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Educar a razão: educar o homem todo

Marli Pirozelli Navalho Silva

 

* Marli Pirozelli N. Silva é professora do Departamento de Ciências Sociais na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e membro do Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP. Esta conferência foi proferida no Simpósio Nacional sobre Educação, promovido pela Associação Nacional para o Ensino Social Cristão (ANESC) e co-patrocinado pelo Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP.

A preocupação em educar a razão, ao contrário do que possa parecer numa aproximação inicial, não constitui um fechamento ou a reafirmação de uma tradição intelectualista totalmente oposta à exigência atual de uma formação integral, mas diz respeito ao cerne de qualquer proposta educativa.
Por que, afinal, insistir na educação da razão?

Quem é o homem? A razão em questão

Ao procurarmos a resposta para essas questões passamos a nos movimentar num terreno instável, composto por respostas superficiais, afirmações subjetivas ou doutrinárias que não resistem a uma reflexão cuidadosa sobre a experiência pessoal e nos remetem ao domínio da incerteza.

Parece que nada possa ser afirmado sobre essa questão, que é a única realmente decisiva para o homem. O homem não sabe quem é, não sabe para onde vai, qual é o sentido dos pequenos e grandes fatos que se sucedem em sua existência e, mais grave ainda, afasta estas questões de seu horizonte no cotidiano, tornando-se uma pálida imagem daquilo que está chamado a ser. Inconsistência, incapacidade de criação e de assumir responsabilidades são alguns dos sintomas do obscurecimento da consciência do homem atual. Como afirma Hanna Arendt, “a redução do homem a um feixe de reações o separa, com a mesma radicalidade de uma doença mental, de tudo o que nele é personalidade” (Origens do Totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989).

Esta constatação, longe de diminuir nossa crença no valor do homem, impele-nos a trabalhar de modo mais determinado, compreendendo o contexto cultural em que estamos mergulhados, nossos limites e potencialidades.

O que é, então, próprio da natureza humana?

De acordo com Tomás de Aquino, “o ser do homem propriamente consiste em ser de acordo com a razão. E assim, manter-se alguém em seu ser é manter-se naquilo que condiz com a razão”. Em outra sentença, Tomás afirma que “o primeiro princípio de todas as ações humanas é a razão, e quaisquer outros princípios que se encontrem para as ações humanas obedecem, de algum modo, à razão” (apud L. J. Lauand. Razão, Natureza e Graça – Tomás de Aquino em Sentenças. São Paulo, Edix-FFLCH/USP, 1995, p. 47).

Essa afirmação não parte de uma abordagem teórica, mas do reconhecimento de que o homem é o nível em que a natureza toma consciência de si mesma. Por que vale a pena viver? Qual é o sentido da vida? Por que existem a dor e a morte? Qual é a razão do sofrimento humano? Essas perguntas revelam o dinamismo da razão em busca da verdade, da compreensão do sentido da existência e de toda a realidade.

São perguntas perenes e fundamentais, expressas ao longo dos tempos pelos gênios da literatura e da arte. São perguntas inextirpáveis, pois constituem o próprio tecido da nossa consciência. Ainda que estejam obscurecidas pela vida social, essas perguntas não podem ser eliminadas, pois estão enraizadas no nosso ser e repropõem continuamente a pergunta última que define o homem como tal. Elas “exprimem a urgência de encontrar um porquê da existência, de todos os seus instantes, tanto das suas etapas salientes e decisivas como de seus momentos mais comuns. Em tais perguntas, é testemunhada a razão profunda da existência humana, pois nelas a vontade a inteligência e a vontade do homem são solicitadas a procurar livremente a solução capaz de oferecer um sentido pleno à vida. Esses interrogativos, portanto, constituem a expressão mais elevada da natureza do homem; por conseguinte, a resposta a eles mede a profundidade do seu empenho na própria existência” (João Paulo II. Alocução da Audiência Geral de quarta-feira, 19 de outubro de 1983).

O desejo de compreender o sentido último da existência, que chamamos de senso religioso, manifesta-se através dessas inquietações, é a expressão da própria natureza da razão e está na raiz de todo movimento humano, identificando-se com a fonte, a energia que provoca, sustenta e redefine o movimento dos povos no decorrer da história. O homem é homem porque não cessa de interrogar-se sobre o sentido do mundo e não apenas porque é capaz de agir sobre ele, ou moldá-lo de acordo com suas necessidades.

A presença do homem na natureza introduz um fator peculiar e único: a consciência e o afã de significado. O desenvolvimento das ciências naturais, da antropologia, da filosofia e de todo o universo do saber comprovam a exigência de sentido, a incansável busca de respostas dentro de um campo limitado da realidade.

A razão em busca de sua realização

O processo de secularização que teve início na Idade Moderna e atingiu o ápice no Iluminismo foi o grande responsável pela redução do conceito de razão que chegou até os nossos dias. A razão passou a ser concebida como medida do real, uma categoria limitada pela capacidade humana de demonstração empírica ou pela
lógica.

A razão, ao contrário, é um olhar aberto para a realidade e pode ser definida como a “capacidade de dar-se conta do real segundo a totalidade dos seus fatores”, é a abertura para acolher todas as possibilidades contidas na complexidade e multiplicidade do real (Cf. L. Giussani. O senso religioso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 31).

Quando é compreendida como exigência de significado, a razão recupera sua real dimensão e a categoria da possibilidade – tão cara à pesquisa científica – que havia sido suprimida na concepção anterior é reintroduzida.

O que busca então a razão? Nada menos que a realização total. Nada menos que o Infinito.

Mas há uma desproporção entre o horizonte último e a capacidade humana de atingi-lo. A vida é sede de um objeto que pode ser reconhecido pelo homem, mas permanece sempre além dele. Daí a facilidade em identificar o objeto último – a realização – com os aspectos parciais que podemos alcançar – as realizações (cf. L. J. Lauand. Ética).

Com efeito, depois da quebra da unidade operada pelo Iluminismo, o homem passou a aspirar ao sucesso e à realização de aspectos setoriais como trabalho, família, finanças, espiritualidade, saúde e outros, esquecendo-se de que o problema central da vida consiste em reconhecer um ideal que dê sentido a todos esses aspectos e colocar-se em caminho nessa direção.

Infelizmente, o homem atual renunciou à busca da realização de si mesmo em sua totalidade (nem mesmo cogita tal hipótese) e contenta-se em equilibrar com êxito o maior número de setores, entendendo que o máximo que se possa almejar é a realização simultânea dos vários setores de sua vida.

É sintomático que a espiritualidade hoje seja concebida como um dos setores a serem satisfeitos pelo homem, ou seja, uma entre tantas partes que compõem o homem. Até mesmo nesse campo o homem deve ser bem-sucedido, contando para isso com métodos específicos oferecidos por uma vasta literatura de auto-ajuda.

Desta forma, fixamos nosso olhar e dirigimos nossa energia na direção de objetos particulares, imediatos e palpáveis, calando a exigência profunda de realização total do humano inscrita em nossa razão, a qual busca expressar-se através da satisfação desses objetivos.

Indicações para a educação da razão

Não é difícil perceber as conseqüências do obscurecimento da razão. Conhecemos de perto a violência do poder, do terrorismo, da miséria e da injustiça, assim como todo o anseio e dedicação do homem para modificar estas circunstâncias.

O desenvolvimento da tecnologia e da pesquisa científica atestam o trabalho e a fenomenal capacidade humana de interrogar, descobrir a realidade das coisas, utilizar a herança recebida e transformá-la em benefício da vida, mas revelam também a desorientação quanto à finalidade última. Por vezes, a tecnologia e a ciência são alçadas à condição de causa última, trazendo conseqüências imprevisíveis para a humanidade, já que elas se tornam um fim em si mesmas e não admitem nenhuma orientação ética.

Daí decorre a importância de promover uma educação voltada para o uso pleno da razão, compreendida em seu sentido mais amplo, como abertura a todos os fatores da realidade. Isso pode se concretizar em todos os níveis do processo educativo, da infância até a idade adulta, por meio de propostas que estimulem a observação de si e da realidade.

É preciso estimular a tomada de consciência de si mesmo, não mediante reflexões que partam de uma imagem da própria pessoa, mas da observação de si mesmo em ação nas circunstâncias cotidianas. Além disso, é preciso afirmar uma hipótese explicativa unitária para a realidade.

Não se pode exigir decisão e maturidade se não afirmamos claramente uma proposta, uma forma de ver toda a realidade a partir de um ponto unitário, em oposição à concepção fragmentada da vida humana que predomina atualmente.

Cabe ao educador afirmar o valor pelo qual vive de maneira explícita, revelando as razões daquilo que lhe parece bom e verdadeiro, pois isso permite uma tomada de posição clara por parte do educando.

Educar é avivar o desejo que constitui a razão, para que ela reconheça em todas as circunstâncias os fatores originais do homem, levando em conta o senso religioso e sua inevitável busca de satisfação plena.
É também apontar a precariedade das soluções parciais.

Essa é a grande tarefa que temos, cujo resultado não está em nossas mãos, pois “reconhecer que somos feitos de inquietude e que em nosso coração pesa um desejo de infinito é uma maneira de afirmar a liberdade incondicional de nossa vida e a maior dignidade que o ser humano pode almejar” (J. Navarro. “Las preguntas perennes”. In: http://www.hottopos.com.br/notand7/ jorgenav.htm).


 
 
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