* Daniel Serrão é médico patologista, catedrático da Universidade do Porto (Portugal), membro do Comitê Diretor de Bioética do Conselho da Europa e da Pontifícia Academia para a Vida.
Ainda que para entender o significado da eutanásia seja preciso reconhecer a importância de uma doutrina intelectualmente elaborada, de contornos traçados com rigor científico, faz-se necessário também que os estudiosos sobre o assunto sejam capazes de sair do plano de reflexão abstrata sobre o tema para tentar uma maior aproximação do cotidiano e da realidade vivida.
Para bem analisar a eutanásia, de maneira pragmática, por meio da convivência direta com portadores de doenças incurávei e moribundos, será preciso considerar três princípios: o pedido de eutanásia, o acolhimento desse pedido e a decisão sobre o pedido. Em outras palavras, “quem pede para morrer” e “quem decide se mata”.
Quem pede para morrer
Da análise do cotidiano vêm à tona três explicações ou justificativas para o pedido de eutanásia. A primeira é a dor física, neurológica. A segunda é o sofrimento, que impede que o campo de consciência do paciente consiga enxergar algo de positivo ao seu redor. A terceira é o esgotamento do projeto de vida pessoal, quando o indivíduo está convencido de sua inutilidade como ser humano, acreditando que a morte seja a única saída.
O pedido de eutanásia pode ser feito a um familiar, a um médico ou mesmo a outro profissional da área de saúde. Como acolhê-lo?
Se quem recebe o pedido é um médico, e a justificativa é a dor física ou neurológica, a providência imediata desse profissional é aliviar a dor do paciente. Este é um primeiro ponto importante: sendo que hoje, sem dúvida, qualquer tipo de dor física pode ser sanado, vemos que a dor não pode ser justificativa para a morte do doente.
O sofrimento, por sua vez, muitas vezes se constrói sobre a própria dor física e, por ser uma elaboração do homem num momento de fragilização de sua vida, mas de perfeita consciência, não pode ser tratado com morfina. Para encontrar a solução da dor causada pelo sofrimento, é condição indispensável ter acesso ao espaço do “outro”: aproximar-se da intimidade do enfermo, conhecer sua história de vida. Esse locus é íntimo, profundo: para entender a razão da angústia do paciente, é preciso criar empatia com quem sofre, relacionar-se com sua dor, criar laços de confiança e carinho. Tal conduta afasta a hipótese da eutanásia.
Uma das áreas em destaque hoje na medicina é justamente a dos tratamentos paliativos. Trata-se de uma especialidade médica em muitos países, como é o caso da Inglaterra, onde existe há mais de dez anos. E não é exercida apenas por médicos, mas também por assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros. Muitos pacientes sofrem porque não conseguem resolver problemas em sua vida: nesses casos, o contato humano entre quem dá a assistência e quem a recebe é salutar.
A terceira justificativa para o pedido de eutanásia é a mais complicada, dada pela falta de vontade de viver de pacientes não considerados em estado terminal. Nessas situações, o tratamento paliativo é muito eficaz, pois resgata a auto-estima do doente, fazendo-o compreender que a vida não depende somente do funcionamento perfeito dos órgãos do corpo. O resgate do projeto de vida está calcado na aproximação do indivíduo com a sua própria morte.
Pesquisas produzidas por variados autores em 1979 comprovaram com rigor científico o poder da mente humana na recuperação da saúde, denominando essa capacidade inerente ao ser humano de “estado salutogênico”. Quando o paciente gosta de viver e continua capaz de fazer projetos de vida, mesmo consciente da doença que tem e de sua gravidade, a mente exerce sua ação de “gerar saúde”.
Existe ainda outro tipo de força, a da fé em Deus, na transcendência, na existência de um mistério além daquilo que o homem vê e vive. Essa força contribui muito com o funcionamento do estado salutogênico.
Pesquisadores vêm procurando descobrir quais são as ondas cerebrais responsáveis pelo estado de bem-estar. Mas já se sabe que o bom humor e o amor contribuem inegavelmente para o avanço da reconstrução pessoal do paciente.
Há médicos que simplesmente acolhem a vontade do paciente de morrer, sem analisar criteriosamente essa solicitação. Argumentam estar respeitando a autonomia do outro, peça fundamental nas relações humanas. No entanto, há limites no que se entende por autonomia, tanto por parte do paciente – que exerce seu pedido de morrer –, quanto por parte do médico – aquele que decide se mata ou não.
Quem decide se mata. O caso holandês
Nas décadas de 1940 e 1950, na Holanda, os médicos praticavam a eutanásia na maioria das vezes independentemente da doença do paciente e sem nenhum critério sobre a autonomia do pedido. Como o ato não era oculto, registrava-se o crime numa delegacia da região; o médico era intimado, apresentava-se ao juiz e confessava o ato criminoso, justificando-o como gesto em favor do bem-estar social. O juiz aplicava no máximo uma pena de suspensão ou decretava a absolvição do médico.
Os juristas holandeses, incomodados com a situação, decidiram elaborar uma lei que regulasse esse comportamento, de modo a que a eutanásia passasse a ser considerada homicídio qualificado. Mas para que fosse considerada homicídio, era preciso cumprir sete critérios constantes na legislação.
Os médicos responderiam a um processo, que seria mantido por quatro anos, ao final dos quais, se não houvesse decisão ou alteração de informações, o caso seria encerrado. Desde a entrada em vigor da lei, foram julgados 4 ou 5 médicos por ano.
Números oficiais do governo holandês referentes ao ano de 1995 falam de 9.700 pedidos de eutanásia. Segundo os dados oficiais, nesse ano foram praticadas 3.600 mortes, além de 230 homicídios assistidos, nos quais o paciente ingere uma substância indicada pelo médico fora do leito hospitalar. Esses números não foram integralmente informados à polícia ou ao poder judiciário – que registrou apenas 1.466 pedidos de eutanásia –, tampouco foram comunicados à ordem dos médicos. Se fossem comunicados à ordem, cada médico responsável por eutanásia assinaria uma ficha em que se caracterizaria como “matador de serviço”, motivo pelo qual os fatos reais não vêm sendo registrados. Dados do Ministério da Justiça indicam 913 casos de eutanásia em que o doente não pediu ao médico para morrer. Na prática, 913 assassinatos.
Na disputa entre juristas e médicos, durante a primeira fase da lei, os juristas ganharam a causa. Entre 1955 e 1957, os médicos, insatisfeitos, desenvolveram um movimento dentro da classe médica que defendia a idéia de que se a eutanásia era decidida pelo médico não era um crime, mas uma decisão da área médica. Sua proposta foi encaminhada ao Parlamento e aprovada em 1º de abril de 1957.
Atualmente, na Holanda, a lei considera que a eutanásia não é mais que mera decisão de boa prática médica. A eutanásia é o melhor tratamento que o médico pode receitar a pacientes que não querem mais viver. O melhor remédio é matar o doente. A eutanásia tem o mesmo significado de retirar um estômago ou amputar uma perna.
Os médicos holandeses, assim, são apoiados por uma lei que os torna senhores da vida e da morte.
A Europa se pronuncia
A primeira lei holandesa não perturbou o Conselho da Europa. A jurisprudência européia nessa área é exercida a partir da Convenção Européia, que salvaguarda os direitos do homem, e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O artigo 2º da Convenção Européia diz que não é permitido, nem proibido, que um indivíduo tire a vida de outro intencionalmente.
A segunda lei holandesa afirma que um médico pode matar sem que o ato seja um crime de homicídio, indo de encontro ao artigo 2º da Convenção Européia. Essa polêmica gerou um documento encaminhado ao Parlamento Europeu, questionando o Comitê Diretor, órgão da direção do Conselho da Europa, sobre a posição da lei holandesa. A Holanda ofendia o artigo 2º, mas subscrevia a Convenção. Desse modo, ou deixava de subscrevê-la ou mudava-se a lei. Para decidir o impasse, criaram-se dois comitês permanentes, um de Direitos Humanos e outro de Bioética.
O Comitê de Direitos Humanos aprovou um parecer afirmando que a Holanda feria o artigo 2º, mas que, não havendo jurisprudência do tribunal europeu nem tampouco qualquer caso concreto afirmando algum crime contra o mesmo artigo, não havia situação a ser punida pelo tribunal.
Já o Comitê de Bioética optou por realizar um inquérito para esclarecer a situação dos países europeus. Após dois anos, a resposta confirmou que havia jurisprudência no tribunal europeu dos direitos do homem.
A eutanásia não só é moralmente condenável, como juridicamente inaceitável, segundo a conclusão do Comitê de Bioética. Não há suporte jurídico para que se possa dizer que a eutanásia é um direito da pessoa. O homem não tem o direto de morrer e sim obrigação de morrer.
Enquanto o homem não aceitar sua própria morte, entendendo os mecanismos complexos que o levam até ela, compreendendo que, matando o outro, nega sua própria morte, sempre haverá a eutanásia.
|