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A morte revisitada
Ada Pellegrini Lemos
 

Ada Pellegrini Lemos é doutora em Serviço Social, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP e terapeuta de casais e família.

Em de maio de 2001, um homem de 93 anos deu entrada num conceituado hospital da capital paulista, nas condições previstas por seu seguro-saúde, pago desde os 66 anos de idade. O diagnóstico acusava dificuldades pulmonares e respiratórias graves. Após 14 dias de internação, uma assistente social do hospital chamou uma das filhas desse idoso e informou que seria necessário remover o paciente. Embora a infecção não estivesse debelada, apresentava características de uma doença crônica, o que tornava o tempo de internação imprevisível. A “remoção seria inapelável”, de acordo com as normas do hospital. A filha se recusou a atender a solicitação e foi procurar a médica responsável pelo caso. A necessidade da remoção foi confirmada. A filha argumentou que o seguro facultava o seu pai 60 dias de internação, e haviam transcorrido apenas 14. A médica afirmou: “A senhora precisa levar em conta que seu pai tem 93 anos e que o hospital deve estar disponível para atender a um jovem de 15, com toda uma vida para ser vivida”. Indignada, a filha do idoso respondeu que não acataria a remoção e tomaria providências, inclusive divulgaria o episódio pela imprensa, acusando o famoso hospital por essa arbitrariedade. Também denunciou o fato ao Secretário da Saúde, amigo da família, e pediu sua interferência junto à direção do estabelecimento. Diante das pressões, o hospital voltou atrás e o paciente continuou internado. No sexagésimo quarto dia de hospitalização, os médicos informaram à família que, “face à estabilidade do quadro clínico e ausência de febre”, a alta médica se impunha. Os familiares cederam e o idoso foi removido para sua residência, numa pequena cidade do litoral, a duas horas e meia da capital. Apesar do transporte especializado, esse senhor chegou a sua casa em mau estado e veio a falecer depois de dois dias.

Há várias formas de analisar essa experiência. Aqui, vamos nos deter às atitudes da sociedade contemporânea perante a morte, escondida, espantosa e paradoxalmente, na performance da instituição e dos profissionais da área da saúde.

Sem exageros, podemos dizer que a medicina hoje instrumenta seus profissionais a maquiar, manipular e aparentar controle sobre a morte. São construídas situações em que o destino último do ser humano depende única e exclusivamente do saber arrogante do homem. O paciente acima viveu, ou melhor, esteve vivo, enquanto os cuidados médicos foram de uma certa natureza... Podemos dizer que o estado do idoso resultou de uma calibragem bem conduzida, que não levava em conta as verdadeiras condições, para sermos mais exatos, de seu momento pré-comatoso.

Essas atitudes de quase negação da inevitabilidade da morte, da impotência do ser humano perante ela, evidenciam-se de várias formas. Na área médica, por exemplo, há pessoas internadas há anos – tivemos a oportunidade de conhecer uma delas, hospitalizada há 9 anos – perdendo-se na linha divisória entre a vida e a morte.

No campo da Política e Economia, assistimos “ao vivo” pela TV a transmissão de ataques e bombardeios ferozes, e é como se não houvesse ameaça de morte e perda. Não... é quase um vídeo game. Não estão acontecendo perdas irreparáveis, não há famílias e crianças vivendo pesadelos de sofrimento e dor, provavelmente de conseqüências e danos definitivos. Não! É apenas uma vitória necessária para certos interesses.

Nas questões que envolvem a segurança social, beira-se a perplexidade: “Morreu porque foi atingido por uma bala perdida, ou baleado” na guerra urbana, que não termina e se tornou um fenômeno freqüente no cotidiano.

Na intimidade da vida social, tão difícil de ser preservada hoje em dia, há também uma tendência a minimizar a morte, o luto e principalmente a dor e o sofrimento. Esse fenômeno é claramente observado nos velórios de São Paulo: às 23h eles são fechados e os familiares devem se retirar, ou aceitar ficar presos em seu interior por motivo de segurança.

E, assim, o fato público penetra profundamente no privado, impedindo ao indivíduo que faça a experiência de momentos ritualísticos fundamentais da vida humana, necessários e existentes em qualquer universo cultural.

Recentemente ocorreu um fato bastante significativo. Faleceu um senhor que estava havia 9 meses internado numa UTI. Seu filho providenciou seu rápido envio ao Crematório da Vila Alpina, em São Paulo. O velório se encerrou em breve cerimônia e logo tudo estava terminado. Como podemos perceber, dimensões fundamentais não são vividas: quem foi esse homem? Com quem estava relacionado? Como e o que era significativamente ligado à presença dele? O que se fez com sua história de vida?

Não estamos tratando de quantidades quando pensamos a respeito de episódios dessa natureza. Mas de estarmos revestidos na contemporaneidade por um contexto que permite e estimula esses fatos a surgirem e se revelarem.

Gregory Bateson, um biólogo-pensador inglês do século XX, afirmava que o confronto denuncia e desvela as partes que o constróem e assim coopera na elucidação dos fenômenos e, portanto, na construção de um corpo de conhecimento. A partir de tais reflexões, talvez possamos perguntar: essas atitudes mentais face à morte não denunciariam o valor, a maneira, a essência com a qual estamos definindo e conduzindo a vida?

Maria Rita Kehl, psicanalista e ensaísta da Folha de S. Paulo, cita, em texto datado de 26 de janeiro de 2003, a obra de Andrew Solomon O Demônio do Meio-Dia, resultado de 5 anos de pesquisa sobre a depressão: causas e efeitos, tratamentos, hipóteses bioquímicas e estatísticas. Os dados apresentados são bastante significativos. Cerca de 3% da população norte-americana sofre de depressão crônica, o equivalente a 19 milhões de pessoas, das quais 2 milhões são crianças. A depressão é a principal causa da incapacitação em pessoas com idade acima de 5 anos. Do total de deprimidos, 15% cometerão suicídio. As taxas de suicídios entre jovens e crianças de 10 a 14 anos aumentaram 120% entre 1980 e 1990. Em 1995, o numero de jovens norte-americanos que deram cabo da própria vida ultrapassou a soma de mortes por câncer, AIDS, pneumonia, derrame, doenças congênitas e distúrbios cardíacos.

Esses números impressionantes são representativos e elucidam a qualidade de nossas vidas neste século que se inicia, convidando-nos a um desafio de conteúdo bastante profundo: onde e como devemos levantar recursos para uma re-significação da vida humana?

 
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