Palestra proferida no seminário "A família e a educação da afetividade e da sexualidade", promovido pela Pastoral Familiar de São Paulo, pelo Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família e pelo Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP em 4 e 5 de junho de 2004.
A proposta desta palestra é compartilhar as reflexões, perguntas e descobertas geradas pelo acompanhamento de adolescentes em meu trabalho de psicóloga educacional, professora e mãe. Apresentarei alguns conceitos de dois autores que têm muito a dizer sobre esse tema — Alfonso López Quintás (filósofo da educação espanhol, fundador de um projeto formativo denominado Escola de Pensamento e Criatividade) e Victor Frankl (1905-1997, psiquiatra, fundador da terceira escola vienense de psicoterapia — Logoterapia) —, além de propor um método, um caminho para o adolescente descobrir-se como pessoa e enfrentar os enormes desafios que a realidade atual coloca.
O ponto de partida para falarmos de educação da afetividade e da sexualidade é o conceito de pessoa, considerada em todas as suas dimensões: corpórea, psíquica e espiritual. A sexualidade compreende o ser humano em sua totalidade; a pessoa não pode exprime-se senão enquanto homem ou enquanto mulher. A masculinidade e a feminilidade são características inscritas na pessoa desde sua concepção. As características genéticas que estão na célula do zigoto e, depois, em todas as outras células são uma realidade sexuada; o ser humano, ao nascer, já possui suas características físicas próprias de homem ou mulher, e o desenvolvimento da personalidade deriva daí. Assim, a sexualidade está intimamente ligada — seja na sua origem, seja na sua expressão ou finalidade — a todas as dimensões do ser da pessoa.
Victor Frankl nos ajuda a identificar três atitudes ou posturas que a pessoa pode assumir diante da vivência da afetividade e da sexualidade, que expressam diferentes níveis de amadurecimento pessoal.
A atitude mais primária seria a que ele chama de atitude sexual. Essa atitude dirige-se ao corpo da outra pessoa, atraída por sua aparência física. Baseia-se na atração instintiva por uma outra pessoa: o envolvimento com ela se dá pelo desejo e excitação sexual.
A forma imediatamente superior é a atitude erótica. A palavra ‘erótica’, aqui, é utilizada no sentido que Platão nos explica em O banquete. A obra procura definir o que, em si e afinal, é o amor , num daqueles encontros que os gregos bem sabiam fazer, quando se reuniam para conversar e comer. Nesse jantar, Platão conta por intermédio de Diotima a história do nascimento de Eros, posteriormente considerado pela filosofia como o Homem.
Eros é filho de Penia, a deusa da indigência, da penúria, e de Poro, o deus da abundância, da plenitude. Penia concebe Eros na festa dada por Zeus no nascimento de Afrodite, a deusa da beleza. Eros, para a infelicidade da mãe, sai em tudo semelhante a ela: é um mendigo, miserável. Com exceção de um aspecto, conhece a plenitude e não a tem. Por isso, passa a vida a procurá-la, a mendigá-la, atraído por essa totalidade que lhe faz falta. Eros é aquele que é atraído pela plenitude e se movimenta em direção a ela. Dessa forma, Frankl descreve a atitude gerada por algo mais que o desejo sexual; a pessoa sente atração pelo jeito de ser do outro, sente-se bem ao lado dele. É a atitude que possui um casal de namorados que estão apaixonados; a pessoa apaixonada está fascinada pela outra pessoa em sua totalidade, não só pelo seu corpo: o jeito de olhar, falar, a forma como se relaciona com as pessoas, que é própria dela, sua capacidade excepcional de fazer algo. Assim, a atitude erótica envolve as dimensões corpórea e psicológica.
A atitude do amor é a forma mais elevada possível do enamoramento, pois ela se dá quando nos dirigimos ao nível mais profundo da outra pessoa: quando prestamos atenção no que ela é enquanto pessoa, quando entramos em relação com o que ela tem de único e irrepetível. Quem vive a atitude do amor tem consciência de que ama o outro por aquilo que ele é, não apenas porque tem um corpo atraente ou por possuir determinada característica que apaixone, mas ama-o pelo que ele é em si mesmo. Quem ama é capaz de ver, através da “roupa” da aparência física e psíquica, a própria pessoa, para pôr os olhos nela própria: não se limita a amar o que quer que seja “no” ser amado, mas ama-o por si mesmo, pelo que ele “é”, não pelo que ele “tem”. Quem ama fica feliz pelo simples fato do amado existir. A atitude do amor, portanto, envolve as dimensões corpórea, psíquica e, particularmente, a dimensão espiritual.
Esses autores afirmam que para atingirmos o pleno desenvolvimento da afetividade e sexualidade é preciso chegar à atitude do amor, isto é, à relação de encontro entre duas pessoas que as põe em condições de descobrir e acolher o outro, possibilitando enriquecimento mútuo. O amadurecimento sexual se dá, então, quando se progride no sentido de integrar as tendências sexuais instintivas às dimensões psicológica e espiritual. Esse amadurecimento não é apenas algo aconselhável ou indicado pelos especialistas, mas é uma exigência da pessoa, da sua natureza ou da sua ontologia, que apontam para essa unidade da pessoa, de tal forma que, se ela não for alcançada, o homem não se realiza. O desejo de bem, de felicidade, de beleza, de amor que cada um de nós carrega dentro de si não será satisfeito se excluirmos determinados aspectos, se vivemos esse desejo pela “metade”.
Esse é um desafio para nós, pais, educadores, padres: como ajudar os adolescentes e jovens de hoje a descobrirem a experiência do amor como caminho de realização pessoal, isto é, como forma mais verdadeira e correspondente de realizar-se em sua afetividade e sexualidade?
Minha experiência tem revelado a presença de três tendências em nossa cultura, na mentalidade contemporânea, que significam grandes obstáculos a serem superados por nossos jovens que buscam um desenvolvimento pleno como pessoa:
1. Tendência utilitarista e dominadora:
Muitos relacionamentos são vividos como meio para determinados fins; atingindo-se o objetivo, são descartados. O outro é considerado alguém para se desfrutar, para se consumir, para se dominar. Isso acontece nos vários ambientes em que se vive, seja nas relações de trabalho, comerciais, seja no tempo de lazer, mas está particularmente presente, no caso dos adolescentes, nas relações afetivas. É o caso do ”ficar”, no qual já está pré-estabelecido que as pessoas interajam entre si para obter sensações prazerosas, não envolvendo qualquer vínculo ou compromisso posterior. É uma relação de uso, tida como “normal”. O que se busca no outro é o prazer que ele pode dar ou promover: o outro não é encontrado, mas devorado, possuído. A sexualidade é vivida como algo externo, separado da pessoa, que experimenta fragmentação, esfacelamento. Os adolescentes têm clareza sobre a redução que isso significa e, muitas vezes, não sabem como sair dela ou escapar dessa forma de relacionamento que num primeiro momento os seduz e depois os entristece.
Conto dois exemplos de situações vividas por adolescentes de idades diferentes, em épocas diferentes — um é recente, outro aconteceu há dez anos —, de forma a podermos verificar a predominância desse tipo de relacionamento e as possibilidades de enfrentá-lo.
Há cerca de dez anos, uma menina de 11 anos, que estava na 5ª série, veio me procurar pedindo ajuda, pois não estava conseguindo ficar na sala de aula, sentia-se muito mal. Contou-me que no sábado anterior tinha ido a uma festa e ficado com um menino de sua classe — de quem não era próxima —, tinham feito coisas juntos que agora deixavam-na sem graça, sem condições de fazer um trabalho em grupo com ele. Para ela, isso era sinal de que não dava certo ficar com alguém conhecido, “o melhor é ficar com quem a gente não vai se encontrar mais”. Aos poucos, fomos conversando e ela foi se dando conta de que o que ela desejava mesmo era o contrário: viver a intimidade física com a pessoa que ela queria bem; que o carinho, a carícia pudesse expressar o afeto que ela sentisse por essa pessoa. Insuportável, ruim mesmo era experimentar aquela divisão, aquela separação entre o que ela viveu no sábado à noite e o que a vida pedia que ela enfrentasse na segunda-feira de manhã.
É importante ajudar os adolescentes a verificarem que, apesar da mentalidade dominante conceber a redução dos relacionamentos (no caso, redução à dimensão corpórea) como algo comum, normal, a experiência humana deles, aquilo que acontece na pessoa de cada um deles revela o contrário.
Certa vez, trabalhando com meus alunos na Faculdade Santa Marcelina sobre o tema da manipulação, surgiu como exemplo o ficar. Os alunos perguntavam-me se o fato de estar decidido previamente por ambas as partes envolvidas que um iria desfrutar do outro — o uso do outro combinado antes —, se, ainda assim, por ser uma opção consciente, seria um caso de manipulação. Pedi que olhassem para suas experiências, que partissem delas, verificando se, naquela situação, eles se sentiam manipulados, manejados, tratados como objetos ou como pessoas. Aos poucos, no início num tom meio irônico, brincando, mas depois se posicionando seriamente, eles foram dizendo coisas como: “Tudo bem, professora, depois da balada é só a gente chegar em casa e não se olhar no espelho antes de dormir”. Ou: “Talvez seja por ser reduzido a objeto que depois a gente fique com a ressaca moral...”.
Assim, a atual mentalidade utilitarista, dominadora, que permeia os relacionamentos, estimula os adolescentes a permanecerem no nível primário do desenvolvimento afetivo sexual, isto é, na atitude sexual. Para educarmos os jovens a transcenderem esse primeiro nível do desenvolvimento, devemos ajudá-los a se darem conta da redução que essa mentalidade gera, e, sem negar a dor que isso provoca na pessoa deles, convidá-los a prestar atenção em seu ser, em sua ontologia, que aponta numa direção mais profunda, mais abrangente. O método, o caminho é apostar na capacidade de cada pessoa de avaliar tudo a partir dos critérios estruturais de seu ser, levando a sério suas exigências constitutivas, como a necessidade de construir relacionamentos verdadeiros, capazes de acolher a dignidade das pessoas envolvidas, isto é, que sejam experiências de encontro.
Quintás afirma que o encontro é uma experiência fundamental para cada um de nós: o homem é um ser de encontro. Todos nós procedemos de um encontro pessoal e estamos inclinados, destinados a fundar outros encontros: a vida humana deve ser uma trama de encontros que tende a ampliar-se indefinidamente. No encontro, cada um contribui com o que é, com o que sabe e, por sua vez, recebe do outro aquilo que tem de singular, diferente, novo. Cada um experimenta um enriquecimento, um acréscimo: o sentimento de alegria é uma resposta a esse processo de edificação da própria personalidade que é o encontro; não vivenciá-lo constitui um grande infortúnio ou infelicidade. Portanto, vivendo a experiência do encontro no relacionamento afetivo, a pessoa experimenta que todo o seu ser é importante, que nenhuma das suas dimensões é descartada, mas todas são acolhidas e chamadas à expressão e ao desenvolvimento. A pessoa caminha para a realização plena de si, na totalidade do que ela é.
2. Tendência à homogeneidade:
Atualmente há uma mentalidade que leva a supor uma grande homogeneidade entre homem e mulher, desconsiderando as características próprias do feminino e do masculino. À mulher é pedido que tenha segurança, força, projeção no trabalho; ao homem, cuidado, acolhimento, hospitalidade ao outro; dessa forma, confunde-se, desvirtua-se a pessoa de sua condição efetiva, particularmente os adolescentes que estão configurando sua personalidade.
Outra tendência próxima dessa, e que está muito presente, é a da neutralidade, onde se afirma dar no mesmo, masculino ou feminino, pois se trata de seres humanos. A neutralidade impede a instalação na condição sexuada da vida feminina ou masculina.
O núcleo da condição varonil é a maneira de se projetar para a mulher, expressando na relação com ela segurança, saber, decisão. O homem encontra felicidade no vínculo com a mulher, na sua presença e ocupação com ela, nas suas expectativas e várias formas de convivência com ela.
A condição feminina expressa-se particularmente na generosidade, na hospitalidade. A mulher realiza-se quando expressa essa doação (a mulher não pode ser feliz economizando-se). A hospitalidade feminina acontece de forma radical na gestação de outro ser, mas também na relação com o homem, na qual o acolhimento dele e a entrega de si mesma são formas plenamente humanas, ajustadas à condição da mulher.
No processo de estruturação da própria identidade, o adolescente normalmente experimenta medo e insegurança diante das mudanças corporais, da orientação ao sexo oposto, do perceber-se observado pelos outros, preocupando-se em agradar e ser aprovado pelo grupo. Nessa busca de estruturação da própria personalidade, vivencia ambivalência, vacilação e contradição, que são potencializadas pela confusão gerada pela tendência à homogeneidade.
A identificação com a condição feminina e masculina é um processo, como Julián Marías nos ajuda a entender: “Quando se fala dos atributos do varão e da beleza e graça da mulher, isso não quer dizer que o varão ou a mulher possuam essas qualidades, e, sim, que têm de possuí-las, que elas são suas exigências internas, seus requisitos. As pretensões são mais definidoras que a realidade. A realidade humana é primariamente pretensão, projeto” (MARÍAS, 1989, p. 3.).
Mais uma vez, é o conceito de pessoa que nos esclarece o caminho para enfrentarmos as dificuldades atuais. A tradição da Igreja constantemente nos lembra o homem como um ser peregrino, que está no caminho da própria realização, está chamado a ser o que ainda não é. Assim, a instalação na condição feminina e masculina é algo a ser constantemente descoberto e assumido, é um caminho a ser trilhado rumo à plena realização pessoal. Quando homem e mulher afirmam, expressam o que é próprio de sua condição é possível que um seja para o outro algo novo, surpreendente, instigante, fonte de felicidade.
É importante que os adolescentes possam descobrir, buscar, afirmar concretamente as características próprias de sua condição — feminina ou masculina — de forma a identificarem-se com ela e torná-la ocasião de encontro e de realização com a pessoa do sexo oposto.
3. Tendência ao distanciamento e indiferença frente à própria experiência
Os adolescentes de modo particular sofrem com esta tendência atual de promover uma separação entre a pessoa e o que ela efetivamente vive, de tal forma que o homem distancia-se do impacto ou da dor provocada pelos problemas. Para os jovens, que estão no momento de descoberta do mundo e de si mesmo, de pergunta sobre o que é a vida, sobre o motivo pelo qual vale à pena viver é especialmente desumana uma cultura que propõe a distancia daquilo que incomoda, para propor uma solução rápida, superficial e que, efetivamente, não responde ao que eles buscam.
Quem trabalha com os jovens depara-se com esta indiferença ou descaso em relação a tudo que signifique uma reflexão mais profunda sobre a própria experiência ou um empenho com os problemas que não estão circunscritos na habitual perspectiva individualista, hedonista. O que se persegue é o bem estar, o prazer, o sucesso: na sociedade atual não há espaço para a dor, para o sofrimento. Diante de algum sintoma de que as coisas não estão indo bem o mais comum é buscar algum modo anestesiar-se ou algum especialista que possa resolver o problema, como se os adolescentes fossem incapazes de enfrentá-los.
Para realizarmos uma verdadeira educação com os adolescentes é fundamental vencer esta distância, ensiná-los a olhar a própria experiência e aprender com elas um critério, uma chave de leitura que permite identificar o que aperfeiçoa, favorece o seu desenvolvimento e o que o atrapalha e destrói. É fundamental que eles se perguntem: isto que estão me propondo ou isto que estou vivendo é verdadeiro? Ajuda-me a ser eu mesmo? Enriquece ou empobrece a minha pessoa? Que relacionamentos ou que situações são morada para mim e quais são inóspitos? Por quê?
Cada um de nós nasce com essas perguntas, e a vida nos é dada para que possamos respondê-las em primeira pessoa, configurando-se, assim, a nossa identidade e a trajetória biográfica da nossa existência. Sem esse trabalho de aproximação — mesmo que dolorosa — dessas indagações fundamentais, nós nos tornamos mais um entre tantos, ficamos sem rosto.
Para que o adolescente possa assumir essa aventura de entrar em si, de conhecer-se, de fazer-se essas questões fundamentais, é preciso que encontre amigos, adultos ou mesmo outros jovens, que acolham sua pessoa em todas as dimensões, ajudando-o a buscar a unidade entre todas elas, sem negar nenhum aspecto. É preciso ensiná-lo a refletir, a julgar o que vive.
Apresento em seguida um texto de um aluno do segundo ano do curso de Música da Faculdade Santa Marcelina, no qual ele expressa esse trabalho de reflexão e avaliação das próprias vivências:
Um dia qualquer em julho
João Zílio
Na ausência de atividades matutinas, estava difícil acordar antes da uma da tarde. A vida seguia descompromissada e sem grandes pretensões. Uma cerveja aqui, uma festinha ali e madrugadas insones, às vezes até reconfortantes. Mas, afinal, o que se podia esperar da existência humana? A fé raramente se manifestara nesse último ano. Os amigos iam e vinham, como a maré. E pareciam sofrer do mesmo sintoma. As mulheres paulistanas se mostravam cada vez mais compostas da mesma matéria-prima que a cidade: concreto e cimento.
Em uma dessas madrugadas frias, para não dizer funestas, conversava na cozinha de casa com um velho amigo, conhecido na intimidade por Comendatore. O chão gélido e minha pressão caindo. Estava confortável mesmo assim. Comendatore me falava da vida.
— Até os trinta pode abusar, o corpo agüenta. Faça todas as extravagâncias e viva a vida, que depois disso as informações demoram mais a se depurarem.
— Isso soa elucidativo e empolgante aos meus ouvidos, mas talvez eu não queira saber dos mistérios todos do universo. Escuta, o que você acha de ligar o fogão para esquentar um pouco a casa?
— Olha, o fogão dissipa um tipo de energia telúrica conhecida como verde negativo, que não é legal.
— Bom, então eu pego o aquecedor portátil.
Comendatore concordou e ficou tudo bem naquela noite. Eu não podia entender o que acontecia com o élan, o mojo da minha geração, onde isso tinha se extraviado das nossas vidas. Que pretensão esse plural, talvez o fenômeno só ocorresse comigo. Era cada vez mais raro baixar a inteligência espiritual, a fluidez do universo. Fazia um exercício de memória tentando lembrar as últimas vezes que havia me sentido íntegro, de corpo e alma com o todo. Cantando Bajulans com o coral na igreja, ano passado, durante o trecho Cibi Crucis, Calvarium. Ano retrasado, durante o mês de dezembro, quando vivi sozinho em Nova York. Fazia tempo. Às vezes transando, mas o tipo de sensação era mundana, cópia barata do nirvana, e fazia tempo também.
Experimentava um estado neutro que misturava perturbação com serenidade. Nada aconteceria nos próximos dias, portanto não havia o que temer. Nenhuma mulher para dividir a cama, nenhuma paixão em vista, nenhum compromisso profissional relevante. Minha dúvida: será que é por isso que está difícil sair da cama?
Buscava compreender melhor a situação analisando a vida das pessoas próximas. Dois amigos haviam se separado de suas namoradas no começo daquele ano, como eu. Um deles, Fidel, que havia conhecido havia mais de dez anos em uma festa adolescente maluca, tocara a campainha de casa sem avisar e então lá estávamos, na mesa de vidro da cozinha, coberta por uma toalha com frutas estampadas, as cervejas abertas e apoiadas.
— Ai, a desgraça se abateu sobre mim. A convivência. A convivência com quem amo se tornou uma úlcera impossível de manter. Estou só. Veja, sinta e partilhe da minha dor. Repare como estou ferrado, sinta pena de mim e tente em vão me confortar. Isso me fará bem. Você é meu amigo ou não é?
— Sou, mas essa ladainha me enche a paciência. Me faz lembrar da medíocre condição similar em que me encontro.
— É, eu sei, eu sei. João, estou precisando de uma mulherzinha, vamos cair na noite.
Em minutos estávamos no bar, estampado por centenas de quadrinhos com fotos de futebol. Ao meu lado uma foto do Zico nos tempos do Flamengo, de short curto e camisa pequena, comemorando um gol com seus companheiros de time. O punho cerrado num gesto de vitória e a determinação estampada em seu rosto. Aquilo realmente não me dizia nada, mas era legal. Diversos chopps depois, Laura sai da mesa cheia de homens que estão indo embora e começa a conversar com duas meninas na mesa vizinha à nossa. As meninas insistem para ela ficar. Ela fica. Seus olhos são negros e ela é alta, uma beleza meio andaluz. A amiga é loirinha e a outra, baixa de cabelos crespos. Então ocorre um fenômeno engraçado: se começo a falar sobre Jazz com Fidel, elas falam sobre Jazz; se falamos sobre mulheres, elas falam sobre homens. Fidel já não se agüenta mais e vai ao banheiro. Começo a conversar com elas; estão disponíveis à maneira paulistana, fingindo que não se importam. Ninguém se importa mais com droga nenhuma. Essa cidade é uma fábrica de gente endurecida pela hora do rush. Estávamos altos e voltando para casa, no carro. A cidade estava calma às quatro da madrugada.
Agora temos um novo fantasma em nossa existência… Fidel sempre procura Laurinha pelos bares, mas raramente acha. O que eu tentei dizer para ele é que quem se desloca tem prioridade.
A família, os amigos, colegas de escola, do trabalho, as amantes, as amadas e os amores. Seriam todos ícones estereotipados por uma percepção torpe? Não, são gente, gente de verdade com anseios, desejos e conflitos como eu, Fidel e Comendatore. E é assim que merecem ser tratadas. Eu insisto. E la nave va...
Grupos de amigos para os jovens, grupos guiados — como existem em algumas escolas nas quais professores se dedicam a acompanhar seus alunos promovendo espaços de reflexão e debates ou mesmo as comunidades de jovens — podem tornar-se um espaço de troca e aprofundamento da própria experiência, onde possam se ajudar a buscar o que de fato corresponde à natureza humana. No caso dos pré-adolescentes e adolescentes, esses grupos significam um grande apoio para seus pais, já que na adolescência o ponto de referência deixa de ser a família e passa a ser o grupo de pares. Por meio desses grupos os adolescentes podem fazer a experiência de pertencer a pessoas nas quais podem se espelhar, de pertencer a um espaço de vida no qual podem experimentar um outro tipo de satisfação, que é fruto de empenho, construção que se dá no tempo, que é mais profunda e duradoura.
O espaço da casa, da vida em família pode contribuir muito, propondo momentos de encontro, por exemplo, durante as refeições — vencendo a forte mentalidade individualista que entra também nos lares e faz com que cada um fique “na sua": com a sua TV, sozinho com seu prato, com seu computador —, momentos nos quais os adolescentes, como ótimos observadores e críticos que são, possam verificar que os pais conversam, trocam experiências, buscam enfrentar também eles as propostas desumanas com que se deparam no cotidiano. Ensinamos muito mais pelo que somos do que pelo que falamos, o que é especialmente verdadeiro para os filhos adolescentes.
NOTAS
FRANKL, Victor. Psicoterapia e sentido da vida. 4ª ed. São Paulo, Quadrante, 2003.
GIUSSANI, Luigi. Educar é um risco. Bauru, EDUSC, 2004.
MARÍAS, Julián. A felicidade humana. São Paulo, Duas Cidades, 1989.
QUINTÁS, Alfonso L. O amor humano. Petrópolis, Vozes, 1995.
QUINTÁS, Alfonso L. A formação para o amor — três diálogos entre jovens. São Paulo, Paulus, 1998.
QUINTÁS, Alfonso L. El secreto de una vida lograda. Madrid, Palabra, 2003.
SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida, Idéias & Letras, 2004.
Site com textos e palestras de Alfonso López Quintás e Julían Marías, entre outros. www.hottopos.com.br
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