dados, fontes..., aí vem alguém mais entusiasmado e sai por aí dizendo que são 3 milhões... Por isso nós queremos manter aberto esse canal com as universidades (como também abrimos canais com a Prefeitura: é claro que a Igreja não pode trabalhar sozinha e tem o dever de exigir políticas públicas...). Por exemplo, um dado surpreendente que apareceu no nosso mapa da exclusão foi que a grande concentração de pobreza em São Paulo está em Santo Amaro (mais do que na Zona Leste, como seria de esperar!)
Por isso, queremos a parceria com as universidades. E as universidades também têm o dever e também - eu sei -, hoje, o desejo de estar mais presentes na comunidade; de não ser alguma coisa meio aérea, lá em cima que trabalha meio distante, porque, afinal, é a universidade, a intelectualidade, a pesquisa e não tem nada que ver com o comum dos mortais... Não, hoje a universidade sabe cada vez mais e quer cada vez mais estar muito presente na vida da comunidade. E a Igreja quer oferecer também esse canal de retorno. Nós queremos ter ida e volta com as universidades, para que elas nos ajudem a nós, Igreja, a ser melhor presença na sociedade e, sob esse aspecto, nos dêem uma qualificação mais científica, mais objetiva em nossa presença.
Então, o que é caridade? O tema que me foi proposto foi Ética e solidariedade: o verdadeiro conceito de caridade cristã. A caridade cristã vem daquele preceito de Jesus Cristo: Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros. Jesus disse isto: O meu mandamento é que vos ameis uns aos outros. Num outro momento, Ele diz: Vocês são todos irmãos. Vocês são todos irmãos...
Essas coisas são revolucionárias, elas mudam tudo. Se você, de fato, faz disso um programa de vida, tudo muda. Sobretudo hoje numa sociedade muito excludente, que aprofunda as desigualdades, que acaba excluindo no sentido de que nós não somos mais importantes, os que não estamos incluídos. Por exemplo uma África: metade da África pode afundar e ninguém está interessado. E isso não pode acontecer!! Para nós, cristãos, isso é inaceitável. Porque hoje não é mais necessário esse mundo de gente para produzir; se produz de outra forma. O próprio desemprego, cada vez maior, que vem com toda a globalização e o neoliberalismo e toda a tecnologia nova, que são coisas boas: a tecnologia nova é coisa ótima e eu acho que a ciência tem que continuar, a tecnologia tem que se aperfeiçoar, mas temos que encontrar formas que incluam a todos e façam que os benefícios disso sejam distribuídos a todos. Aí é que está a caridade no seu sentido maior, de que realmente todos - todos, sem exceção - devem ser incluídos. E nós temos que fazer tudo para que isso aconteça, para que todos tenham igualmente seus direitos reconhecidos e a sua oportunidade de vida. Todos, sem distinção, todos os seres humanos. A caridade vai nessa direção. E isso é ética. Ética é reconhecer a dignidade do ser humano e agir segundo a dignidade inviolável de cada ser humano. Esse respeito, essa promoção... Reconhecer os direitos, promover os direitos. Porque não é só reconhecer os direitos; é promover os direitos também. E a caridade ainda inclui justiça social, solidariedade e tudo aquilo que ajuda a promover as pessoas, a libertar as pessoas de todas as suas opressões.
Tudo isso está incluído na caridade. Só que a caridade tem alguns elementos novos. A justiça, que deve sempre ser promovida, pela qual devemos sempre lutar, é um dos ingredientes da caridade. O direito à justiça é um dos ingredientes da caridade. No entanto, a justiça sozinha não consegue cuidar das pessoas. Porque a justiça cobra, mas, por essência, não perdoa. A caridade perdoa...
Pensemos, por exemplo, no conflito entre Israel e o povo palestino. Nós podemos e devemos ali clamar pelo direito de cada um desses povos ter um território contínuo, que seja seu, onde possa ser um país autônomo, com soberania, autodeterminação, como qualquer outro neste planeta, com segurança e com o devido respeito pelo vizinho. Porém, se eles não conseguirem também perdoar, será muito difícil o futuro. Porque ao perdoar você reconstrói as coisas que ficaram feridas. Se não houver perdão, haverá sempre aquele impulso interior de vingar o que ficou para trás. A caridade diz: "não, você deve conseguir perdoar". Senão, não se constrói um futuro depois de um conflito.
Então, a caridade tem elementos cristãos muito fortes. Hoje nós entendemos como caridade todo esse conjunto. Por exemplo, Jesus Cristo tem algumas palavras muito fortes. Vou lembrar a vocês. Ele, por exemplo, disse aquela frase muito estranha: "Se te baterem na face direita, oferece a esquerda". Mas que coisa estranha! Isso porque os judeus tinham o "dente por dente, olho por olho". Diziam: "Se ele lhe arrancar um dente, você tem o direito de arrancar um dente dele também". Jesus disse: "Não", porque você não pode sempre responder com violência a uma violência. Aliás, você nunca deveria responder com violência. Era a questão da violência. Na medida em que você responder com violência, o ciclo não termina mais. Nós sabemos como em certas regiões do Brasil existem as vinganças entre as famílias, que não terminam nunca. Como existe na Máfia da Itália. Uma coisa chama a outra: violência é cobrada com violência. Não se consegue sair da violência, a não ser se alguém diz: "Não, eu não brigo mais. Você pode me bater, mas eu não vou responder. Senão, nós não terminamos. Nós vamos constantemente destruir, em vez de construir".
Outra palavra que Ele disse: "Amai os vossos inimigos". E todo o mundo ficou perplexo... Amai os vossos inimigos... e perdoai. Ele chegou a perdoar aqueles que o crucificaram.
Então, são elementos muito fortes, que, de fato, nós sabemos que são necessários para uma convivência humana possível, digna. A caridade, em todos esses elementos, é fundamental para uma convivência humana digna.
Muito obrigado.
fonte: http://www.hottopos.com/videtur15/dclaudio.htm |