( * ) Padre João Carlos Petrini é doutor em Ciências Sociais, diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família e coordenador do Mestrado em Ciências da Família da UCSal de Salvador. É autor de Pós Modernidade e Família, publicado pela EDUSC em 2003, além de artigos em revistas nacionais e estrangeiras. E-mail: jcpetrini@terra.com.br
Sumário:
1. Moralidade: eu Te respondo com meus atos
2. O moralismo: normas e regras
3. Na sociedade do espetáculo, o importante é não ser visto
4. De Maquiavel à emancipação da influência religiosa
5. Uma nova antropologia no horizonte do mercado
6. O niilismo, última etapa da modernidade
7. Ética na política
1.Moralidade: eu te respondo com meus atos
O noticiário recente do Brasil e do mundo está repleto de fatos que documentam ações de corrupção em diversos níveis da vida pública e privada, a ponto de muitas pessoas ficarem preocupadas e desanimadas, sem saber em quem confiar.
Na realidade, a corrupção, a trapaça, a violência são tão antigas quanto o gênero humano. Basta lembrar o Profeta Amós, que diz: “Vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos pobres” (Am 2,6-7). Há muitas passagens semelhantes na Sagrada Escritura.
A tradição católica fala do pecado original, como uma ferida que dificulta ao ser humano caminhar na verdade, na justiça, no bem. Temos necessidade de Alguém que nos cure dessa ferida e nos salve. Mas há alguma diferença entre a situação do tempo de Amós (e dos outros profetas) e a dos tempos atuais: o povo da Aliança tinha consciência de ter sido eleito, escolhido, tratado com amor preferencial, especialmente em algumas circunstâncias, a mais importante delas sendo a saída da escravidão do Egito, quando Deus interveio “com mão forte e braço estendido”. Eles esqueciam a Aliança, ou a ignoravam, deixando prevalecer o próprio interesse particular, mas tinham um ponto de referência, de juízo, tinham os profetas para recordar o compromisso com Deus. Era possível converter-se, isto é, retornar à Aliança. Em outras palavras, o ideal de vida era claro, mesmo que a fragilidade levasse muitas pessoas a abandoná-lo. Mas sempre era possível reavivar o ideal, enquanto ele estava no horizonte, ainda que encoberto pela distração ou por interesses contrários.
Com efeito, a moralidade é, acima de tudo, um relacionamento de afeição que orienta a conduta. Uma criança que brinca com colegas na sala, sabendo que o pai está trabalhando noutra parte da casa, terá suas atitudes determinadas pela consciência da relação com o pai, mesmo que ele não esteja no local para fiscalizar.
Na mentalidade que domina atualmente, o ideal já não é mais uma realidade objetiva, externa ao sujeito, com a qual comparar-se, um Alguém. Pareceu um avanço de civilização quando se procedeu a elaborar normas, regras, preceitos e proibições, dissociadas da Presença do Pai.
2. O moralismo: normas e regras
O moralismo é exatamente a primeira desfiguração da moralidade e consiste num conjunto de normas e regras que a racionalidade define autonomamente, prescindindo daquela relação que tinha a qualidade de ser constitutiva da pessoa.
Com o advento do moralismo, alterou-se a maneira de compreender a responsabilidade. Esta deixou de ser a resposta que o sujeito dá, com suas ações e seus comportamentos, a alguém, a quem está ligado por uma relação recíproca de afeto e que o constitui. Na nova situação, o sujeito responde ao contrato firmado, isto é, a uma contraparte com a qual estabelece um intercâmbio de equivalentes, no horizonte do mercado, onde sujeitos concebidos como iguais e livres assumem compromissos recíprocos.
Aliás, o século XIX conseguiu elaborar modelos de sociedade nos quais o ideal ético não era necessário, pois o bom funcionamento da estrutura sócio-econômica seria capaz de garantir o máximo de justiça e o máximo de felicidade. Esse é um dos pontos nos quais o liberalismo e o socialismo revelam ter uma matriz comum. Com efeito “o bom funcionamento dessas estruturas (concorrência perfeita ou planejamento global, que tenha sob controle o maior número possível de variáveis) se encarregaria de proporcionar, simultaneamente, o máximo de produtividade e o máximo de felicidade, independentemente das intenções subjetivas, da tensão moral e ideal para viver a justiça e a fraternidade” (1). O poeta Eliot dizia que se procura em nosso tempo construir modelos de sociedades tão perfeitas que dispensem o esforço moral dos homens para uma convivência justa (2).
Nesse horizonte, o ideal, quando ainda permanece, reduz-se a um discurso, a intenções e propósitos, subjetivamente assumidos e eventualmente partilhados com outros. Não há um ponto de referência e de juízo que seja, simultaneamente, externo ao sujeito e interiorizado por ele. A única preocupação passa a ser o respeito formal dos compromissos assumidos, mesmo que, de um ponto de vista substancial, efetivo, as coisas sejam bem diferentes.
3. Na sociedade do espetáculo, o importante é não ser visto
A única instância que talvez possa constituir um freio aos apetites humanos é o cuidado para não ser visto ao infringir as normas. É evidente a inconsistência de uma moralidade que se apóie apenas no medo de ser apanhado em flagrante, de ser descoberto, de ser filmado ao cometer uma falcatrua. Se é verdade que vivemos na “sociedade do espetáculo” (3), compreende-se que o que importa é representar bem o papel de mocinho, mesmo que a natureza mais íntima seja a de bandido. Não faltam exemplos disso em nossa história recente. Todo o cuidado é para que a imagem, construída com habilidosas operações de marketing, não seja destruída, deixando ver a realidade por trás da aparência.
É inevitável que se desencadeie uma espécie de aventura, em que a esperteza para não ser descoberto disputa um jogo com a possibilidade de ser apanhado. Trata-se de um jogo arriscado, é verdade, mas, por isso, fascinante, nos tempos em que estão em moda esportes radicais para produzir adrenalina. Há formas de produzir, além de adrenalina, muito dinheiro fácil. E, em época mais recente, parece não ser mais tão importante “não ser visto”, mas não ser punido. Nesse terreno, aumentam os recursos para conseguir a impunidade ou uma pena relativamente leve, quando comparada com os benefícios acumulados e devidamente guardados. O caso da funcionária do INSS que desviou milhões de reais é exemplar a esse respeito (4). As sanções legais (ser preso), a desaprovação dos amigos, a reação escandalizada da mídia não são suficientes para desestimular um comportamento antiético.
O compromisso ético assumido com decisão voluntariosa também sofre de uma incurável fragilidade e não resiste à prova dos fatos, como os noticiários da imprensa estão amplamente documentando. Aliás, não são poucas as circunstâncias na quais a pessoa que não aproveita a situação para o próprio benefício, para tirar sua vantagem, não somente se considera otária mas assim também é considerada pelos colegas, a ponto de sentir vergonha por ter impedimentos morais que funcionam como freios inibidores, tabus que sinalizam barreiras intransponíveis. Uma pessoa assim parece anormal.
As páginas que seguem pretendem apresentar algumas etapas históricas e culturais através das quais se passou de uma percepção da ética na convivência social e política como compromisso da Aliança com o Mistério tremendo e fascinante (5) à situação atual, que idealiza a figura do experto predador.
4. De Maquiavel à emancipação da influência religiosa
A modernidade firmou-se, no Iluminismo, como saída do homem de sua menoridade, como autonomia ante as Igrejas e ante aquelas tradições culturais que constituíram, durante mais de um milênio e meio, o ponto de referência para os homens e as mulheres da Europa e para os povos que viveram sob sua influência religiosa, política e cultural (6). A emancipação era o ideal formulado por Kant no breve escrito “Aufklärung” (7) (o que é o Iluminismo), de 1783. Subtrair-se à autoridade do Papa e da Bíblia seria a condição para o homem tornar-se finalmente autônomo, do ponto de vista gnosiológico, ético e estético.
Cerca de trezentos anos antes, Nicolau Maquiavel tinha teorizado a autonomia da política em relação a qualquer ponto de referência ético, afirmando que, em política, os fins justificam os meios. “Nos atos de todos os homens, em especial dos príncipes, em que não há tribunal a que recorrer, somente importa o êxito, bom ou mau. Procure, pois, um príncipe vencer e preservar o Estado. Os meios empregados sempre serão considerados honrosos e louvados por todos” (8). E, logo antes, ele afirmara: “Não é preciso que o príncipe tenha todas as qualidades mencionadas [ele se refere à piedade, à fidelidade, à humanidade, à integridade e à religiosidade]; basta que aparente possuí-las” (9).
O pensamento de Maquiavel teve uma acolhida cada vez maior, à medida em que se formava o Estado moderno. Bobbio, na grande obra Teoria Geral da Política, retomando o pensamento de Maquiavel e reafirmando a duplicidade de critérios e de horizontes valorativos, quando se trata de julgar a práxis humana do ponto de vista político e do ponto de vista moral, escreve: “Aquilo que chamamos de autonomia da política nada mais é que o reconhecimento de que o critério com base no qual se considera boa ou má uma ação política é distinto do critério com base no qual se considera boa ou má uma ação moral. Enquanto o critério com base no qual se julga uma ação moralmente boa ou má é o respeito a uma norma cujo comando é considerado categórico, independentemente da ação (‘faça o que deve ser feito e aconteça o que tiver de acontecer’), o critério com base no qual se julga uma ação politicamente boa ou má é pura e simplesmente o resultado (‘faça o que deve ser feito para que aconteça aquilo que você quer que aconteça’)” (10).
A compreensão da ação moral aqui descrita e compartilhada por grande parte do mundo intelectual, com suas raízes em Maquiavel, está mais afinada com a perspectiva kantiana da moralidade, isto é, com um imperativo categórico ditado pela razão, do que com o horizonte propriamente cristão, delineado pela resposta dada a Alguém, em contexto de afetividade. Quando, então, essa maneira de entender a ação moral é comparada com a ação política, nota-se uma certa confusão, um modo de apresentar o problema que não favorece a clareza.
O homem moderno reconhece que tem falhas, imperfeições, erros, no entanto cultiva a certeza de poder corrigir, pelo progresso da ciência, pelo desenvolvimento do conhecimento, essas imperfeições. A razão estaria à altura da redenção do homem, do aperfeiçoamento da sociedade; ela seria capaz de sanar seus males. Por isso, o homem moderno não pode admitir o pecado, isto é, uma raiz de mal, uma ferida que somente um poder divino poderia curar. Reconhecer o pecado significa abrir espaço para um Salvador, para alguém de fora do horizonte humano, para a presença de alguém misericordioso, que perdoa e restaura a vida. É exatamente isso que o homem moderno combateu e combate.
A ética na convivência social e na política começa a perder importância não somente pela conhecida fragilidade e pela incoerência, próprias da condição humana, mas por se acreditar que no mundo moderno a sua presença criaria interferências danosas à convivência social e à arte de bem governar.
Os fundamentos éticos sobre os quais a sociedade ocidental se construiu são fundamentalmente os valores cristãos, que, a partir do Iluminismo, foram submetidos a um sistemático processo de secularização, isto é, foram acolhidos e valorizados enquanto eram depurados dos aspectos especificamente religiosos. Esses valores, retirados do terreno no qual haviam crescido, separados da raiz religiosa que os alimentava, como observou com agudez Romano Guardini (11), parecem esgotados e começam a ser substituídos por outros que têm origem totalmente diferente. Nesse horizonte, o limite para dispor da vida humana, porque reconhecida como sagrada e portanto não negociável, que durante quase 20 séculos manteve, ainda que com muitas contradições, a distinção entre civilização e barbárie, hoje não é mais reconhecido. Aliás, a manipulação da vida humana ou até a sua supressão são apresentadas como sinais de um progresso mais efetivo.
Os fautores do moderno sistema produtivo acham que não há mais necessidade do aporte da tradição cristã para administrar a convivência social e política moderna de maneira progressiva e benéfica aos interesses do mercado. Por ser demasiadamente crítica com relação a tudo o que ameaça a liberdade e a dignidade da pessoa, a moral cristã começou a apresentar mais problemas do que soluções para uma sociedade que parece necessitar de outros valores e de outros direitos, quase sempre divergentes dos consolidados na tradição cristã. O cristianismo deixou, em grande parte, de ser funcional ao moderno sistema produtivo.
5. Uma nova antropologia no horizonte do mercado
O mercado realiza atualmente, com um radicalismo inédito, a sua vocação originária de ser “auto-regulado”, e invade todos os aspectos da existência, até mesmo os recantos mais íntimos da vida familiar e da consciência pessoal, difundindo critérios de comportamento, valores éticos, métodos de cálculo, lógicas de intercâmbio de equivalentes, em sintonia com as exigências do lucro e do poder, realizando a mais ampla colonização do mundo da vida (12).
Até os anos 50 do século passado, a controvérsia entre a sociedade secular e a Igreja referia-se a algum ponto da moral, ao passo que se aceitava a arquitetura “cristã” da existência. Discutia-se, por exemplo, o divórcio, mas se aceitava o matrimônio monogâmico; discutia-se o uso da pílula, mas se aceitava a relação entre sexualidade, amor e procriação. O ser humano era considerado uma unidade indissolúvel de corpo e alma. Agora começa a prevalecer um dualismo antropológico que separa, como mundos distintos, o corpo e o espírito. O corpo passa a ser considerado como um material bruto, sem significado pessoal intrínseco e dominado pelo determinismo das leis biológicas e psicológicas. No desenvolvimento do ser humano entre os pólos da natureza e da cultura, parece prevalecer o pólo da natureza. O espírito, representando o mundo da liberdade, da busca da paz interior, da integração cósmica e da elevação mística, estaria justaposto ao corpo, seguindo suas próprias exigências.
O debate e o combate a respeito de alguns pontos da moralidade cristã constituem apenas uma etapa de um longo processo que desembocaria, em breve tempo, numa nova antropologia, mais correspondente aos novos parâmetros valorativos. Uma nova antropologia quer dizer uma nova imagem de homem e uma nova imagem de mulher, com visões radicalmente diferentes quanto à paternidade, maternidade, uso da sexualidade, compreensão da vida em gestação e da etapa terminal da existência.
Nesse quadro, o matrimônio e a família perdem significado. Diversas agências da ONU tornaram-se caixas de ressonância dessa mentalidade e, nas Conferências de Cairo e na de Pequim, defenderam-se novos direitos, mais condizentes com a emergente imagem de homem e de mulher, de sexualidade, etc. Os “novos direitos”, no entanto, defendidos como sinal de uma maior liberdade (ao aborto, à eutanásia, etc.), constituem, na realidade, a mais sutil submissão à lógica do mercado, que coloniza todos os espaços da vida (13).
Alguns autores falam de mutação antropológica (14), isto é, de uma mudança que vai até a raiz do ser humano, alterando todos os aspectos mais relevantes da existência. Essa mutação parece ter como referencial ideal o niilismo nietzschiano e, como vetor, o mercado, que de maneira sempre mais sistemática coloniza o mundo da vida e impõe seus critérios acima de tudo, via de regra com técnicas de persuasão tão refinadas, que toda a operação assume o aspecto de progresso e de conquista de civilidade.
6. O niilismo, última etapa da modernidade
As promessas modernas de liberdade, igualdade e progresso acessíveis a todos, analisadas por Lyotard e consideradas “metanarrativas”, aparecem como fabulações sem fundamento, que revelam agora sua falência (15). O mundo moderno, que parecia tão sólido em suas construções, “desmancha no ar”, como afirma Berman, retomando uma expressão de Marx (16). Por outro lado, a crítica feita pela Escola de Frankfurt à razão iluminista confirma que o problema da crise da modernidade e do impasse diante de tantas questões que permanecem sem resposta não se refere a aspectos superficiais da experiência humana e social. Trata-se da crise da razão, que se tornou instrumento do poder e do lucro. Afirma Horkheimer: “Na era industrial, a razão tornou-se um instrumento, algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la. [...] É como se o próprio pensamento se tivesse reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma, se tivesse tornado uma parte e uma parcela da produção. [...] O significado é suplantado pela função ou efeito no mundo das coisas e eventos. [...] A verdade e as idéias foram radicalmente funcionalizadas. A afirmação de que a justiça e a liberdade são em si mesmas melhores do que a injustiça e a opressão é, cientificamente, inverificável e inútil. Começa a soar como se fosse sem sentido. Do mesmo modo que o seria a afirmação de que o vermelho é mais belo do que o azul, ou de que o ovo é melhor do que o leite. Quanto mais emasculado se torna o conceito de razão, mais facilmente se presta à manipulação ideológica e à propagação das mais clamorosas mentiras” (17).
Nietzsche desenha o esboço desse processo, que vem se consumando nestas últimas décadas, com aportes de natureza teórica, mas principalmente com o desenvolvimento de circunstâncias históricas e culturais que completam o itinerário que, partindo do Iluminismo, chega ao niilismo. Nietzsche anuncia o fim da racionalidade, entendida como reflexo da verdade das coisas. Ao pensamento atribui apenas a tarefa de “escola da suspeita”, propensão a desvendar, atrás de conceitos universais, a máscara de interesses particulares. Renuncia-se, nessa perspectiva, à visão clássica da razão como abertura ao ser e como capacidade de elucidar a natureza das coisas. Isso torna impossível o acesso a certezas indubitáveis. A verdade, então, não mais se apresenta como a manifestação da evidência do ser à subjetividade, mas como um produto da “vontade de potência”. “O problema da verdade transforma-se, assim, em problema de força.” (18) Nietzsche faz também uma crítica radical à moral. Ele não acredita em valores eternos. Segundo ele, os valores são o resultado de uma produção do homem; ele afirma que é preciso destruir a moral para libertar a vida. Os valores passam por um processo de “transmutação”. “O que é bom?”, pergunta Nietzsche, respondendo em seguida: “Tudo o que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau? Tudo o que provém da fraqueza” [...] É por puro preconceito moral que atribuímos maior valor à verdade do que à falsidade”.
O ponto de chegada dessa postura só poderia ser um niilismo radical:
“[...] falta o fim, falta a resposta, o porquê. [...] O devir não tem em vista nada, não se alcança nada [...]. O mundo é uma realidade destituída de sentido e de valor” (19).
No tempo presente, estamos diante da mais ampla difusão do niilismo na sociedade. Não se trata, no entanto, do niilismo trágico, como o de Nietzsche, inquieto na busca de um sentido. Hoje estamos diante de um niilismo soft, que esquece a pergunta do significado e a substitui por uma consideração banal da realidade. Tentou-se silenciar ou não considerar os aspectos da existência que, mesmo de forma indireta, pudessem remeter a uma realidade transcendente. O Papa afirma na Evangelium Vitae: “A vida social aventura-se pelas areias movediças de um relativismo social. Então, tudo é convencional, tudo é negociável” (20). As pessoas e as coisas são tratadas não segundo o próprio valor, de acordo com a própria dignidade, mas de modo reduzido, quer no sentido do utilitarismo, quer no sentido da vulgaridade. Basta pensar na diferença entre o melhor da produção da MPB nos anos 70-80 - quando as músicas eram caracterizadas pelo drama humano da liberdade, do significado - e, do outro lado, uma corrente musical de grande sucesso atualmente, que inclui desde “segura o tchan” até a “egüinha pocotó”.
Hannah Arendt, falando do nazismo, afirma: “Pode-se dizer que esse mal radical surgiu em relação ao sistema no qual todos os homens se tornaram supérfluos” (21).
A cultura de massa, em decorrência disso, especializou-se em oferecer produtos culturais cuja marca principal é a banalidade e certa retórica da vulgaridade. Uma grande parte dos programas da televisão aberta inscreve-se nessa perspectiva, sendo o Big Brother o que deixa mais claras essas características.
Assim, por exemplo, diante do grave problema da gravidez precoce, aconselha-se a camisinha, solução que não exige esforço para promover o amadurecimento dos adolescentes, não apela para a liberdade deles e espera (magicamente) que um meio mecânico resolva o que somente uma maturidade humana maior pode enfrentar.
De forma semelhante, anos a fio de debate sobre a legitimidade do aborto e, mais recentemente, sobre a eutanásia e o uso de embriões para fins terapêuticos evidentemente banalizam a vida humana, demonizando quem se declara contrário a esses procedimentos por razões éticas, qualificando-o de retrógrado, apegado a ideais medievais, contrário ao progresso da ciência, insensível diante do sofrimento de doentes que poderiam ser curados. É difícil não reconhecer um nexo entre a difusão dessa mentalidade e o crescimento de formas brutais de violência.
Seria necessária uma investigação empírica para compreender o grau de influência dessa cultura da banalidade no vertiginoso aumento da violência urbana nestas últimas décadas. Afinal de contas, o relato sobre a banalidade do mal de Hannah Arendt (22), realizado em 1961, por ocasião do processo contra o criminoso nazista Eichmann, constitui uma hipótese que lança uma ponte entre a banalidade e a violência, que abre um itinerário explicativo interessante.
O processo de desconstrução da moralidade de origem cristã, que começou há mais de dois séculos e se intensificou depois da Segunda Guerra Mundial, obteve como resultado a criação de uma mentalidade segundo a qual o ideal moral não somente não é necessário, não havendo razões para cultivá-lo, mas é danoso. A repetição de certas normas e preceitos deveria garantir o bom funcionamento da convivência social. A imposição da linguagem politicamente correta tenta cobrir falhas em áreas protegidas por grupos socialmente influentes, revelando ranços de um autoritarismo que preocupa, na medida em que aponta para a homologação denunciada por Pasolini nos anos 1970.
Na vida privada, cada um pode cultivar o ideal de moral que preferir, mas, na dimensão pública, multiplicam-se pressões e ações simbólicas orientadas no sentido de extirpar o que resta da moralidade de origem cristã. Trata-se de batalhas culturais que, via de regra, não utilizam tanto a argumentação racional, em clima de diálogo e busca do entendimento, mas tendem a estigmatizar os adversários como atrasados, desumanos, contrários ao progresso e à liberdade.
7. Ética na política
Quando se reflete sobre as deficiências éticas em nossa sociedade, não podemos esquecer esse contexto que torna a ética supérflua e contrária ao domínio do mercado.
De repente, quando explode um escândalo de grandes proporções na cena política, os mesmos construtores dessa mentalidade que não deixa espaço à ética rasgam as vestes e apanham pedras, na melhor tradição farisaica, e invocam a ética na política, sem muita coerência com o conjunto de suas ações.
Não se pode pretender que o comportamento ético domine algumas circunstâncias da realidade social, enquanto é condenado e posto em ridículo em tantos outros aspectos da vida. Invocar valores éticos não tem o poder de criá-los e menos ainda de introduzi-los na convivência social. Nesse sentido, certos discursos que evocam ética na política resultam pouco eficazes e até um tanto ridículos.
Na realidade, é necessário um grande movimento educativo, que acompanhe as pessoas e as ajude a terem uma postura diante dos mais diversos aspectos da existência, introduzindo-as à compreensão da realidade total.
A ética na política pode estar presente de duas formas:
1. O ordenamento jurídico constitui um conjunto de leis supostamente justas, pela forma democrática segundo a qual foram formuladas e pela legitimidade do órgão que as promulga. Leis justas protegem a dignidade de cada pessoa e o bem comum, favorecendo a justiça e a solidariedade nas relações sociais. No Estado moderno, democrático, de direito, todos estão submetidos ao ordenamento jurídico, desde o último cidadão até o Presidente da República, do mais pobre ao mais rico. Uma ética civil, racionalmente fundamentada e democraticamente aceita, preside a convivência social e política. Alguns órgãos do governo estão encarregados de zelar pela aplicação dessas leis, reservando ao poder judiciário a solução das contendas e a aplicação das sanções, nos casos de infração. Cabe ao Governo garantir, por meio de seus órgãos, a existência efetiva do estado de direito, e não permitir que as partes em conflito resolvam suas diferenças com base na violência. Também vai longe o tempo no qual o favor e a simpatia do príncipe podiam proporcionar vantagens a uma das partes em conflito. Isso acontecia na Idade Media. O Estado moderno nasce exatamente para superar esses limites.
A primeira forma de exercer a política com ética consiste, portanto, na certeza das leis e na sua vigência efetiva. Atualmente, contra essa certeza e essa eficácia insurgem três problemas:
a) O primeiro problema é a mentalidade segundo a qual o ordenamento jurídico só é observado, reverenciado e entendido como valor diante do público, passando a vigorar outros valores para orientar a conduta nos aspectos da existência subtraídos ao controle social. Em outras palavras, o problema não parece mais ser a observância das leis e, sim, não ser visto no ato de infringi-las. Por que razão alguém deveria obedecer a leis que considera lesivas aos próprios interesses, se pode infringi-las sem ser visto, conseguindo dessa maneira vantagens que respondem aos mesmos interesses? Assim, sonegar impostos, arrecadar verbas por meios criminosos, enriquecer com o tráfico de influência, encomendar a morte de adversários ou até de amigos, quando se tornam perigosos, são práticas que reduzem o espaço da ética na política e na convivência social.
b) O segundo problema é a impunidade. Mesmo quando alguém é apanhado em flagrante violação das leis, são tantos os artifícios jurídicos e as possibilidades de pressão política (especialmente no caso de quem age à sombra do poder) e tão frágeis os órgãos que deveriam garantir a justa punição dos infratores, que acaba prevalecendo a impunidade. Cria-se a mentalidade segundo a qual violar as leis traz vantagens, pois sempre se encontra alguma forma de escapar às sanções ou de reduzi-las a um mínimo tolerável, diante da utilidade conseguida.
c) Por fim, nestes últimos tempos, vê-se que quem partilha dos privilégios do poder pode fazer pressão para desviar a atenção de um problema, retardar ou até anular uma ação investigativa que vise apurar os fatos de maneira incontrovertível. Ou, então, o critério ideológico de um homem do poder é tomado como critério de justiça, por exemplo ao declarar inocentes os índios que mataram garimpeiros, por serem estes invasores da propriedade alheia, antes de qualquer investigação e julgamento realizados por órgãos competentes. No entanto, fica gritante a contradição quando, diante de circunstâncias semelhantes, o critério ideológico manda proclamar exatamente o contrário, declarando inocentes os invasores de propriedades produtivas.
2. Uma segunda maneira de presença da ética na política se dá por meio de uma mentalidade difusa na cultura e assimilada pelas pessoas como parte integrante da própria identidade, e que se caracteriza como religiosidade. Trata-se de uma ética fundada não no consenso democrático, mas na consciência da dependência de um Mistério onipotente e criador. A existência humana é concebida, nessa perspectiva, como relação com esse Mistério, do qual tudo depende e ao qual cada um responde com seus atos. Nesse caso, o comportamento ético não depende de uma norma que obriga mediante pressão externa, mas depende da íntima convicção de que aquele comportamento, que nasce do “Tu" dito ao Mistério, corresponde à verdade e à justiça e é o único modo de proceder que afirma a dignidade de quem assim age.
Essa mentalidade é mais ampla que a ética política, é uma postura religiosa diante da existência.
Durante muito tempo, essas duas formas de ética conviveram entrelaçadas em nossa sociedade, podendo-se atribuir a uma o comportamento que, na realidade, dependia de outra. Mas, especialmente nestas últimas décadas, intensificou-se a luta contra a religião. Alguns temas mais delicados e polêmicos foram tomados como cavalos de batalha para pôr em ridículo posturas religiosas, ignorando as razões mais profunda de certas posições. Renunciou-se à lealdade do debate racional e democrático, para criar uma imagem da religião como sendo contrária ao progresso, à inteligência, ao bem.
Uma mentalidade laicista, segundo a qual “Deus, se existe, não interessa", difunde-se reduzindo, cada vez mais, o espaço de uma ética religiosa.
As circunstâncias atuais, no entanto, parecem confirmar o fato de que uma ética laica, separada de suas origens religiosas, carece de sustentação e perde eficácia, como frutos cujas raízes tivessem sido cortadas. A alternativa a uma ética religiosa acaba sendo, de fato, uma sociedade que se assemelha à descrita por George Orwell, dominada pelo Grande Irmão, que controla cada detalhe da existência de cada (por assim dizer) cidadão. As câmeras de vídeo, a gravar tudo o que acontece, vão cobrindo espaços cada vez mais amplos das nossas cidades (23).
Entre a ética religiosa e o ideal panóptico de controle total que assemelha a sociedade a uma moderna prisão, a primeira parece mais correspondente à dignidade humana e à verdadeira democracia, à formação de uma cidadania efetivamente protagonista da própria história.
Não se trata de lamentar saudosamente a perda de pontos de referência éticos na sociedade atual. É necessário que cada um se envolva num movimento educativo, que recrie o tecido quotidiano da convivência social, subtraída progressivamente à lógica do mercado e a seus critérios, caracterizados pelo cálculo e pelo intercâmbio de equivalentes. Movimentos educativos, que constituem uma companhia guiada ao destino, capazes de gerar espaços de gratuidade e de vida fraterna, de reconhecimento da grande Presença - que é caminho, verdade e vida - existem e podem renovar o gosto pela convivência, a paixão pelo homem, um amor à verdade maior do que o próprio interesse particular, podendo plasmar relações humanas e sociais no horizonte de uma ética.
Notas
1 PETRINI, João Carlos. Pós-modernidade e Família. Bauru, Edusc, 2003, p. 39.
2 Cf. ELIOT, Thomas Stearns. “Coros de ‘A Rocha’”, canto VI. In: Poesia. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 185-187.
3 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
4 A ex-advogada Jorgina Maria de Freitas Fernandes foi denunciada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em maio de 1991, com outras 19 pessoas, pela prática de crimes contra o patrimônio do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), por meio dos quais teria sido desviado o equivalente a 112 milhões de dólares. Depois de ser condenada, em 1992, Jorgina fugiu do País, e só se entregou em 1997, na Costa Rica, de onde foi transferida para o Brasil. Sua pena é de 14 anos de reclusão. Desde 2000, ela a cumpre em regime semi-aberto.
5 OTTO, Rudolf. Lo Santo, lo racional y lo irracional em la Idea de Dios. Madri, Alianza Editorial, 1980.
6 CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas, Unicamp, 1992.
7 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é “Esclarecimento”? (“Aufklärun”), 15 de dezembro de 1783 (Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung). In: Textos seletos. Tradução de Raimundo Vier e Floriano de Souza. Petrópolis, Vozes, 1974, p. 100-117 (ed. bilíngüe).
8 MAQUIAVEL, Nicolau. “O Príncipe”, capítulo XVIII. Tradução de Olívia Bauduh. In: Os pensadores: Maquiavel - O Príncipe e Escritos políticos. São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 111.
9 Id., ibid., pp. 110-111.
10 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 174.
11 GUARDINI, Romano. La fine dell’Epoca Moderna. Il Potere. Brescia, Morcelliana, 1984.
12 Cf. HABERMAS, Jürgen. La teoria de la acción comunicativa, vol 2: Crítica de la razón funcionalista. Madri, Taurus, 1998, p. 451 e ss.
13 Cf. PETRINI, João Carlos. Op. cit., pp. 178-180.
14 Cf., por exemplo, SCOLA, Angelo. O Mistério Nupcial. Tradução de Maria de Lourdes Lima. Bauru, Edusc, 2002.
15 LYOTARD, Jean François. The Postmodern condition: a report nknowledge. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984, p. 24.
16 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moises e Ana Maria L. Iuriatti. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
17 HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro, Labor, 1976, p. 27-32 passim. Cf. também HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialettica dell’Illuminismo. Turim, Einaudi, 1976 (a 1ª edição é de 1947). Cf., ainda, PETRINI, op. cit., pp. 47-54.
18 BARTH, Hans. Verità e Ideologia. Bolonha, Il Mulino, 1971, p. 262.
19 Citações de Nietzsche extraídas de: MACHADO, R. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro, Rocco, 1999, p. 78.
20 JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. 2ª ed. São Paulo, Paulinas, 1995, nº 20.
21 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 510.
22 ARENDT, Hannah. Op. cit.
23 ORWELL, George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2003.
|