Felizes os que creram
O acontecimento da abertura do coração de Cristo é tão fundamental para o homem que o Ressuscitado o re-proporá à experiência dos discípulos. No Evangelho segundo João, o primeiro gesto do Ressuscitado aparecendo aos apóstolos foi o de mostrar as suas mãos e o seu lado. É como se Jesus ressuscitado quisesse que os apóstolos compreendessem imediatamente que agora a vida e a felicidade do homem jorram do seu coração transpassado, da sua misericórdia. Porque é exatamente naquele momento que os apóstolos são enviados ao mundo como alicerces vivos da Igreja: “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (Jo 20,21).
Devem saber de que fonte, de que ferida, de que abismo jorra a vida da Igreja, de onde jorram os sacramentos, a graça. E os apóstolos fazem imediatamente a experiência desta plenitude para eles mesmos: “Mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se ao ver o Senhor” (Jo 20,20).
Jesus quer que os apóstolos sejam os primeiros homens a compreender a vida e a felicidade à luz do coração transpassado, da misericórdia divina que responde ao mal do homem com uma super abundância de graça.
Jesus, sempre fiel à lógica pascal do amor que responde à negação com um dom maior, vai ao encontro do desejo cheio de dúvida de Tomé e descreve, assim, a todos, os meios e o modo para sempre experimentar novamente nEle a fonte da vida e da felicidade: “Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não sejas incrédulo, mas homem de fé”. Respondeu-lhe Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”. Disse-lhe Jesus: Creste, porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto!” (Jo 20,27-29).
“Felizes aqueles que crêem sem ter visto!”: este é o ponto fundamental. Em quem, em quê Tomé deveria ter acreditado? Em quem, em quê creram aqueles que eram felizes mesmo sem ter visto? Creram nos discípulos que testemunhavam unanimemente que Jesus Cristo ressuscitara e que o tinham visto: “Vimos o Senhor!” (Jo 20,25).
A fé cristã é a crença fundada sobre a experiência e sobre o testemunho da Igreja. A Tomé, deveria ter bastado o testemunho eclesial, apostólico dos discípulos para poder acreditar e ser feliz na fé, quer dizer, certo da ressurreição de Cristo, certo de que Cristo estava vivo e presente. Tomé já poderia ter visto o Ressuscitado e tocar no seu lado aberto, acolhendo o testemunho dos discípulos.
Jesus proclama, no Cenáculo, a alegria da fé eclesial, da crença no testemunho eclesial, apostólico, e a proclama projetando-a a um futuro que chegará até o fim dos tempos.
“Felizes aqueles que creram!”, que creram na comunidade cristã que testemunha: “Vimos o Senhor!”, o Senhor crucificado e ressuscitado, vivo e presente, que mostra as mãos e o lado feridos, que dá a sua paz e envia os discípulos com o sopro do Espírito a oferecer perdão dos pecados a todos aqueles que os acolherem: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20,22-23).
João Paulo II lembrou esta missão a toda a Igreja, consagrando o santuário da Divina Misericórdia de Lagiewniki, no dia 17 de agosto de 2002, com expressões que parecem querer responder à ânsia do homem da qual falamos no início.
O Papa disse: “É necessário transmitir ao mundo este fogo da misericórdia. Na misericórdia de Deus o mundo encontrará a paz e o homem, a felicidade! (...) Sejam testemunhas da misericórdia!”.
“Felizes aqueles que crêem sem ter visto!”. Estas são, originalmente, as últimas palavras de Jesus no Evangelho segundo João, antes que o próprio João ou algum de seus discípulos escrevesse o capítulo 21. E, repentinamente, o próprio João comenta esta última frase de Jesus dizendo que aquilo que escreveu - o seu Evangelho - é o seu testemunho de Cristo, Filho de Deus, a fim de que quem acolher este testemunho creia e crendo tenha a vida em Seu nome (cf. Jo 20,30-31).
O homem reencontra a alegria e a vida na presença do Ressuscitado do coração ferido. A condição da vida e da sua bem-aventurança é, assim, um movimento da liberdade, da razão, do afeto que acolhe a presença do Crucificado-Ressuscitado que se pode olhar, tocar, escutar e amar por meio do testemunho vivo da Igreja.
Madre Teresa de Calcutá dizia: “Jesus é a vida para ser vivida. Jesus é o Amor para ser amado. Jesus é a alegria para ser compartilhada” (Via Crucis, no Jubileu dos Jovens, 1984).
Toda a alegria do mundo nas mãos da Igreja
No dia da Páscoa, Jesus fez uma escolha que há 2.000 anos fez nascer na humanidade a gratidão dos miseráveis e o escândalo dos soberbos: legou a um punhado de homens frágeis e infiéis o acesso à sua presença real, imolada e ressuscitada, o acesso ao fundamento da divino-humanidade que é o seu coração ferido e vivo. E assim, é como se toda a vida do homem e a sua plenitude, a sua felicidade fosse, desde então, ligada ao testemunho dos discípulos de Cristo.
Quando Jesus disse aos discípulos: “Como o Pai me enviou, assim eu vos envio” (Jo 19,21) transmitiu à comunidade cristã a missão para a qual Ele veio ao mundo. Qual missão? “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A vida e a plenitude da vida, isto é, a felicidade de cada homem, se torna o patrimônio e a missão da Igreja.
Georges Bermanos exprime este paradoxo ao pároco de Torcy, no Diário de um pároco do campo: “A Igreja dispõe da alegria, de toda a porção de alegria reservada a este triste mundo. Aquilo que fizeram contra ela, o fizeram contra a alegria”.
Este é o escândalo que há 2.000 anos arde na consciência do mundo inteiro porque é como se a vida e a felicidade de todos estivesse nas mãos dos mais desprezados entre os homens. Agora não há mais poderosos, não há imperadores, não há sábios deste mundo que possam viver com plenitude sem confiar-se e crer no testemunho daqueles que Cristo escolheu para manifestar-se ressuscitado dos mortos, revelar o coração aberto e confiar a obra de misericórdia do Espírito até o fim dos tempos. Por isso, há 2.000 anos a Igreja é amada e odiada, acolhida e perseguida. O mundo odeia a Igreja porque não a perdoa por ser o cofre aberto e gratuito, mas insubstituível, da plenitude de vida de cada homem.
Em um sermão, por ocasião da festa dos santos Pedro e Paulo, são Bernardo de Chiaravalle descreve este mistério: “O que nos ensinaram e nos ensinam os santos apóstolos? Não a arte da pesca ou da fabricação de tendas, nem algo similar; nem nos ensinam a ler Platão ou a destrinchar as sutilezas de Aristóteles, nem a aprender sem nunca alcançar o conhecimento da verdade. Os apóstolos me ensinaram a viver. Parece-lhe pouca coisa saber viver? Não, é uma grande coisa, antes, a maior de todas. (...) Uma vida boa consiste, a meu ver, em suportar o mal e a fazer o bem perseverando assim até a morte”. (Sermões I,3).
Por isso, a Igreja é, como dizia Paulo VI, “especialista em humanidade” porque a Igreja conhece e transmite a felicidade de cada homem. E a cultura moderna, que fez de tudo para diminuir a Igreja e vendo-se, hoje, diante da evidência da própria falha no enfrentar o humano - a família, o amor, a sexualidade, o trabalho, a educação, a doença, a morte... - a cultura moderna não perdoa a Igreja por saber dar razões sobre o homem, mesmo nos lugares onde esta cultura quase conseguiu eliminar a Igreja. O que faz o mundo enlouquecer é que, eliminando a Igreja do próprio âmbito de influência e de poder, vê partir com ela a vida e a felicidade de todo homem.
O martírio
Todavia, o anúncio cristão é uma fonte que não se governa pelos terrenos áridos que irriga. O terreno pode recusar absorvê-la, mas não pode extinguir a fonte porque o mundo não tem poder sobre a manifestação gratuita aos discípulos do coração ferido do Cristo ressuscitado.
Assim, diante de um mundo hostil à vida e à felicidade verdadeiras, diante de uma humanidade reduzida a odiar a vida por medo da morte, a tarefa essencial é a de testemunhar o “Eis-me aqui, estou presente!” de Cristo segundo a sua natureza pascal, como acontecimento que responde à negação com uma abundância de misericórdia. O método do testemunho cristão eclesiástico é ditado e ilustrado por aquele coração que, ferido, responde imediatamente com o sangue e com a água, com um amor que vai até o fim. Por isso, o paradigma e o cumprimento do testemunho cristão é o martírio. O martírio contradiz a lógica do mundo, porque o martírio responde ao medo da morte que odeia a vida com um amor à vida que não tem medo de morrer por ela, porque a vida do mártir é Cristo ressuscitado, Cristo que venceu a morte e o pecado. O martírio, hoje como sempre, é a maior revolução cultural que se possa fazer.
O mártir, por si mesmo, é uma testemunha eliminada, uma testemunha suprimida. Mas, na lógica da cruz, a eliminação acentua a potência do testemunho e a expressão da caridade. O mártir cristão é exatamente o ícone do coração de Cristo que, odiado e ferido, excede na caridade do perdão, do dom da vida, da misericórdia. O mártir se torna, assim, testemunha não só do amor de Cristo mas do excesso deste amor em uma superabundância de caridade, de gratuidade que define o limite da morte e do ódio.
Um monge cisterciense do século XII, Guglielmo di Saint-Thierry, sustentava que a vida monástica cristã nasceu depois da paixão do Senhor, enquanto, cito, “ainda ardia nos corações dos fiéis a memória recente do seu sangue derramado” (Lettera d’oro, 13). Não há forma de testemunho cristão, não há martírio, não há virgindade pelo Reino, não há testemunho laico no mundo, não há evangelização e nova evangelização que não nasça da memória viva da paixão, da memória eucarística da Igreja.
É a memória do apóstolo João, aquele que assistiu com Maria a morte de Jesus e viu o coração traspassado. E é uma memória ardente que suspende a vida de São João, como a de todos os apóstolos, entre o acontecimento de Cristo e o mundo inteiro privado de vida e de alegria: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida (...), nós vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco (...); para que a vossa alegria seja completa” (I Jo 1,1-4).
A pergunta do Salmo 33, “Há um homem que quer a vida e que deseja dias felizes?”, para não ser uma pergunta cínica e cruel, para não ser uma pergunta sem sentido, deve ser feita por uma testemunha de Cristo. Seria cínico suscitar o desejo de vida e de alegria em um mundo de morte e tristeza, sem propor uma realidade que é vida e alegria do homem, que é vista com os nossos olhos e tocada pelas nossas mãos, porém, excede o limite da nossa existência: o Verbo da vida feito carne até a morte na cruz e ressuscitado dos mortos. Só a testemunha do Ressuscitado é adequada a propor ao homem a esperança de uma vida e de uma felicidade que sustenta o confronto com as trevas do destino de morte que está sobre o mundo.
Sem mártires, sem o martírio, não há anúncio de esperança de vida e de felicidade. A Igreja é “mártir” pela sua natureza, porque foi instituída para ser no mundo sinal e instrumento da vida do Ressuscitado, para ser testemunha dEle, da vida e da alegria que estão em Cristo ressuscitado dos mortos.
O martírio é a vida do cristão, a natureza do cristão, pouco importa se este testemunho é tacitamente expresso na cotidianidade de uma vida de família ou de um mosteiro ou ressoante em meio ao mundo. Pouco importa se explicita-se em gestos cotidianos ou em gestos extraordinários, como o sangue derramado. A natureza do martírio não está na sua modalidade, mas no testemunhar que Cristo é a resposta ao desejo de vida e de felicidade do coração humano, a resposta que vence o destino de morte e de pecado.
O mártir, a testemunha de Cristo, vai até o fundo no desejo de vida e de felicidade que Deus colocou no coração do homem. O mártir é o homem que diz “eu” com uma tal verdade e potência que o diz também para os outros, porque a vida que o mártir quer e acolhe, chegando a morrer por ela, é Jesus Cristo, vida de todos, plenitude de vida de todo homem.
O mártir, o santo, a testemunha pode querer e acolher a vida para um povo inteiro de pessoas áridas, porque a Vida que quer e acolhe é Cristo ressuscitado.
Na liturgia, depois da consagração do pão e do vinho, portanto, na presença do Senhor crucificado e ressuscitado, o padre exclama: “Mistério da fé”, e todos os fiéis respondem: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”. Este é o “martírio” ao qual é chamado todo cristão que vive a sua fé e o seu pertencer à Igreja com maturidade. E é daí que renasce a esperança da salvação do mundo, de uma transformação do mundo para além da sua condição triste e mortal.
A vida da Igreja, há 2.000 anos, se explicita em comunidade, pessoas, lugares, obras e palavras que encarnam este testemunho cheio de amor pelo homem.
A Igreja ama o homem existindo, fazendo-se presente em toda parte que o homem vive e morre; presente com o seu coração eucarístico e com as suas mãos estendidas transmitindo a plenitude da vida que dela escorre. A Igreja pode sair pelo mundo inteiro gritando como Deus: “Há um homem que quer a vida e deseja dias felizes?”, porque a vida e a felicidade de cada homem queimam o seu coração e as suas mãos. E o homem que se deixa tocar pela Igreja experimenta o milagre de renascer na vida e na alegria da caridade de Cristo.
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