A viagem de Bento XVI não pode ser corretamente compreendida se reduzida a seus aspectos políticos. Ela é uma peregrinação de fé, onde o Papa visita os lugares onde Cristo viveu, onde a salvação se tornou fato histórico. Nesse lugar, a presença cristã é chamada a não apenas “reivindicar seus direitos mínimos, mas também levar qualquer coisa que possa servir ao bem de todos: a atitude de diálogo, a caridade, a capacidade de perdão, o anúncio de que Deus não deve ser usado para justificar a violência histórica e política. A sua presença, em si, deve ser um elemento de paz”.
P. Com que olhar e com que esperança devemos olhar para esta viagem do Papa?
R. Antes de tudo, penso que a perspectiva mais importante vem do fato de que o papa irá visitar os lugares onde Jesus viveu. Por isso, essa viagem tem a dimensão de uma verdadeira peregrinação, no rastro do que forma as viagens precedentes, de Paulo VI e João Paulo II. Aqueles caminhos, aquelas pedras, aquelas casas, recordam que a salvação é um acontecimento histórico, que aconteceu no tempo e no espaço. Aqueles espaços viram e ouviram falar o Rei dos céus. Esta me parece ser a primeira questão: a comoção causada por aquilo que aconteceu há dois mil anos.
P. Então essa viagem à Terra Santa repropõe o tema, central para esse pontificado, da historicidade dos Evangelhos e da figura de Cristo?
R. É certamente uma peregrinação com grande valor cultural, em função da ênfase incansável que o Papa tem dado à salvação como um acontecimento histórico. Fazendo um pequeno passo atrás, é o que escutamos nos discursos do papa para a Páscoa, que, entre outras coisas, tiveram como alvo certa teologia e certas escolas teológicas que se esforçam em tirar o caráter histórico do fato que está na base do cristianismo. Em Jerusalém, entre aquelas pedras, naquele sepulcro, num dia preciso, na noite entre 8 e 9 de abril do ano 30, a morte foi vencida. Esse é um fato – e foi isso que o Papa sublinhou no Sínodo sobre a Palavra de Deus, como depois foi dito por Julian Carrón, numa intervenção que foi muito apreciada pelo Papa. Além disso, é a mesma preocupação que está na base do livro “Jesus de Nazaré”.
Seguindo o fio condutor desse discurso de Julián Carrón, pronunciado no Sínodo, esse fato que aconteceu há dois mil anos pode ser encontrado hoje, está presente. Isso nos leva ao segundo aspecto central dessa viagem: a importância da presença dos cristãos naquela terra. Trata-se de uma presença freqüentemente agredida, reduzida, que muitas vezes parece estar em vias de extinção. Mas, mesmo em sua aparente fragilidade, é a presença que faz com que hoje, dois mil anos depois, o fato de Jesus seja vivo e encontrável.
P. Se o aspecto mais importante dessa viagem é o de seguir os passos da vida de Cristo, enquanto presença histórica entre os homens, como compreender a perspectiva política, sem pensá-la como algo justaposto, separado, da dimensão religiosa?
R. Para responder, precisamos retomar a questão da presença dos cristãos na Terra Santa: eles são como um vaso de barro entre dois outros de ferro. Em tais condições, eles não devem apenas reivindicar seus direitos mínimos, mas também levar qualquer coisa que possa servir ao bem de todos: a atitude de diálogo, a caridade, a capacidade de perdão, o anúncio de que Deus não deve ser usado para justificar a violência histórica e política. A sua presença, em si, deve ser um elemento de paz. E mais, em um caso como esse do conflito árabe-israelense – que parece sempre poder incendiar o mundo, que nos dá a sensação de ter raízes tão antigas, de que todas as armas da diplomacia e da política já foram tão usadas e testadas – parece que podemos tocar com as mãos o fato de que a paz pode ser apenas uma graça. Não é uma fuga da realidade, trata-se apenas de reconhecer a evidência do fato que os homens, sozinhos, não constroem nenhuma paz.
P. No programa da viagem constam vários encontros com autoridades muçulmanas: como olhar esse fato à luz dos acontecimentos que se seguiram ao discurso de Regensburg? [nde.: quando o Papa citou o Imperador Manuel II que “de modo surpreendentemente brusco – tão brusco que para nós é inaceitável –, dirige-se ao seu interlocutor [muçulmano] simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: ‘Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava’”].
R. Para responder, precisamos recordar um aspecto que não foi compreendido ou que foi ignorado por todos os que criticaram o Papa: o fato de que esse pontificado está em continuidade com o de João Paulo II, e assim deve ser lido. Não só pela sucessão apostólica ou pela continuidade objetiva, mas também pela continuidade de juízo, alimentada pela grande amizade pessoal que os uniu. Ratzinger é aquele que mais refletiu sobre a mensagem de Wojtyla. Aquilo que poucos perceberam é que o discurso de Regensburg é a outra face da medalha em relação aos encontros de Assis [nde.: em 1986 e 2002, João Paulo II realizou, em Assis, dois grandes encontros inter-religiosos pela paz mundial]. O conteúdo de Regensburg é o mesmo de Assis: a purificação da idéia de Deus, não contaminar o sentimento religioso com a violência humana, com a violência da história. Assis, sem Regensburg, é esvaziado por uma leitura superficial e sincretista, feita por muitos. Regensburg, sem Assis, não é compreendido em seu significado profundo, que é o de ser uma mão estendida, uma tentativa de diálogo, e uma reflexão sobre o senso religioso.
P. Mas o cristianismo tem a capacidade de gerar esse encontro entre diferentes religiões?
R. O cristianismo, como disse o filósofo René Girard, teve um efeito notável sobre todas as culturas e todas as religiões, independentemente de terem ou não se convertido. Basta olhar o que aconteceu na Índia: Gandhi mesmo, no fundo, não seria plenamente explicável sem o cristianismo, nem a democracia indiana. O ponto aqui é que o cristianismo permite uma extraordinária purificação da idéia de Deus e do senso religioso. É isso que permite gerar um encontro e um diálogo verdadeiros.
P. Também está sendo muito discutida a relação de Bento XVI com os hebreus: desse ponto de vista, que novidade pode acontecer nessa viagem à Terra Santa?
R. O último e mais conhecido episódio na relação entre este Papa e os hebreus é a belíssima passagem contida na carta aos bispos depois do casso Williamson-lefebvrianos: um texto delicado e comovente, no qual Bento XVI agradece aos irmãos hebreus por terem sido compreensivos, enquanto muitos católicos o atacavam. Uma demonstração de simpatia e de afeto realmente tocante. Além disso, não podemos esquecer que uma boa parte dos cristãos que o Papa irá encontrar são cristãos de origem hebraica. Não apenas a Igreja se originou no povo hebreu, mas o próprio fato da salvação é, no início, a história do povo hebreu. Uma história que depois, com a Igreja, se torna história de todos os povos. |