De tempos em tempos a questão do aborto volta à cena pública no Brasil, aparentemente cada vez com maior força para os seus defensores. Para esses abortistas, essa força cada vez maior é um sinal da veracidade de sua posição (sim, da veracidade, pois nesses tempos relativistas ainda se usa a verdade como justificativa - porém uma verdade que é definida pela maioria, isso é, por quem tem a hegemonia). Na verdade, o aumento do apoio ao aborto é sinal do crescimento, em nossa sociedade, de uma antropologia - uma visão de homem - que cada vez menos acolhe a pessoa humana em sua totalidade e na fragilidade inerente a ela.
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O que significa o aborto para as pessoas diretamente envolvidas (a própria criança que vai nascer, sua mãe e, nem sempre, seu pai)? Significa que essa criança só será aceita se estiverem dadas certas condições inerentes a ela (ser sadia, por exemplo) ou ao meio no qual se encontra (a mãe tiver condições sócio-econômicas evidentes para recebê-la, por exemplo). Nesse caso, aceitação não é equivalente a acolhimento: a acolhida se dá num contexto dominado pela gratuidade, onde o outro não deve ser, nem demonstrar nada, onde sua existência tem um valor superior a qualquer condição material.
No mundo do aborto, a aceitação de qualquer criança deixa de ser uma acolhida: mesmo aqueles que nascem, puderam fazê-lo porque “passaram no teste de viabilidade” da família que os aceita. Se sua primeira aceitação implicou nesse primeiro teste, todos os dias eles terão que passar por esse teste, pois cada um de nós aceita e é aceito pelo outro todos os dias – a aceitação é um acontecimento que se repete a cada dia, a cada novo embate com a realidade. A antropologia e a cultura dos quais nasce o aborto caracterizam-se pela não-gratuidade, pela necessidade permanente de cada um de nós estarmos correspondendo a alguma coisa para podermos sobreviver e gozarmos minimamente do ungüento do carinho de nosso próximo.
Por tudo isso, a questão do aborto não é um problema individual da gestante, ou quando muito um problema compartilhado entre ela e o seu filho. É um problema de toda a sociedade, porque todos nós, quando nos posicionamos em relação a uma lei referente ao aborto, estamos nos posicionando em relação a cada pessoa com a qual nos deparamos na vida.
Aborto e violência
Em um trabalho sobre a violência urbana, suas causas e formas de enfrentá-la, realizado pelo Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, ficou patente que a causa última dessa violência pode ser entendida como a dificuldade da sociedade urbana em acolher a pessoa, particularmente a pessoa pobre. Não se sentindo acolhida, essa pessoa reage com violência para com os demais. Essa acolhida, nesse caso específico, se materializa em condições dignas para sobreviver e se desenvolver como pessoa. Porém, dentro de uma sociedade que abriga objetivamente estruturas injustas, é a posição cultural de acolhida, de abertura gratuita ao outro, que cria os espaços capazes de uma transformação efetiva da sociedade.
A primeira violência contra uma pessoa é fazer com que ela tenha que passar por um teste para ganhar o direito à vida antes mesmo de nascer. E essa violência se perpetuará ao longo de sua vida, pois ela será educada e olhará aos demais nessa perspectiva. Talvez nem todos perderão o direito de viver só porque não passam em seu teste particular de adequação, mas todos – inclusive ele próprio – dependerão de um teste assim para se perceberem amados.
Só uma cultura da acolhida, que valoriza a cada um por aquilo que ele é, que percebe que acolher o outro é a maior exaltação que podemos fazer a nós mesmos, é capaz de vencer a violência. Sem isso, vivemos uma realidade paradoxal: cada vez mais a psicologia e o desenvolvimento das instituições democráticas nos dão condições de compreender e superar os distúrbios individuais e as situações de injustiça, mas – ao mesmo tempo – cada vez mais criaremos uma sociedade de violência e desamor para com cada um de nós.
Um olhar sobre a mãe
No contexto atual, a luta contra essa cultura de violência passa sem dúvida por questões jurídico-legais. É importante perceber que uma cultura que não se materializa em leis é uma cultura que pouco incide na sociedade contemporânea. Porém, essa dimensão, por si só, não é suficiente para responder a todo o problema. Não basta dizer “o aborto não é legal” e deixar aquelas mulheres que optariam por um aborto legal jogadas à própria sorte.
A resposta verdadeira – isso é, que corresponde ao desejo mais profundo do nosso coração – ao problema da gravidez indesejada ou aparentemente inviável não é o aborto, mas sim a acolhida à mãe e a seu filho que está para nascer. Realmente, como dizem os próprios defensores do aborto, ele não é uma coisa boa e aparece sempre como a última saída. Mas é uma última saída falsa. A última saída (porque mais radical) e ao mesmo tempo a primeira (porque é aquela que no fundo todos desejam) é a acolhida da mãe por uma companhia viva e operativa no mundo.
Sozinha, mãe alguma poderia enfrentar todos os desafios implicados na educação de um novo ser humano. Quanto maiores as dificuldades enfrentadas, maior a necessidade de uma companhia e de que também aqueles que acompanham essa mãe sejam acompanhados. Assim, cada pessoa se torna o centro de uma grande rede de solidariedade (a palavra cristã, mais forte e radical, seria caridade, isso é, amor gratuito). Essa rede de solidariedade é a resposta cristã às dificuldades concretas que levam ao aborto. Cristã? Mas e os não-cristãos? Essa rede de solidariedade é a proposta de humanidade verdadeira, de caminho para a própria felicidade, que os cristãos lançam para todos os homens. É o fator que viabiliza uma cultura da acolhida, uma sociedade capaz de enfrentar a violência e dar um sentido adequado à vida de cada ser humano.
Esse é o sentido mais amplo das “Famílias para a Acolhida”, aquilo que faz dela umas das mais belas e comoventes “pontas de lança” da batalha por um mundo mais humano que o carisma de Dom Giussani gerou entre nós.
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