José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo
Ao colocar as esperanças da Igreja de hoje especificamente na América Latina e, em particular, no Brasil, o Papa mostra-se atento à importância de uma Igreja no limiar de mundos da diversidade, uma Igreja que ainda retém a riqueza de encontros de culturas e de sociedades que foram fundamentais na expansão cristã e na universalização da Igreja. A pós-modernidade dos combates de Ratzinger é aquela da Europa socialmente fragmentária, rica e hegemônica, a que perdeu o sentido da esperança e também o sentido da história.
É compreensível que lá a Igreja de Bento XVI que se abre para o diferente não tem alternativa senão abrir-se coberta pela firmeza na identidade doutrinária e teológica, conservadora, para não se alienar e não se perder na identidade do outro. Aqui, há os mesmos motivos porque, na coexistência dos tempos históricos que marca esta sociedade, a fragmentação social também existe entre nós, mais perversamente até, porque não é fruto da abundância e sim da privação. Porém, o cenário é diverso e é outro o embate que desafia a Igreja, embora pareça o mesmo.
O Papa tratou disso na Catedral da Sé, falando aos bispos, ao falar do compromisso da Igreja com os pobres no Brasil. Ao falar da importância do ecumenismo na unidade dos cristãos para firmar o fundo ético de sustentação do caráter ativo de sua diferença e de sua identidade, não só religiosa, para disputar o lugar que lhes cabe no mundo contemporâneo. Insistiu na catequese junto aos católicos distantes da Igreja, praticamente a conversão desses católicos ao catolicismo. O mesmo que fazem as novas igrejas.
Bento XVI vem visitar, como líder religioso, o país que ainda se divide, sem evidente conflitividade nos dias de hoje, entre o catolicismo da Conquista e o catolicismo da Romanização. O catolicismo da Conquista, que foi o catolicismo dos primeiros missionários, sobretudo jesuítas, o catolicismo austero da Contra-reforma, o catolicismo da conversão dos índios e da dominação colonial. Mas que foi, também, o catolicismo da criação de uma cultura brasileira, de uma língua brasileira, o nheengatu (que seria proibida pelo Rei no século 18) e de uma contraditória cordialidade brasileira. Um catolicismo que acabou conquistado por seus destinatários, os índios convertidos e os mestiços deles descendentes. Os que, no século 18, ganharam uma identidade residual na sociedade brasileira, como caipiras e sertanejos, os marginalizados da sociedade escravista. Personagens de uma religiosidade que se transformou no nosso ingênuo, suave e belo catolicismo popular.
Romanização foi o nome que se deu à reorientação dos vínculos do catolicismo no Brasil para o pleno domínio de Roma e do Papa no processo que culminou com o fim do Padroado, o direito do Imperador nomear os bispos. A Romanização coincidiu com o processo do fim da escravidão e da proclamação da República, que promoveu a separação do Estado em relação à Igreja. Coincidiu, portanto, com duas radicais rupturas na organização social e política do Brasil e veio a se constituir na terceira e simultânea ruptura, a religiosa, que contrapôs culturalmente o catolicismo romanizado ao catolicismo brasileiro herdado dos tempos coloniais.
A polarização entre o catolicismo romanizado e o catolicismo popular emergiu com violência em várias ocasiões ao longo da história republicana. Ganhou expressão trágica na Guerra de Canudos (1896-97), na Bahia, e na Guerra do Contestado (1912-1916), em Santa Catarina, e seus milhares de mortos. Foram guerras santas, camponesas, mascaradas por motivações políticas tanto do ainda inseguro governo republicano quanto da ainda insegura Igreja romanizada, ambos do mesmo lado, cheios de temor quanto à dimensão política da religiosidade do povo.
Os teólogos da libertação, em busca de um sujeito social de referência, ao mesmo tempo teológica e política, optaram pela categoria abstrata dos pobres e fizeram deles o sujeito impreciso de seu labor teológico. Houve os que não perceberam que a saída para as vítimas dessa exclusão histórica passava pela mediação interpretativa e missionária que Bento XVI parece ver e propor. Ao identificar e dar prioridade a outros conflitos no mundo dos pobres, os conflitos propriamente materiais e políticos, deixaram de reconhecer a fundamental importância religiosa e política das novas identidades de luta na modernidade e a natureza ética da luta por relações sociais justas, fundadas na crítica moral da violência econômica, da injustiça, da alienação, da enorme extensão da realidade da pobreza como pobreza material e de condições de vida, sem dúvida, mas como pobreza de esperança, de alegria, de sonho, de direitos, de liberdade.
Ora, Ratzinger, filósofo e teólogo, é a melhor expressão intelectual da linha de purificação da Igreja, iniciada com a Romanização, no fim do século 19, revitalizada no papado de João Paulo II, que o teve como seu braço direito. Na Exortação recente, ele reconhece a legitimidade da inculturação religiosa, na necessidade do diálogo com o diferente e a diferença, como a que está vivendo aqui no Brasil, nestes dias, especialmente nas ruas.
Bento XVI, tudo indica, optou por esta viagem ao Brasil para beber nas mesmas fontes em que beberam os teólogos da libertação. Na perspectiva, porém, de uma inserção da Igreja Católica na modernidade com base no reconhecimento de que é legítima a diversidade não só social, mas também de pontos de vista e de concepções a respeito do mundo e da fé, o que já havia indicado no debate com Jürgen Habermas, em 2004, na Academia Católica, em Munique. Não para fazer da fé católica uma fé relativa, diluída num mar de diversidades sem hierarquia de substância. Mas para fazê-la uma fé libertadora ante os perigos da coisificação da pessoa, e de sua alienação, na complicada trama de equivalências que anunciam o céu cinzento da pós-modernidade sem esperança. E aí começam os desafios para a Igreja na América Latina, em particular para a Igreja no Brasil.
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