Professor de Ciências da Religião na PUC-SP e de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP)
Segundo Pondé, Bento XVI acha que ultrapassados somos nós, os modernos. E equivocados, os religiosos que misturam fé e política, Jesus Cristo e Che Guevara
“Ao mesmo tempo que faz o primeiro santo no País, o papa sinaliza: ‘Vou continuar dizendo que a Teologia da Libertação acabou.’ Mas, as melhores cabeças do nosso clero ainda são formadas sob uma visão sócio-análitica do mundo”
Aureliano Biancarelli e Laura Greenhalgh
Quando a fumaça branca contou ao mundo que o cardeal Joseph Ratzinger seria o novo chefe da Igreja católica, sob o nome de Bento XVI e substituindo João Paulo II, as primeiras reações ficaram por conta do impacto natural do anúncio. O teólogo alemão linha dura, que em 1985 impôs o silêncio ao franciscano brasileiro Leonardo Boff, chegava ao topo da hierarquia católica. Meses depois, aqui e ali, registraram-se manifestações de altas patentes eclesiásticas - inclusive no Brasil - sugerindo que o pontificado poderia abrandar o velho Ratzinger. E mais: que a sólida formação teológica do ex-chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, aliada ao “peso do manto”, poderia resultar num surpreendente papado de renovação.
Na semana passada, Bento XVI desnorteou quem fez essa aposta. Ao divulgar sua primeira exortação apostólica, um documento de 131 páginas intitulado Sacramentum Caritatis (O Sacramento do Amor), espécie de síntese do Sínodo de 2005, o papa mandou ver na caneta. Pregou o retorno do latim e do canto gregoriano na celebração da missa, desqualificou a confissão comunitária, criticou padres que se coloquem como “protagonistas da ação litúrgica”, fincou pé no veto ao aborto, à eutanásia, às uniões entre homossexuais, e comparou a disseminação do segundo casamento entre os católicos a uma “praga social”. Armou tal confusão no mundo católico que tradutores se embolaram para dizer que, no contexto, “praga” significaria “chaga”, “ferida”, “mácula” - mas, ao que parece, o pontífice quis dizer “praga” mesmo.
Retrocesso no catolicismo? Voltaremos a situações anteriores ao Concílio Vaticano II, que deu novos ares à Igreja? É disso que trata a entrevista que se segue do filósofo Luiz Felipe Pondé, professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado. Pondé há anos vem estudando a vereda teológica de onde saíram pelo menos dois papas, João Paulo II e Bento XVI - semelhantes nas concepções doutrinárias, embora com biografias tão distintas. “Não se pode estranhar o conteúdo da exortação. É exatamente a continuidade do papado de João Paulo II”, garante o professor, autor de Crítica da Profecia - Filosofia da Religião em Dostoievski (Editora 34) e Do Pensamento no Deserto ( a sair pela Edusp). Com uma diferença nada desprezível: com a bagagem teórica do papa alemão, a modernidade que se cuide. Ganhou um crítico contumaz. Um demolidor da sociedade de consumo que, com suas conexões mediáticas e tecnológicas, joga o ser humano num vazio de pessimismo e desesperança.
Para começar, o que é uma exortação apostólica?
É uma manifestação papal que nasce do sínodo. Deve orientar não só os bispos, mas todo o clero, sobre questões cotidianas. Como se fosse um documento construído a partir da reunião pedagógica de uma escola, feito para que o professor saiba os princípios que vão guiá-lo. Portanto, tende a tocar temas prementes, como de fato aconteceu no sínodo de 2005. Sendo assim, a exortação apostólica de Bento XVI nada tem de novo. É fruto desse processo.
O sínodo já apontava tais diretrizes?
Sim. Tudo o que está sendo dito agora é o que Bento XVI pensa, o que o Ratzinger já pensava e o que o João Paulo II também pensou. Faz parte de um movimento contínuo que a Igreja vem fazendo ao longo dos tempos.
O encaminhamento das questões tratadas no sínodo de 2005 teria sido diferente fosse o papa João Paulo II e não Bento XVI?
Dizem que, nos últimos anos de João Paulo II, já era Bento XVI que reinava. A relação de ambos era estreita, teologicamente falando. Do ponto de vista da personalidade, Bento XVI é um homem de idéias, intelectual capaz de enfrentar um debate com Habermas (Jürgen Habermas, filósofo alemão, ligado à Escola de Frankfurt). João Paulo II, em contrapartida, era um místico. Diferentes na personalidade, assemelhavam-se demais em termos teológicos.
Isso explicaria o retorno às tradições e aos ritos católicos, expresso na exortação? Ou seja, os dois últimos papados se colocam de acordo numa posição mais regressiva?
Regressão, recuo, retrocesso, nenhum destes termos explica o que está acontecendo. João Paulo II e Bento XVI formaram-se na tradição católica que busca a reforma interior do ser. Segundo essa tradição, é preciso investigar a fundo a natureza humana, como fez Santo Agostinho. Ora, Bento XVI é um agostiniano por excelência. Ele considera que a natureza humana é imperfeita e padece com uma desordem que precisa ser contida. Isso soa de forma antipática aos ouvidos dos “modernos”, gente como nós. Mas, vejam bem: dentre as idéias que definem a modernidade está a de que o homem é auto-regulado. Que tem condições de tomar consciência de seus limites e aprimorar-se. A noção do “ser perfectível”, que pode melhorar com o tempo, surgiu no século 13. Porém, a visão de Agostinho, bem como a posição de um papa como Bento XVI, é a de que natureza humana tem dificuldades estruturais. Se você não a corrige, ela se degenera.
Então Bento XVI é um crítico da modernidade?
Sem dúvida. O que boa parte das pessoas tem dificuldade de entender é que o papa não considera a modernidade como algo que tem valor a priori. O que na nossa formação é estranho. Fomos criados nos cânones da modernidade, crescemos acreditando que a democracia resolveria tudo, e não é bem assim. O regime democrático não resolve os impasses da família, por exemplo. Nem funciona a contento em uma sala de aula. Porque são estruturas hierarquizadas. Por isso estranhamos este teólogo duro, capaz de quebrar protocolos e que está preocupado com a desordem do mundo.
Num belo perfil que escreveu sobre João XXIII, a cientista política alemã Hanna Arendt (1906-1975) lidou com a hipótese de que ele só conseguiu ser o grande reformador da Igreja católica porque acreditava piamente que Deus era o chefe. E que ele próprio, papa, seria mero executor de ordens superiores. Não é estranho que um místico tenha aberto portas e janelas da Igreja, no Concílio Vaticano II, como fez João XXIII, e que um teólogo de sólida base intelectual, como Bento XVI, proponha o retorno à tradição?
O que diriam hoje João Paulo II e Bento XVI sobre o Vaticano II, hein? Diriam que houve excesso, houve enganos na leitura do que era a intenção primordial do Concílio, uma melhor compreensão da modernidade.
Só que o cardeal Ratzinger foi um dos formuladores do Concílio...
Sim, mas em seguida ele diria que houve má interpretação das decisões conciliares e que foi um equívoco supor que a Igreja devesse se submeter às demandas da modernidade. Bento XVI entende que a Igreja é uma instituição que contempla a eternidade, enquanto a gente está mais preocupado com o que vai acontecer no mundo nos próximos dez anos. Sendo uma instituição de olho no eterno, para que ter pressa? Isso introduz a variável temporal, que para nós é estranha. Entre o Vaticano II, que autorizou a missa celebrada em idiomas vernaculares, e Bento XVI, que vai botar a moçadinha para estudar latim de novo, sentimos uma longa respiração, esse vai-e-volta que é o entendimento que a Igreja tem de si mesma. Quando um teólogo fala em retrocesso, ou quando alguém diz que é caretice rezar em latim, Bento XVI apenas dirá: “Você está mesmo contagiado pelo mundo secular”. Ele entende que a Igreja é uma instituição com uma temporalidade própria, determinada pela intersecção entre o “mundo transcendente” e o “mundo mundano”.
A missa voltará mesmo a ser rezada em latim?
Ou parte dela será rezada em latim, não sei. Seria simplista achar que isso é apenas retrocesso político. Não é, até porque o que guia a Igreja é a busca do homem para entender seu destino final, que é Deus. Agora, todo mundo sabe de cultos em línguas estranhas. Muita gente vai à sinagoga e se compraz ouvindo aquelas cerimônias em hebraico, sem entender palavra. Ou se delicia com os mantras, com a musicalidade do sânscrito num culto budista. Tudo lindo... Então por que não podemos ter uma parte da missa rezada em latim? Por que temos de privar as pessoas do deleite de ouvir o canto gregoriano? Por que achamos compreensível o celibato do Dalai Lama, mas criticamos o celibato dos padres? Essa é a grande tragédia do cristianismo: ele engendrou a modernidade e ela o devora, o tempo todo.
Bento XVI também começa a dizer a que veio no enquadramento de teologias que se afastem da “oficial”. É o caso da condenação ao silêncio do bispo Jon Sobrino, de El Salvador, ligado à Teologia da Libertação. Ratzinger, que puniu Leonardo Boff no passado, não mudou de convicções?
Há um casamento entre tradição e mística, que não é lá muito fácil. Imagine o encontro de João XXIII com João Paulo II no céu. O italiano deve ter dito ao polonês: “As pessoas entenderam tudo errado, João Paulo. A Igreja precisava se abrir para escutar os fiéis, para entender suas angústias, e acharam que era preciso transformar Marx em profeta”. João Paulo II pode ter-lhe dito: “E eu que tive de consertar as coisas, especialmente lá na América Latina, quando os caras já estavam achando que Jesus e Che Guevara eram a mesma pessoa.”
Mas João Paulo II chegou a dizer que a Teologia da Libertação era moralmente aceitável na América Latina...
E Bento XVI, também! Ele não condena a inspiração teológica de Gustavo Gutierrez (frade dominicano nascido no Peru, considerado o fundador da Teologia da Libertação). Tanto João Paulo II como Bento XVI entendem que a Teologia da Libertação é corretamente inspirada no carisma profético da Igreja, por sua vez herança do profetismo hebraico. E que, portanto, a Igreja tem a missão de combater a injustiça no mundo, assim como os profetas de Israel combatiam. O erro da Teologia da Libertação foi ter feito do marxismo a hermenêutica para realizar essa transformação. Ratzinger falou isso em 84, repetiu em 86.... E o que se viu? A Teologia da Libertação sucumbindo a um contexto de luta político-institucional na América Latina. Para alguém como Bento XVI, é inconcebível que esta teologia tenha desembocado na fundação de um partido político, o PT, mas não tenha conseguido criar as condições para enfrentar a expansão do neo-pentecostalismo.
A politização do clero vem da “opção preferencial pelos pobres”?
Pois é, Bento XVI não entende assim. Jesus falou que os ricos não entrarão no reino dos céus, mas ele também falou “dai a César o que é de César”. A Teologia da Libertação escorrega ao achar que os pobres são uma espécie de classe messiânica, ou que a graça só está nos excluídos, quando na realidade está em todo mundo. Nós, os intelectuais, formamo-nos basicamente no universo marxista, de esquerda, entendendo a democracia como alguma coisa insuperável.Mas, insisto, para Bento XVI e João Paulo II as demandas modernas não necessariamente implicam em sucesso na vida ou melhoria das pessoas. Para eles, a modernidade não é um pilar, nem um ponto de partida obrigatório, mas um momento complexo na história da humanidade. Um momento que vem se desgastando. Achamos que é melhor distribuir camisinha para nossos filhos do que enfrentar a família que está em desequilíbrio, onde as pessoas já não mais cuidam das pessoas. Também continuamos a acreditar que a felicidade é a coisa mais importante da vida, a felicidade imediata, o gozo. Somos os fiéis da modernidade.
Na exortação, o papa condenou o segundo casamento. Não é complicado Bento XVI discriminar milhões de fiéis?
Importante é perceber as nuances disso. Muitas pessoas, especialmente nas classes mais simples, estão se mantendo no casamento de origem, mesmo sofrendo, porque a união é indissolúvel. Digo sofrendo, porque casamento não é uma coisa fácil. Se a Igreja abrisse a porteira para a separação, o que aconteceria? Se eu já entro no casamento achando que posso sair dele em alguns anos, viverei um cotidiano sem solidez. E isso leva a um processo de degeneração. Quando a Igreja diz “não se separa, se não a gente manda embora”, ela já acena com a punição, que é, para muitos católicos, o sofrimento de quem não conseguiu manter o que deveria ser mantido. Isso não significa perder espaço na Igreja.
Como, se até a comunhão lhes é negada?
Não significa perder a piedade da Igreja. Como não significa que o padre vá negar cuidados espirituais. A Igreja não odeia o pecador. Odeia o pecado.
Há milhões de “descasados” católicos que estabelecem uma espécie de “linha direta” com Deus, sem passar pelo padre, pelo bispo, pelo papa. E comungam. A condenação de Bento XVI ao segundo casamento não aumenta o fosso entre Igreja e sociedade?
Bento XVI deixa patente que não está tão preocupado com a quantidade, mas com a qualidade dos fiéis que povoam seu rebanho. A lógica dele é a seguinte: ao tornar claro que esse montão de descasados “sofre”, passarei para os jovens o exemplo do que não deve ser feito. Baseia-se numa convicção inabalável: o ser humano tem problemas, cabe a mim cuidar deles.
Dentro da pastoral da família, há casais em segunda união que a Igreja acolhe... Tudo isso se desmorona agora?
A Igreja tem uma temporalidade. De repente, existe um padre lá na Zona Leste que trabalha com esses casais, daí o bispo fecha o olho, porque sabe que tem muita gente sofrendo... A Igreja tem essa respiração... Não haverá operação-desmanche. E nem uma caça aos descasados.
Mas as pessoas vão se sentir vivendo em pecado...
Eis uma frase perfeitamente possível em se tratando de um Bento XVI: “É normal que o ser humano se sinta em pecado. Porque ele está.”
O Vaticano não se preocupa com a perda de fiéis?
Provavelmente, sim. Ao mesmo tempo, busca-se o cristão no entendimento católico. O que a Igreja de Bento XVI está dizendo? Um discurso assim: “Nós não vamos mais fazer acordo com cristão meia-boca. Você quer ser católico? Você é separado? Tudo bem, você vai continuar a ser católico, mas vai saber que fracassou no estabelecimento da família. Nós não vamos deixar você pensar que descasar é legal porque, afinal, você partiu para outra”. O cristão católico terá de alcançar a consciência de que não conseguiu manter a família, que ela é sagrada porque os filhos não são seus, mas são de Deus.
É necessário, como diz o papa, que os descasados cumpram penitências e façam obras de caridade?
É o que ele recomendaria a qualquer pecador.
Quando diz que está interessado em qualidade, não em quantidade de fiéis, isso pressupõe uma seleção no rebanho. Por outro lado, o Brasil está se tornando o grande país pentecostal... E então?
Um católico como Bento XVI leva a sério o fato de que o mal existe no mundo. Ele não é como nós, modernos, que achamos que o mal é uma invenção psicológica, porque você apanhava muito na escola, por exemplo. O mal está posto no mundo, não é uma criação humana. E o papa não é freudiano, nem marxista. Segundo teologias ortodoxas, para as quais ele se volta, o mal é da ordem da decomposição do ser. Claro, há o risco de perder fiéis, mas Bento XVI entende que não deve ter medo do mal e nem fazer acordo com ele. Quando houve aquela confusão do papa com o mundo islâmico, acharam que ele tinha pedido desculpas. No meu entender, não pediu. Foi e continuou sendo mal entendido. Ele queria dizer que, toda vez que se rompe o diálogo entre razão e fé, as vocações religiosas tornam-se sombrias.
Na exortação, trata como questões inegociáveis o aborto, a eutanásia, o divórcio, uniões homossexuais e o ensino da religião católica.
É um pacote clássico. E um ato de enorme coragem.
E diz isso logo no início do papado.
Ratzinger tornou-se papa já com idade. Portanto, ele pode imprimir uma certa velocidade ao pontificado. Mesmo assim, jamais devemos perder de vista que a Igreja tem 2 mil anos e uma tradição girando dentro de si mesma. Trata-se de um campo de experiência muito antigo, ao passo que nossa sensibilidade é voltada para o futuro. Quando (o pensador político francês) Aléxis de Tocqueville vai para os EUA, em 1831, ele já percebe a desconexão entre passado e futuro na jovem sociedade democrática. E tendemos a esquecer que a Igreja católica atravessou guerras, pragas, pestes, cismas, rupturas, atravessou o nazismo, o comunismo... Isso contém uma experiência humana incrível.
Na última quarta-feira, o Vaticano divulgou notificação impondo o silêncio para o padre espanhol Jon Sobrino, ligado à Teologia da Libertação. Como se sabe, Sobrino foi assessor de dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980. Teria Bento XVI escolhido o alvo a dedo?
Não causa estranheza alguma esta notificação. O desafio do Conselho Episcopal Latinoamerino (Celam), no encontro do mês de maio, em Aparecida, será duplo: ao mesmo tempo não subestimar o problema social na América Latina, mas também relembrar aos bispos que a salvação passa por Cristo e pela reforma interior. Nem tudo depende da transformação sócio-política do mundo.
Isso não vai abalar o encontro do Celam e irritar o clero daqui?
Bento XVI vem canonizar em solo brasileiro. Ao mesmo tempo que faz o primeiro santo no País, sinaliza à Igreja: “Vou continuar dizendo que a Teologia da Libertação acabou. Ela não vai formar ninguém, vocês vão ter que abandonar esse negócio”. Claro, haverá a indignação dos bispos, como haverá silêncio de outra parte. Depois, tudo se acalma e o mundo segue em frente. Ele age no plano simbólico. Com o gesto em relação ao Sobrino, com a exortação apostólica, com a vinda ao Brasil, enfim, com tudo isso, Bento XVI está dizendo “você, deputado católico, honre o sentido de ser católico”. Ou: “Casamento homossexual, não me venha com essa história.” “Parada gay? Desencane.” Ou então: “Jesus Cristo não é Che Guevara.”
Ele investe contra a Teologia da Libertação num momento em que, pelo menos no Brasil, seus melhores defensores saíram de cena: dom Helder Câmara e dom Ivo Lorscheiter, que morreram, dom Pedro Casaldáliga e dom Paulo Evaristo Arns, mais idosos e menos ativos....
De fato, os expoentes saíram de cena. E não se fez uma geração brilhante. O problema atual é de outra ordem: não existe, no Brasil, nenhum canal de interlocução entre Igreja e Bento XVI. Não há no mundo teológico brasileiro um interlocutor para encarar este papa. As melhores cabeças continuam sendo formadas na Teologia da Libertação, ou seja, nosso clero ainda vive sob o impacto de uma visão sócio-analítica do mundo. Logo, o Bento XVI não tem com quem conversar... É preciso conhecer muito da obra de Von Baltazar (teólogo suíço alemão morto em 1988) ou de Henri de Lubac (teólogo francês), decisivos na formação do Bento XVI, mas quase desconhecidos por grande parte da formação teológica brasileira. Logo, falta recurso para entender de onde veio o pensamento deste papa. É raso dizer que ele é um conservador.
O filósofo italiano Gianni Vattimo diz que a pós-modernidade trouxe consigo o pessimismo e que a religião pode ajudar as pessoas a resistirem aos tempos tristes. Nesse sentido, as idéias do Bento XVI ganham ressonância?
Podemos pensar como Pascal, apostar que Deus não existe. Mas, se Ele existir e a gente não tiver feito nada do que Ele queria, vamos encarar uma eternidade de problemas. Contudo, independentemente das nossas apostas, talvez Deus exista. No fundo, é essa a variável que paira o tempo inteiro sobre nossas cabeças. Deus é uma variável sem controle epistemológico. A única teoria que ousa enfrentar isso é o darwinismo, mas não explica como surgiu a matéria que acabou depois evoluindo. Dito isso, chegamos ao seguinte ponto: o ser humano está em constante pânico com relação ao sentido da vida. Não sabe de onde veio, nem para onde vai. A gente está morrendo aos poucos, a gente vai se frustrando, e no final, vamos virar pó. Eis o problema. Você pode ser marxista, capitalista, moderno, antigo, heterossexual, homossexual, corintiano, não faz diferença, é um problema. É claro que, com bons médicos, hospitais e postos de saúde, poderemos viver mais. Mas isso não resolve, porque o ser humano é um animal cuja consciência determina o próprio sofrimento. E aqui entra o Vattimo: a religião parece ser o sistema de sentido mais poderoso que já existiu na face da Terra. E não é à toa que muitas pessoas religiosas encontram maior sentido na vida. A religião é um perigo? A espécie humana, esta sim, é perigosa. Nós, que nos adaptamos a tudo, que resistimos aos piores, aos mais agressivos, aos mais devoradores, nós que hoje integramos a espécie, somos perigosos. Não somos carneirinhos.
O Vaticano reconhece Estados laicos. Quando Bento XVI vem com uma exortação apostólica na qual fala do segundo casamento como uma praga entre os católicos, pode desnortear muita gente. Afinal, no Estado laico, o casamento é um contrato civil e tem suas regras.
Para o papa, o casamento é um objeto de Deus, não do Estado. É um sacramento.
Mas o Estado existe, as leis existem.
O próprio Bento XVI repisou em um dos seus livros que “o reino de Deus não é desse mundo”, como diz Jesus no Evangelho. O Estado rege o tempo, a conduta dos cidadãos, os contratos, controla a violência, organiza o trânsito, mas, do ponto de vista da doutrina católica, o Estado não tem o direito de legislar sobre os valores da família. Não tem o direito de estabelecer que o seu filho pegue camisinhas no banheiro da escola para transar com segurança.
Quando um governo distribui camisinhas para evitar a aids e quando se dispõe a incentivar o planejamento familiar...
...do ponto de vista da Igreja Católica, está agindo fora do seu território. Essa é a resposta que o Bento XVI provavelmente daria. A solução não é usar o preservativo, mas evitar a promiscuidade.
Promiscuidade, segundo a Igreja, seria qualquer forma de sexo que não tenha a finalidade da procriação. É isso?
Não. A doutrina fala que o sexo deve ser feito num horizonte onde a procriação não é a priori excluída. Outra coisa é dizer que o sexo só pode ser feito quando a procriação é possível. Então, os jovens transam o tempo inteiro com camisinha, fazem sexo com o sentido de não procriar. Isso é errado do ponto de vista da igreja... Por isso aborto é crime e não há negociação possível.
O fim das utopias pode promover o retorno às religiões?
Sim. Bento XVI entende que a experiência religiosa deve dialogar com a razão. A razão, sozinha, se degenera em ceticismo e niilismo. Talvez isso seja o grande beco sem saída das utopias: a crença de que a razão, apenas ela, não consegue administrar a vida. Talvez uma das grandes coisas que a gente terá de enfrentar nos próximos anos seja a percepção de que o Estado moderno, em si, é uma utopia. Bento XVI acha que a razão, sem a angústia religiosa, acaba se transformando em algo risível, banal, niilista. E que o ser humano sempre foi um bicho que caminha pelo chão e pelo céu.
|