Dalton Luiz de Paula Ramos é professor associado de Bioética da Universidade de São Paulo, membro da equipe de assessores de bioética de CNBB e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa/CNS/MS, membro correspondente da Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano, coordenador do Projeto Ciências da Vida do Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP
O fato de que a vida começa com a fecundação é uma certeza para a Biologia. No encontro do óvulo com o espermatozóide, se inicia uma nova vida, um novo programa de desenvolvimento. A escolha de outra data para o início da vida é arbitrária e sem sentido biológico.
Alguns argumentam que o embrião não é um ser humano antes de 5 a 7 dias, quando então se ligaria ao útero da mãe (nidação) e que sua morte não seria um aborto, já que ainda não houve ligação ao organismo materno. Mas a nidação é apenas um processo através do qual o embrião passará a receber alimento da mãe.
Nos primeiros dias, enquanto o embrião ainda não se implantou no útero materno, se alimenta daquilo que encontra no óvulo que foi fecundado, enquanto já passa por processos de desenvolvimento que lhe deixarão apto a realizar a nidação, ou seja, o embrião já está ativo. No momento posterior, se implanta para ser alimentado pelo corpo da mulher.
Assim, desde os primeiros momentos esse embrião já é tem uma identidade própria e já está ativo e se desenvolvendo. Não é uma massa de carne amorfa no corpo da mãe, nem é um outro animal qualquer. O que ele pode ser? Apenas um ser humano, já distinto, apenas ainda em formação.
Outros dizem que se o embrião implantado ainda pode se dividir em dois, então não temos certeza da sua identidade. Mas o momento da cisão, no caso de gêmeos, não deve modificar a identidade ontológica do ser humano. Há um indivíduo que dá origem a um outro indivíduo, sendo que ambos continuam sua existência do início: para o primeiro iniciada com a fecundação, para o outro qualquer dia depois, até o final de seu processo vital. Então temos o dobro das razões para defendê-los porque são dois embriões.
Outra afirmação sustenta que até os 15 dias ainda não se formaram os sinais daquilo que vai ser o cérebro. Mas sabemos que o cérebro se desenvolve não por ação da mãe, mas através dos genes que estão dentro do embrião desde o primeiro momento da fecundação. É possível garantir que ele não sente dor? E, se não sentir, isto justificaria matá-lo?
É possível identificar os movimentos do coração do embrião na primeira semana de atraso menstrual. Com vinte dias de existência já tem o sistema nervoso delineado. Na idade gestacional de sete semanas, ou seja, com o atraso de três semanas da primeira menstruação, já é possível gravar um eletrocardiograma e o embrião já tem movimentos e gesticulação espontâneos. Com nove semanas, embora pese três gramas, o embrião já pode ter o seu eletro encefalograma registrado.
Há, ainda, quem diga que dada a grande incidência de abortos espontâneos nas duas primeiras semanas da gravidez não haveria que se falar em vida neste período! Ora, a interrupção desta vida, isto é, um episódio de morte quer seja ele prematuro ou tardio não descaracteriza o fato que esta vida ocorreu. Seria o mesmo que dizer que não somos pessoas humanas porque um dia iremos morrer! Fatalidades ocorrem diariamente na vida das pessoas, seja nas nossas vidas, seja na vida intra-uterina. Essas fatalidades podem acabar em desventuras passageiras e remediáveis ou, ainda, irremediáveis, como a morte para todos nós e o aborto para a o feto. Isso jamais poderia nos desprover da condição de seres vivos e humanos.
Em todos esses argumentos existe uma discussão não a respeito da distinção da existência do embrião como um ser vivo distinto, pois a distinção entre a identidade materna e a identidade do embrião é universal no mundo biológico. O que se discute, ainda que implicitamente, é se essa vida é “humana”, isso é compartilha de todos os atributos de um indivíduo humano já independente.
O primeiro grupo de argumentos se baseia no pressuposto que essa identidade só seria “humana” a partir do momento em que se mostrasse claramente viável, por estar implantado no útero, por ter menores chances de morrer, por não poder mais se dividir em dois indivíduos, etc. O segundo grupo de argumentos (o desenvolvimento neurológico), já caracteriza a “humanidade” a partir de sua potência. É humano quem pode fazer alguma coisa.
Inicialmente, deve-se notar que esses dois tipos de argumento fogem totalmente da questão biológica. Se perguntarmos para um analista forense se um material biológico (ossos, restos de sangue ou outros tecidos) é “humano”, ele utilizará, para dar sua resposta, evidências de natureza bioquímica ou anatômica, decorrentes de um patrimônio genético reconhecido como “humano”. Assim, a “humanidade” – biologicamente constituída – é genética e não depende da viabilidade ou potência do organismo.
A questão que temos pela frente é, portanto, de índole ética e social. Devemos (ou queremos) reconhecer a “humanidade” em um ser que não tenha sua viabilidade e sua potência garantidas?
É preciso saber por qual motivo, ao longo de nossa história, passou-se a reconhecer o atributo de “humanidade” desde a fecundação, independentemente da viabilidade e da potência que aquele ser viria a demonstrar. Veremos que o problema está na garantia da universalidade da norma.
Em sociedades tribais e mesmo entre os povos que estão na origem da civilização ocidental, existe freqüentemente a dupla permissão para o aborto e o infanticídio. Essa dupla permissão é uma decorrência óbvia do princípio da continuidade da vida. O nascimento, ainda que se trate do evento por excelência de uma vida, não rompe o processo contínuo da vida. Assim, se era permitido abortar em determinadas condições, também é permitido praticar o infanticídio dos recém-nascidos nessas mesmas condições.
Essa, contudo, era a mesma lógica que legitimava a escravidão, a discriminação sexual e racial, a exclusão política dos pobres, etc. A pessoa só era dotada de direitos quando satisfazia certas condições.
A universalização do conceito de pessoa, o reconhecimento dos direitos humanos de todos, implica que não existam limites ou condições para que alguém seja pessoa. Isso vale tanto para os nascidos quanto para os ainda não-nascidos.
Por tudo isso, a sociedade até poderá assumir um critério de “humanidade” que se baseie na potencia e viabilidade do organismo, porém não poderá negar que essa opção (1) contraria o dado biológico, que caracteriza o “humano” por seus atributos genéticos e por sua expressão orgânica; (2) traz o perigo do casuísmo e da própria negação da dignidade da pessoa e da universalidade dos direitos humanos.
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