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O avião engolido pelo mar revela o grito do coração
Artigo publicado na revista Passos, no. 106, julho 2009
Luca Doninelli
Esse artigo é uma colaboração da revista
 
Luca Doninelli é filósofo e jornalista.
 

Temos a impressão de cair no nada, diante da tragédia com o Airbus francês que caiu no mar na noite de 31 de maio de 2009, matando 228 pessoas. Mas, ao contrário, é o Mistério que se torna evidente.

O drama do Airbus francês que desapareceu no mar, entre as costas brasileira e africana, suscitou grande consternação em todos e discussões sem fim. Nessas ocasiões há sempre um ou outro que lembra o velho argumento segundo o qual morre cada vez mais gente nas estradas, no trabalho, ou vítimas de acidentes domésticos.
Mas nesses casos a estatística só produz irritação. A ideia da razão entendida como medida das coisas não se sustenta, desfaz-se a ilusão de que tudo está sempre sob controle, e emerge o verdadeiro tema cultural da nossa época, que consiste numa espécie de escândalo. Acontece alguma coisa e o homem, como dizia Montale, volta-se para trás e o que vê? “O nada, o vazio atrás de mim”. E, agudamente, acrescenta: “com o terror de um bêbado”.
Aí não é como num terremoto, que permite, pelo menos, o apelo à parte generosa, solidária, que existe, graças a Deus, em nós. Aí não podemos usar a nossa generosidade para aliviar um pouco a dor, e somos obrigados a dar imediatamente aquele passo “além”, que os testemunhos de muitos amigos que enfrentaram um terremoto nos mostram abundantemente.
Muitos se identificam com as pessoas que estavam naquele avião, assustadas com o sentimento de total impotência que, na opinião delas, deve ter invadido a todos, passageiros e tripulação. E enchem a imaginação de detalhes (“imagine as mães que estavam lá com seus bebês no colo”, “imagine como se sentia o comandante”, etc.), que nascem da própria angústia.
Quando ouço essas coisas me vem à mente que é estranho, mas em um momento como esse fica evidente algo que deveria ser a evidência constante da vida de um homem: a sua dependência, o fato de não poder fazer nada, nem por um instante. Mas essa dependência se apresenta sob a forma de uma condenação à morte.
Desfeitas as ilusões da razão-medida, desfeito aquilo que Montale chama de “engano habitual”, eis-nos mergulhados no nada. Esse é o escândalo da nossa época, que gera uma rebelião – esta, sim, irracional, romântico-sentimental – contra o Destino.
No entanto, esse mergulho no nada não é uma coisa evidente. A razão não nos diz isso. A razão nos diz que existe um drama, um risco que a liberdade deve assumir até o fim. Mas “até o fim” significa, sobretudo, “sempre”, ou seja, por meio de um trabalho cotidiano. Chama-se ascese, e não é uma coisa só para pessoas especiais; é uma coisa humana, e ponto.
Com frequência me pergunto: por que, em nosso tempo, prevalece uma ideia de razão tão redutiva? Uma resposta possível seria esta: que uma ideia de razão como medida desacostuma o homem de se confrontar com as exigências infinitas do próprio coração, tornando o cidadão mais governável, mais manipulável pelo poder. Assim, quando o Mistério se torna evidente, como na aventura do Airbus e das suas pobres vítimas, a pessoa só vê o nada.
É uma questão de educação da liberdade, é uma questão de trajetória a ser percorrida. E é também uma questão de realidade, porque quando nos identificamos com quem se encontra em situações dramáticas, em geral prevalecem as imagens produzidas pela nossa fantasia, pelos nossos sentimentos confusos, pelo nosso medo. Vivemos na civilização dos sonhos, onde o critério do bem e do mal é estabelecido pelos sonhos.
Assim passa por idiota, por louco, alguém dizer que essas pessoas estão nas mãos do Mistério que as fez. No entanto, é isso, e nada mais que isso, o que grita nosso coração. Não é verdade? Mas não podemos dizer isso, e o nosso coração deve continuar vivendo como um clandestino.

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