A crise econômica mundial representa uma ocasião importante para se repensar a economia mundial. Nesse momento, a Igreja pode contribuir propondo alguns princípios que são fundamentais para a reorganização econômica global: o bem comum, a solidariedade, a subsidiariedade, a importância do trabalho e o primado da pessoa.
A profunda crise financeira que começou a manifestar-se no outono passado (setembro, outubro de 2008) e cujo impacto sobre o desenvolvimento econômico e social ainda é difícil de avaliar pode ser uma ocasião positiva para repensar a ordem mundial da economia e das finanças. É nesta direção que vai a louvável iniciativa do governo italiano de inserir, pela primeira vez, entre as etapas de aproximação do encontro do G8 que ocorrerá em de julho de 2009, também um evento voltado às questões sociais, que ocorreu em 29 de março de 2009.
O tema escolhido para este evento social merece particular atenção: “A dimensão humana da crise: prover à pessoa, partir da pessoa”. Isto por que se o estremecimento das finanças se reverbera definitivamente sobre todo o sistema econômico e, portanto, sobre as pessoas concretas inseridas em seus âmbitos familiares, também a reação não pode ser suscitada por outros que não as pessoas concretas. Isto significa prover à pessoa, protegendo sua dignidade através das adaptações necessárias nos sistemas de atendimento social; partir novamente da pessoa criando as condições para o nascimento de novas oportunidades de trabalho. Estes são temas que estão no coração da Igreja e que estão no centro de seus ensinamentos sociais.
Na raiz da doutrina social encontramos o princípio da dignidade da pessoa. Isto deriva do fato de que a pessoa humana, centro e vértice de tudo o que existe sobre a terra, é o fim de todas as instituições sociais. Assim o respeito à pessoa humana surge como pilar fundamental para a estruturação da sociedade cujo fim é a pessoa mesma (cfr. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, terceiro capítulo).
Em tempos de turbulência econômica, os sistemas de proteção social da pessoa humana devem ser reforçados e renovados afim que as pessoas possam gozar de seus direitos fundamentais, colocados em risco pela própria turbulência. Com este intuito comparar as diversas medidas lançadas pelos diversos sistemas de segurança social será, sem dúvida, de grande utilidade e poderá originar políticas sociais nacionais mais eficientes, adaptadas às difíceis circunstâncias atuais, sem cair em formas deterioradas de assistencialismo (cfr. Centesimus annus n. 48).
A importância do trabalho, que está na origem da moderna Doutrina Social da Igreja, oferece um elemento de sintonia com esse encontro sobre as implicações sociais da crise. Também hoje o trabalho é a chave da questão social tornada, em nossos tempos, questão global. De fato, o trabalho, reconhecido e apreciado, é a chave para que a pessoa possa sair de modo sustentável da pobreza, risco sentido por categorias inteiras de famílias que antes da manifestação da crise sentiam-se seguras.
O trabalho é a causa eficiente do desenvolvimento. É necessário partir do trabalho para satisfazer a necessidade de produzir bens em quantidade suficiente, de qualidade adequada, usando de modo eficaz os recursos técnicos e materiais. Definitivamente é o homem o protagonista do desenvolvimento, não o dinheiro e a técnica, e é apenas a partir do trabalho empenhado que a economia pode recolocar-se em marcha.
Mas não é apenas no plano da doutrina, das ideias, que a Igreja pode dar sua contribuição para encontrar um caminho de saida da crise. A proximidade da estruturas eclesiais às pessoas e às famílias, de modo especial aos pobres, pode ser aproveitada imaginando e estabelecendo de modo criativo sinergias com as iniciativas prometidas pelos aparatos políticos, seja no campo do welfare seja naquele do trabalho.
A crise, como dito, pode ser ocasião para repensar a ordem do sistema economico e financeiro mundial, de concluir aquela revisão da governança global sobre a qual há anos, em diversos níveis, se vem discutindo. Além disso, a necessidade desta revisão se revelou com a emergência de questões trazidas à luz com a globalização, entre as quais as migrações, as questões ambientais, fiscais – todas questões que ainda não foram suficientemente debatidas em nível global.
No plano dos princípios inspiradores daquela que se poderia definir uma restauração, se não uma remodelagem, da arquitetura da governança internacional, a Igreja se sente em condições de propor alguns, valendo-se de sua experiência no campo da fraternidade entre os povos e as nações. Primeiro de tudo aquele bem comum universal, teorizado por João XXIII na Pacem in terris. A compreensão do conceito pode não ser imediata, especialmente em âmbito não cristão, pois pressupõe uma visão universal que tende a considerar a humanidade como reunida em uma família, mas sem uma referência a ele também conceitos já em uso no âmbito internacional como o de bens públicos mundiais (global public goods) não podem ser compreendidos em seu sentido mais profundo. Eis, então, as palavras de Pacem in terris que gostamos de relembrar: “A unidade da família humana perpassa todos os tempos uma vez que esta tem como membros os seres humanos que são todos iguais por dignidade natural. Conseqüentemente existirá sempre a exigência objetiva à atuação, em grau suficiente, do bem comum universal, isto é, do bem comum de toda a família humana” (n.69).
Para repensar a governabilidade global é favorável, além disto, insistir que o espírito de cooperação internacional no campo econômico, financeiro e do desenvolvimento nos pede que, acima da estreita lógica do mercado, exista a consciência de um dever de solidariedade. A solidariedade, de fato, é central na reorganização do tecido de uma economia mundial que, como demonstra em negativo a crise atual, se intersecta sempre mais.
A solidariedade é também favorecer uma maior participação nos processos decisórios tanto dos governos dos países desenvolvidos como daqueles em via de desenvolvimento, tanto das organizações internacionais quando da sociedade civil em geral.
Nesta perspectiva, no campo da reorganização da governabilidade com vistas a uma luta contra a pobreza mais eficiente, é reafirmado o princípio da subsidiariedade, graças ao qual é possível estimular o espírito de iniciativa, base fundamental para qualquer desenvolvimento socioeconômico inclusive nos países pobres, para que estes possam ser olhados não como um problema, mas como sujeitos e protagonistas de um futuro novo e mais humano para todo o mundo (cfr. Compendio da Doutrina Social da Igreja, n.449).
Enfim, a reformulação da governabilidade da economia globalizada – que não deverá negligenciar os aspectos financeiros e fiscais, dos quais cada vez mais se parte e os quais já há algum tempo são sublinhados – não terá bases solidas se não se fundar sobre o princípio da responsabilidade. Esta responsabilidade, para os organismos internacionais, se traduz em transparência, accountability (prestação de contas), coerência e coordenação entre eles e nos confrontos seja com os governos seja com a sociedade civil.
Justamente à luz destas considerações se mostra decisivamente positivo que esse encontro sobre questões sociais em preparação ao encontro do G8 tenha somado forças com a Organização para a Cooperação e para o Desenvolvimento Econômico, com o FMI e com a Organização Internacional do Trabalho, e que o tenha feito de modo substancial e não apenas formal. Tendo confiado aos responsáveis dos três organismos a tarefa de tratar, cada um na perspectiva de sua respectiva instituição, das conseqüências humanas e sociais da crise financeira, é clara a intenção do governo italiano de sublinhar a imprescindível exigência de proteger a coesão social, que é uma condição essencial para a segurança democrática e objetivo primário dos Estados individualmente. A atual crise econômica e financeira se constitui, de fato, em uma grave ameaça a tal coesão devido ao crescimento da discrepância entre ricos e pobres de todos os países, sejam eles países ricos ou pobres.
Nasce assim a necessidade de confronto e estudo, em nível mundial, de estratégias capazes de combater a pobreza e a exclusão social. Em suma, a paz, também a paz social, “encontra o seu fundamento na ordem racional e moral da sociedade... se funda sobre uma correta concepção da pessoa humana e demanda a edificação de uma ordem segundo a justiça e a caridade” (Compendio da Doutrina Social da Igreja, 494).
Pubblichiamo di seguito l'articolo del Cardinale Renato Raffaele Martino, Presidente del Pontificio Consiglio della Giustizia e della Pace, apparso su “L'Osservatore Romano” DEL 29 marzo 2009.
[L'OSSERVATORE ROMANO - Edizione quotidiana - del 29 marzo 2009]
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