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Papa Bento 16 é "complexo" e sutil como o catolicismo
Gestos do papa em dois anos de pontificado o distanciam de caricatura conservadora
Folha de São Paulo, 6 de maio de 2007
Rafael Cariello
 

"ESPERAVA-SE pelo recrudescimento do inverno, e temos recebido uma suave brisa de primavera."
A frase do teólogo Fernando Altemeyer fazia a síntese dos primeiros 12 meses de pontificado do alemão Bento 16 e seu valor, ele afirma, permanece um ano depois. O papa que chega ao Brasil na quarta-feira para visita de cinco dias, responsável pela dura vigilância das verdades da Igreja Católica quando chefiava a Congregação para a Doutrina da Fé, é mais sutil, sofisticado e até "paradoxal" do que o antigo apelido de "Panzerkardinal" (cardeal "tanque") de Joseph Ratzinger fazia supor.
Onde queriam um intelectual inflexível, ele se mostrou místico; onde conservador, deu estímulos à ação social da igreja e fez críticas às desigualdades do mundo contemporâneo; quando apostavam num líder eurocêntrico, visita a América Latina.


Pontífice ataca "patologias" da modernidade
Para ele, assim como a fé pode se tornar fundamentalista, a razão às vezes se descola de valores que servem de balizamento

O papa Bento 16 é tão "paradoxal" quanto a Igreja Católica, afirma o sociólogo Francisco Borba, do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. Essa complexidade se manifesta principalmente no modo como ele apresenta a ligação entre fé e razão, e como vê a relação entre estrutura de poder da igreja e sua ação social no mundo secular.
Por ter combatido duramente a Teologia da Libertação nos anos 80, muitos, dentro da própria igreja, acreditavam que o papa reprimiria as experiências católicas, particularmente no terceiro mundo, ligadas à defesa dos pobres e da justiça social.
A principal crítica do papa à corrente que tinha como expoente, entre outros, o brasileiro Leonardo Boff, se referia no entanto ao uso feito por esses teólogos do marxismo como instrumento para compreender a própria igreja.
O questionamento do caráter transcendente da igreja e de sua estrutura de poder era portanto mais problemático para ele do que o uso do marxismo para a compreensão das desigualdades no mundo secular.
Em sua encíclica "Deus é Amor", escrita ainda no primeiro ano de pontificado, Bento 16 fala, em última instância, da presença da igreja no mundo e de seu dever de atuação social. O papa afirma ali que "algo de verdade existe" na perseguição proposta pelo marxismo de uma "ordem justa" social. "A igreja é a família de Deus no mundo; nessa família, não deve haver ninguém que sofra por falta do necessário", afirma o papa no mais importante documento de seu pontificado.
Em outro momento, num discurso aos núncios apostólicos da América Latina (espécie de embaixadores da igreja em cada país da região), Bento 16 afirma que "a assistência aos pobres e a luta contra a pobreza são e permanecem uma prioridade fundamental na vida das igrejas na América Latina".
Ele, no entanto, volta a fazer carga contra o marxismo em sua encíclica. A principal se confunde com a crítica à modernidade. Diz que "o tempo moderno, sobretudo a partir do oitocentos, aparece dominado por diversas variantes de uma filosofia do progresso, cuja forma mais radical é o marxismo".
Para Bento 16, assim como há "patologias da fé" -quando ela se torna fundamentalista, sem apoio na razão-, há "patologias da razão" ou patologias da modernidade -quando ela se descola de valores e de experiências de fé que podem lhe servir de balizamento moral.
Segundo Luiz Felipe Pondé, professor do Departamento de Teologia da PUC-SP, o papa desconfia da capacidade de a razão explicar tudo e não aceita reduzir o ser humano a um objeto da biologia, psicologia ou da sociologia. A idéia de que o progresso dará conta de tudo, sua promessa de felicidade e solução, é criticada por Bento 16 em sua encíclica: "Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor".
É também o amor -ou, posto de outra forma, Deus- que dá fundamento para sua crítica da razão. "A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo -um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito da própria razão."
É por isso que Francisco Borba afirma que não se compreenderá esse papa se não se aceitar que ele é antes de tudo um místico. "O grande problema para ele, seu grande enfrentamento com a cultura pós-moderna, é reafirmar que um Deus está sempre concretamente ao lado do homem", diz. "Diante disso, uma razão sadia se sabe incapaz de dar conta até o fim do fenômeno humano."
O lado mais "panzer" desse pontífice apareceu justamente no enfrentamento do que considerava ser uma "patologia" da fé e, depois, no de uma "patologia" da modernidade.
O primeiro caso ocorreu no já famoso discurso na Universidade de Regensburg, na Alemanha, em setembro passado, em que o papa afirmava que "não agir racionalmente é contra a natureza de Deus". Ele citou, sem endossá-lo, um imperador bizantino do século 15, que criticou o profeta Maomé por "sua ordem para espalhar a fé que pregava pelo medo da espada".
O segundo, quando, em março, definiu o segundo casamento como uma "praga" do "ambiente social contemporâneo", mantendo a distinção cristã de perdoar quem erra ao mesmo tempo em que aponta o erro.
"Sim, ele é paradoxal. A igreja é por excelência paradoxal porque ela trabalha com uma totalidade a que o homem não consegue racionalmente aderir", afirma Borba. Para Pondé, a aparência de contraditoriedade em discursos e gestos do então cardeal e do atual papa tem a ver com a dificuldade da "sensibilidade marqueteira" moderna em lidar com a sutileza e complexidade dos problemas.
"Ele não faz como os tradicionalistas, que transformam a vida em pedra, nem como os modernos, que a transformam em éter", diz Pondé. "As pessoas têm dificuldade em entender esse princípio católico que condena o segundo casamento e, ao mesmo tempo, é profundamente misericordioso com quem sofre com isso."
"A diferença entre o catolicismo e o protestantismo é que, no catolicismo, tudo acaba em missa."

 

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