Sílvia Regina Brandão, psicóloga pela PUC-SP, e doutora em Filosofia da
Educação pela FEUSP, é professora da Faculdade Santa Marcelina, e da
Universidade Municipal de São Caetano do Sul.
A dramática trajetória de Terri Schiavo e das pessoas que de uma forma ou de outra acompanham seu sofrimento tornou-se presente para milhões de pessoas por intermédio dos meios de comunicação. Pôs-se em questão para o Tribunal Federal da Flórida, e também para cada um de nós, o sentido de manter a vida dessa mulher privada de consciência plena. Uma particularidade não atenuante desse caso é o fato de a vida de Terri não depender de um meio terapêutico extraordinário, mas apenas da continuidade de alimentação por meio de um tubo.
Há sentido numa vida humana que se encontra em estado vegetativo subliminar ou “estado mínimo de consciência” (MCS, por sua sigla em inglês), que provoca sofrimento intenso naqueles que a cercam e talvez na própria paciente? Cada um de nós, familiarizado com uma mentalidade pragmática e hedonista, pergunta-se sobre a razão e a finalidade de se conservar uma vida nessas condições: para quê? O sentido da existência está associado à qualidade de vida ou à plena expressão das potencialidades humanas?
A questão sobre o sentido do sofrimento é inevitável e impressionantemente fecunda quando é enfrentada em primeira pessoa, diante das circunstâncias dolorosas da própria vida ou da de outros homens. Apesar da aversão que nossa cultura tem pelos temas do sofrimento e do sacrifício, eles fazem parte da condição humana.
Se o sofrimento é condição inextirpável da vida e é impossível não enfrentá-lo, faz-se necessário conjugá-lo com o sentido que tem a existência, pois, se ele for simplesmente rejeitado, sob determinadas circunstâncias, acabar-se-á por rejeitar a própria vida.
O sentido do sofrimento foi abordado de forma extraordinária pelo psiquiatra austríaco Viktor Frankl, seja mediante sua experiência pessoal ao ter sobrevivido a quatro campos de concentração, seja por sua contribuição original no campo da Psicologia e Psiquiatria, formulando a Logoterapia - terceira escola de psicoterapia de Viena -, que centra o processo terapêutico na busca de sentido para a existência, concebida como a principal força motivadora no ser humano. Frankl conta que quando chegou a Auschwitz e precisou separar-se do manuscrito de seu primeiro livro, teve de sofrer e superar a perda desse filho espiritual. Ele relata que diante desta situação crítica sua primeira impressão era de que não conseguiria sobreviver, mas que, logo depois, percebeu que passou a ter uma preocupação diferente da maioria de seus companheiros: “A pergunta deles era: ‘Será que vamos sair com vida do campo de concentração? Caso contrário, todo esse sofrimento não tem sentido’. A pergunta que atormentava a mim era: ‘Será que tem sentido todo esse sofrimento, toda essa morte ao nosso redor? Caso contrário, não faz sentido sobreviver; uma vida cujo sentido depende de semelhante eventualidade – escapar ou não escapar –, em última análise, nem valeria a pena ser vivida’” (Frankl, V. Em busca de sentido. Petrópolis, Vozes, 1993, p. 103).
Descobrir o sentido e o valor que contém a experiência de sofrer é uma exigência humana fundamental: o sofrimento, a necessidade, a morte fazem parte da vida e configuram-na de um certo modo. Ser tocado e atravessado pelas questões que a vida coloca, pelo mistério inefável da existência, é condição necessária para o acontecer humano, para que se revele o modo propriamente humano de estar no mundo.
Frankl ajuda-nos a entender que a falta de êxito ou de sucesso não significa falta de sentido. Pelo contrário, o valor e o significado da existência podem se revelar de forma ainda mais abundante e profunda pelo modo de responder a limitações ou estreitezas impostas pelas circunstâncias. Estas condições são uma oportunidade – em muitos casos a última - que a vida oferece para que a pessoa possa descobrir o valor absoluto da vida e assumir a sua existência, afirmando o valor único e irrepetível que ela contém. É portanto possível descobrir esse valor em meio a toda e qualquer situação, desde que a pessoa não considere “a vida” vagamente, mas encare a sua vida, e responda pessoalmente às perguntas vitais que lhe são colocadas.
A essa afirmação incondicional do sentido da vida e do sofrimento contrapõe-se a posição advogada por muitos defensores da eutanásia. A maioria de seus argumentos baseia-se exatamente na defesa da possibilidade de se escolher enfrentar ou renunciar a situações de extremo sofrimento, alegando ser um direito humano a liberdade para morrer. A avaliação do valor da vida, da qualidade ou intensidade do sofrimento a ser suportado torna-se então relativo: o critério para julgar e decidir sobre a continuidade da própria existência ou da dos familiares seria inteiramente individual, dependente de interesses e vontades particulares, circunstanciais.
Na contramão, a Igreja posiciona-se contra a eutanásia não só por afirmar o valor irredutível da vida e do sofrimento do doente, mas sublinhando o imenso significado que o sofrimento de cada homem tem para todos os homens. Cada pessoa tem um valor absoluto, por existir e ser ela mesma e por ser imprescindível para o outro. Eu me realizo com o outro; a existência dele tem um valor inestimável para mim; o sentido afirmado pela vida de cada pessoa tem repercussão decisiva para todas.
A carta apostólica Salvifici Doloris - o sentido cristão do sofrimento humano – ilumina com muita precisão a experiência da dor. Nela, o papa João Paulo II afirma que a pergunta sobre o sentido do sofrimento é plenamente humana e reconhece que o homem “sofre de um modo humanamente ainda mais profundo se não encontra resposta satisfatória” (SD, 9). Não raramente, essa pergunta é feita a Deus, que a espera, escuta-a e responde. A resposta que Cristo oferece à pergunta sobre o sentido do sofrimento não é abstrata, não responde por meio de uma doutrina. Ele acolhe com seu sofrimento a essas perguntas que os homens lhe dirigem “e quer responder-lhes da Cruz, do meio do seu próprio sofrimento” (SD, 26).
Aqui se manifesta o valor místico, sobrenatural do sofrimento. Cada homem pode associar-se a Cristo e descobrir que seu sofrimento pode ser e é transformado, não por uma ação exterior, mas por meio de uma graça interior, que se manifesta doce e intensamente em sua interioridade: “Cristo, mediante o seu próprio sofrimento salvífico encontra-se bem dentro de cada sofrimento humano, e pode assim atuar a partir do interior do mesmo, pelo poder do seu Espírito de Verdade, do seu Espírito Consolador. [...] À medida que o homem toma a sua cruz, unindo-se espiritualmente à Cruz de Cristo, vai-se-lhe manifestando mais o sentido salvífico do sofrimento. O homem não descobre esse sentido ao seu nível humano, mas ao nível do sofrimento de Cristo. Ao mesmo tempo, porém, desse plano em que Cristo se situa, esse sentido salvífico do sofrimento desce ao nível do homem, e torna-se, de algum modo, a sua resposta pessoal. E é então que o homem encontra no seu sofrimento a paz interior e mesmo a alegria espiritual” (SD, 26).
Cada sofrimento humano contém uma potencialidade inimaginável de bem e de paz não apenas para quem sofre, mas para todos. Quando supera a sensação de inutilidade do sofrimento, a pessoa descobre que por meio dele pode contribuir de modo particularmente fecundo, aceita a si mesma com sua humanidade, sua dignidade, sua missão. Essas possibilidades profundamente humanas são negadas por uma cultura que deseja privar o homem da descoberta dessa potencialidade do sofrimento. Aqui se revela a urgência em se comunicar o imponderável valor de experiências que não podem ser totalmente dominadas pelo ser humano; somente nelas o homem pode ser conduzido a participar em primeira pessoa de um mistério e beleza de outro modo imperceptíveis. É uma batalha para que a vida humana, o homem não fique mais pobre e frágil.
Porém, tal percepção só é possível diante do reconhecimento do valor irredutível da vida, o que implica uma real e experienciável positividade de todas as suas circunstâncias, revelada a quem não se entorpece diante dos obstáculos difíceis da existência. No caso Terri isso fica evidente, pois o que motivou sua morte foi uma série de “conveniências” que passaram ao largo do valor infinito de sua vida.
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