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O padre colombiano Leonel Narváez Gómez, doutor em sociologia pela Universidade de Harvard, é um grande especialista em combate à violência. Criou as Escolas de Perdão e Reconciliação, presentes em vários países, e ganhadoras da Menção Honrosa do Prêmio Unesco Educação para a Paz 2006. Sua reflexão e sua obra mostram como a partir de uma experiência religiosa consciente e aberta ao enfrentamento da realidade podem nascer estratégias eficientes, que dialogam com as ciências e a política, para o enfrentamento da violência.
Hoje vivemos um desafio crucial no mundo: como construir uma cultura nova que transforme a violência e crie a paz? Na entrada da sede da UNESCO em Paris está escrito “é no coração das pessoas que se origina a guerra e, por isso, é a partir do mesmo coração das pessoas que é necessário construir a paz”.
Muitas vezes pensamos: a pobreza causa violência, mas também a violência causa pobreza. Qual das duas devemos enfrentar primeiro? A tentação normal é de enfrentar primeiro a pobreza e isto está certo, desde que não esqueçamos que assim só resolvemos metade do problema. Para enfrentar a violência temos que levar em conta os fatores sócio-econômicos, mas também temos que considerar que na raiz deste problema está a raiva, o rancor, o desejo de vingança. Um pobre com raiva é duplamente pobre.
Devemos, antes de tudo, assumir a bem-aventurança de Jesus que nos convida a sermos misericordiosos como Deus é misericordioso. O Papa João Paulo II dizia para manifestarmos com nossos carismas peculiares o rosto misericordioso de Deus e o coração materno da Igreja. Quando as pessoas nos vêem, nossas atitudes devem ajudá-los a ver o Deus de amor, da bondade e da ternura. Talvez nada seja tão essencial ao apostolado e à evangelização como o conceito do amor infinito de Deus.
Tanto no Antigo como no Novo Testamento, Deus é um Deus de compaixão, lento na cólera e rico em misericórdia. Assim é na história de José, que apesar de vendido por seus irmãos consegue vencer o rancor e dá a seu filho o nome de Manassés (feito para esquecer, Gn 41, 51). No Evangelho de Lucas (7, 36), Cristo diz “sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso”. O perdão é um presente para si mesmo, um anseio pessoal, uma limpeza, um frescor. É a mesma linguagem de Deus. E com razão o rito de reparação que é a Eucaristia na Igreja católica tem sua importância singular.
O conceito de perdão precisa sair dos limites da vida religiosa e entrar na lista das virtudes políticas e do crescimento humano em geral. Perdão e reconciliação são hoje temas de fronteira entre a ética e a política.
Perdão e reconciliação não querem dizer impunidade. Eles não existem verdadeiramente sem justiça e verdade. Primeiro, o reconhecimento da verdade – que não repousa nem só na versão do agressor nem só na versão da vítima – é fundamental para que as vítimas possam se abrir à reconciliação. Segundo, as vítimas exigem que se faça justiça e que haja uma reparação material e simbólica do mal causado. A sabedoria dos Salmos, especificamente no 85, resume esta teoria: “a verdade e a misericórdia se encontram, a justiça e a paz se abraçam”.
Estamos lutando não pela justiça punitiva e sim pela justiça restaurativa. Justiça não é castigar, é restaurar. Acreditamos que as pessoas que infringem a lei devem ter a oportunidade de se recuperar. Este é um paradigma totalmente diferente, porque estamos acostumados a impor ao criminoso um castigo: que seja levado ao cárcere, à pena de morte, à prisão perpétua. Mas Deus é um Deus de amor, ou não? Existe o pecado que se chama feliz culpa, porque merece que Deus o redima, o salve. Essa culpa merecia que Jesus viesse à terra para salvar a humanidade. A espiritualidade de Deus é amor.
Mas a justiça implica também no conceito de solidariedade e de compaixão. A compaixão é a expressão mais direta da sabedoria. Por isso a cruz é o cento da fé cristã: ela é a sabedoria da compaixão.
As ESPERE
As Escolas de Perdão e Reconciliação (ESPERE) são grupos de 10 a 15 pessoas que se reúnem para transformar sua raiva, seu ódio e desejo de vingança. Encontram-se semanalmente, informalmente, com regras mínimas combinadas entre os participantes – sobretudo de completo sigilo. São guiadas por animadores, pessoas do mesmo bairro que se capacitaram para esse fim. Nasceram na Colômbia e rapidamente se espalharam, estando presentes no Peru, México, EUA e África. No Brasil, existem no Rio de Janeiro, em Niterói, Belo Horizonte, Salvador e Goiânia.
As ESPERE são basicamente um serviço para as vítimas. Procuram recuperar uma ética das vítimas, mas também funcionam como terapia de grupo e com suas dinâmicas facilitam a aplicação da sabedoria das pessoas simples, com efeito igual ou maior que o conseguido por profissionais caros e inacessíveis às comunidades pobres. Além disso, seus animadores se tornam multiplicadores de uma cultura de paz e mediadores de conflitos, gerando um trabalho de prevenção.
Quando alguém sofre uma violência, grande ou pequena, ferem-se três pilares da existência humana: o significado da vida, a segurança e a socialização. Nas ESPERE as pessoas são ajudadas a recuperar a integridade desses pilares. Isso se torna possível trabalhando em quatro dimensões: o pensar (dimensão cognitiva), o sentir (dimensão emocional), o atuar (dimensão comportamental) e o transcender (dimensão espiritual). Da psicologia dos traumas são tomadas algumas ferramentas básicas para que esse processo: crie um ambiente seguro, onde acontece uma empatia entre as pessoas; que ajuda-as a contar a história do que lhes aconteceu e colabora com a re-socialização da vítima.
Como parte da metodologia das ESPERE está a criação de territórios de paz. Num bairro, numa família, numa rua ou numa escola, as pessoas se reúnem e falam dos problemas que existem. Então, fazem um pacto e declaram o local um território de paz. Estes pactos podem se romper – as pessoas não são anjos, mas geralmente são bastante respeitados, pois. pessoas interiorizam esta posição.
Assim, as ESPERE se convertem em espaços sagrados onde as pessoas recuperam e fortalecem o que há de mais valioso em sua humanidade: a ternura, a bondade, a compaixão - aquilo que nos faz mais semelhante à Divindade.
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