* Padre João Carlos Petrini, sociólogo, é diretor do núcleo de Salvador (BA) do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família. O filósofo e teólogo dom Angelo Scola, autor de O Mistério Nupcial, hoje arcebispo-patriarca de Veneza, foi reitor da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. O lançamento do livro teve também a participação da professora Rosa Maria S. Macedo, coordenadora do Programa de Psicologia Clínica da PUC/SP.
Durante as décadas de 1960 e 1970, o que estava em discussão no diálogo entre Igreja e mundo eram pontos específicos de moral cristã. Debatia-se a condenação ao uso da pílula, a proibição do divórcio, mas se aceitava a arquitetura cristã da vida. Hoje, é o próprio ser humano, homem e mulher, que está em causa. Discute-se o significado da maternidade e da paternidade, e, assim, a reflexão sobre a família foi levada a ampliar seus interesses para gerar uma antropologia adequada ao debate atual, capaz de responder qual é o desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família.
É nesta perspectiva que se insere o livro de Angelo Scola, O Mistério Nupcial. Por um lado, a reflexão de Scola baseia-se na teologia de Hans Urs von Balthasar. A segunda fonte fundamental do livro são as catequeses do Papa nas quartas-feiras. Em seus primeiros anos de pontificado, de 1978 a 1981, o Papa falou sobre a teologia do corpo e do amor humano, começando com um comentário do livro do Gênesis, sobre o momento em que Deus cria o homem e a mulher. Scola identifica aí alguns pontos que trazem novidades à teologia tradicional do matrimônio e da família. Em primeiro lugar, dizia o Papa, trata-se de compreender a razão e as conseqüências da decisão do Criador de fazer existir o ser humano sempre e somente como mulher e como homem. Na encíclica Mulieris dignitatem, João Paulo II trata de duas teses que interessam desde o início a Scola. A primeira traça uma analogia entre a unidade dual de homem e mulher e as relações das três pessoas em Deus. A diferença sexual guarda analogia com a diversidade das três pessoas divinas. Com a mesma dignidade, o mesmo significado de humanidade, há entre homem e mulher uma diferença e ao mesmo tempo uma identidade substancial. A diferença sexual entre homem e mulher abre caminho para a comunhão, que pode, no amor, constituir uma família, gerar filhos. Eis a grande analogia com o amor trinitário.
A segunda tese afirma que a sexualidade humana é parte integrante da imago dei, a imagem de Deus sob a qual o homem e a mulher foram criados. Ao estudar as narrações da criação do livro do Gênesis, o Papa diz: “Aqui se deve encontrar a base de toda antropologia cristã” e, em Mulieris dignitatem, afirma que “o homem não pode existir só”. O homem só pode existir como unidade de dois e, portanto, em relação a uma outra pessoa humana. Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta existir em relação, em referência ao outro eu. Assim, na realidade contingente do homem e da mulher, a unidade se apresenta sempre como uma polaridade interna. O ser humano existe sempre e somente como ser masculino e feminino. Nenhum homem, nenhuma mulher pode esgotar unicamente em si toda a experiência humana possível. Sempre haverá uma outra maneira de expressar e vivenciar a humanidade, diferente daquela que lhe é própria. Desta forma se compreende a contingência da criatura humana, no sentido de que o eu depende do outro em vista da sua realização. O eu registra dentro de si uma falta que o abre a algo fora de si.
Essa contingência determina não só o limite do homem, mas, também, sua capacidade de auto-transcendência. Na descoberta do outro, diferente de si mas positivo para si mesmo, o homem pode se transcender. Nesse sentido, a contingência revela que o homem, como toda criatura, é sinal que remete ao outro. Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta, pois, também, um existir em relação, em referência a outro eu. Na tradição da teologia católica desde Santo Tomás de Aquino, a semelhança de Deus sempre foi entendida em relação à natureza racional e à capacidade de amar do homem. Pela primeira, a diferença sexual é referida a esse momento originário.
Sob essa luz, como pensar a diferença dos sexos? Ela não pode ser reduzida a um simples problema de funções, mas exige ser compreendida ontologicamente. Quando se fala da unidade dual da diferença sexual, entende-se uma reciprocidade que não é simétrica ou que não será sempre necessariamente simétrica. Scola diz: “Não podemos compreender homem e mulher como duas metades destinadas a fundir-se para reconstituir uma unidade perdida”. O homem não é uma metade, a mulher não é uma metade, ambos são seres humanos por inteiro, apesar de carregar essa deficiência que os impele inevitavelmente a buscar no outro a sua complementação. Além disso, em virtude de sua natureza sexuada, o homem descobre o nexo com a geração e a morte. A unidade dual põe o eu dentro dos ciclos das gerações humanas que se sucedem implacavelmente. Por ele, a própria espécie se conserva, mas ao mesmo tempo o indivíduo se expõe à morte.
Se a diferença dos sexos pertence ao ser do homem como imagem de Deus, não podemos entender a sexualidade humana fechada no intra-cósmico. Para Scola, isso quer dizer não reduzir a sexualidade humana ao nível animal. Por outro lado, a imagem não pode ser estabelecida no puro elemento espiritual. O homem é imagem de Deus agora no plano corporal. Chega-se assim ao ponto central do texto: a esponsalidade, o Mistério Nupcial. Na concepção de Scola, esse mistério define-se, por um lado, pela unidade orgânica de diferenças sexuais, amor pela sua objetiva unidade com o outro e fecundidade. Por outro, em virtude do princípio da analogia, refere-se objetivamente às diversas formas de amor que caracterizam quer a relação homem-mulher e seus derivados paternidade e maternidade, quer a relação de Deus com o homem no sacramento, na Igreja, em Jesus Cristo, para chegar até a própria trindade. O Mistério Nupcial é este entrelaçamento indissolúvel de amor, diferença sexual e fecundidade. De Adão e Eva até cerca de quarenta anos atrás, esses três elementos caminharam juntos. Sempre houve a possibilidade de viver a sexualidade de maneira ocasional, mas o grande caminho de toda a humanidade foi o do amor que se expressa na sexualidade aberta a gerar filhos e educá-los. Assim, o Mistério Nupcial imediatamente indica um projeto de vida partilhado entre um homem e uma mulher, indica uma responsabilidade recíproca de um para com o outro e o empenho de toda a vida, porque compromete o homem e a mulher que vivem o Mistério Nupcial a eventualmente procriarem filhos e educá-los. Esse entrelaçamento inextricável de vida, amor, sexualidade e procriação foi rompido com a contracepção química e outras formas de contracepção.
Todos podem imaginar como isso afeta o matrimônio e a família, pois matrimônio e família se assentam nesse entrelaçamento de amor, sexualidade e procriação. Scola, criando a expressão Mistério Nupcial, elabora uma constelação de conceitos que permitem pensar o matrimônio como reciprocidade e dom de si para a felicidade do outro.
No pólo oposto da nupcialidade, o que há? A ocasionalidade e o interesse parcial, contra, do lado da nupcialidade, um interesse pela totalidade da pessoa do outro. Pode-se, assim, até compreender o abuso sexual e a violência sexual como parte do pólo da ocasionalidade. Quanto mais a relação entre um homem e uma mulher se distancia do pólo da nupcialidade, mais está sujeita a parcialidades e, portanto, à violência.
Evidentemente, tudo isso é apenas o início do desdobramento de uma grande constelação de conceitos que pode tornar-se não somente eficaz de um ponto de vista intelectual, mas, também, operativa de um ponto de vista da investigação empírica. Esse é um trabalho ainda por ser feito.
Angelo Scola move-se do plano da filosofia para o da teologia e amplia sua reflexão para ver o Mistério Nupcial também na relação de Jesus Cristo com a Igreja. Comentando o capítulo 5 da Carta aos Efésios, quando São Paulo diz: “Maridos, amai vossas mulheres como Cristo amou a igreja e se entregou por ela...”, Scola conclui que a característica da nupcialidade é o dom de si para o bem do outro. Nesse sentido, evidentemente, o ponto de referência é o amor de Cristo pela Igreja. O dom de si para o bem do outro até o máximo sacrifício, como o de Jesus na cruz. Não há amor humano no horizonte da nupcialidade, do Mistério Nupcial, que não tenha de imitar em alguma medida o amor de Cristo pela Igreja. Portanto, não é possível pensar o amor humano senão como o dom de si para o outro, também na disponibilidade ao sacrifício.
Por analogia, a nupcialidade também pode indicar uma maneira de expressar a relação do homem com toda a realidade, inclusive com a natureza. Porque, se a nupcialidade se caracteriza por esse dom de si para o bem do outro e por essa relação de reciprocidade e responsabilidade, assim, a própria relação do homem com a natureza pode ganhar. Não se trata mais de uma relação que busca a dominação e quer impor e projetar esquemas mentais sobre a natureza. Trata-se, isto sim, do respeito, que se aproxima mais do Cântico das Criaturas de São Francisco, do que da filosofia de Kant e de tudo o que vem depois dele como tentativa prometeica de dominar a natureza no mundo moderno.
Considero o livro de dom Scola uma verdadeira mina que interessa não somente ao teólogo mas a todo o arco das ciências humanas. Neste sentido, o Mistério Nupcial reflete a característica de multidisciplinaridade dos institutos da família desde a origem do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre o Matrimônio. Foi pensado para trabalhar no horizonte da multidisciplinaridade, pois o diálogo entre as ciências humanas, a filosofia e a teologia é o que pode restituir à reflexão sobre a pessoa, o matrimônio e a família maior densidade e amplidão.
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