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Não precisamos de mais códigos

Marli Pirozelli N. Silva

 

Ética: em nenhuma outra época se usou tanto essa palavra como hoje, mas ela continua a ser muito pouco compreendida. Questionamos a respeito disso a professora Marli Pirozelli N. Silva, do Departamento
de Ciências Sociais na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI)

A palavra “ética” parece ter sofrido um desgaste de sentido. Ela se repete exaustivamente na mídia, mas não remete a um conceito preciso...

MARLI PIROZELLI N. SILVA: Nas últimas décadas, a palavra ética saiu do campo dos especialistas e passou a fazer parte do vocabulário comum, sendo objeto das conversas. Tornou-se freqüente a exigência por ética na política, na imprensa, no ambiente de trabalho, enfim, em todos os setores da vida social marcados pela injustiça ou pela impunidade. Até mesmo no campo econômico, a exigência de comportamentos éticos passou a ser significativa (vide os recentes escândalos financeiros) e a ética passou a ser também uma exigência do mercado global. Assim, procura-se estabelecer critérios para balizar as relações comerciais e as transações financeiras, formulam-se indicadores para avaliar o comportamento ético das empresas e códigos para seus funcionários.

Quando, porém, perguntamos a alguém sobre o significado da palavra ética, nos deparamos com um largo espectro de significados que cobre desde atitudes de boa educação e respeito até a prática da honestidade e da justiça.

A ética enquadra-se hoje na categoria que o filósofo espanhol Lopez Quintás classifica como das “palavras talismãs”, isto é, palavras que condensam em si expectativas e imagens de um bem a ser alcançado. São palavras que não têm um significado preciso, mas conferem prestígio a tudo o que está agregado a elas, dificultando a reflexão sobre seu conteúdo e tornando-se facilmente instrumentos de manipulação (quem as emprega pode estar assumindo um determinado aspecto desse conteúdo de acordo com sua conveniência).

De qualquer modo, a exigência por ética (ainda que não se defina exatamente o que isso signifique) é um fenômeno que possui dois aspectos que devem ser ressaltados: por um lado, expressa a insatisfação do homem moderno e seu empenho em reordenar as relações sociais a partir do resgate de valores como a justiça, a honestidade, a solidariedade e a integridade e, por outro lado, expressa a dificuldade do homem em emitir juízos ante os desafios cotidianos, revelando o esquecimento ou a inexistência de critérios morais que orientem o agir humano para além da reação imediata.

Quando falamos de ética não estamos nos referindo a normas exteriores ao homem impostas por uma autoridade com maior ou menor legitimidade, mas ao próprio ser do homem, isto é, ao que o homem é. Compreender isso é fundamental para enfrentarmos de forma adequada as questões do mundo atual, caso contrário corremos o risco de aceitar soluções falsas ou parciais.

A proliferação de normas e códigos éticos cobrindo todas as áreas da vida pública é um sinal disso. Essa deficiência não consegue ser suprida pela profusão de códigos ou pelo aumento da abrangência dos mesmos, pois a questão diz respeito ao ideal que o homem possui e para o qual se dirige.

É no campo da ética que se encontra a maior fragilidade de nossa cultura: atitudes que variam do total relativismo até a busca de normas que regulamentem com segurança os múltiplos aspectos da vida social demonstram a incerteza que se instaura quando entra em jogo o próprio homem, quando se questiona o sentido de seu agir.

Falar em ética significa, portanto, pôr em questão o sentido dos atos humanos, a existência de um ideal fascinante, capaz de mobilizar toda a energia humana em sua direção.

Nossa sociedade não precisa de mais códigos, pois já os temos em quantidade, mas de um processo educativo que enfatize a reflexão sobre a natureza do homem e forneça critérios capazes de responder às suas necessidades pessoais e sociais. É preciso, então, educar para a ética, o que não se resume a assimilar as normas vigentes, mas significa estabelecer continuamente o nexo entre cada ação, cada escolha particular e o fim, o ideal que nos atrai.


A busca da verdade foi substituída pela tentativa de estabelecer uma ética que englobe valores elementares. Um dos maiores teóricos da educação dos Estados Unidos, John Dewey, por exemplo, dizia que a única maneira de obter uma certa ordem e uma certa paz era buscar pontos de vista e afirmações que todos pudessem compreender com facilidade. Esse é o caminho?

MARLI PIROZELLI N. SILVA: Temos assistido atônitos a acontecimentos que nunca imaginamos serem possíveis, gerados no seio da intolerância. Isso tem reforçado a crença de que a melhor maneira de conseguirmos uma convivência humana no mínimo pacífica é operarmos sob um denominador comum, evitando ao máximo expor algo que nos diferencie do outro.

A afirmação de uma identidade precisa, porém, não significa a negação do outro; ao contrário, é a condição para a existência de um diálogo verdadeiro entre as pessoas e entre as comunidades humanas. Só dessa forma podemos chegar a uma convivência que não anula as diferenças e em última instância as identidades reais, como uma determinada tradição religiosa, mas parte do reconhecimento do outro naquilo que lhe dá consistência.

A democracia nasce como diálogo e colaboração entre entidades humanas que se estimam enquanto identidades precisas e se respeitam não porque estabelecem limites entre si, mas pelo reconhecimento da diferença, que é o caminho para a realização da humanidade. Quando não partirmos desse ponto, todos os esforço de educação para o diálogo e a convivência democrática tornam-se inúteis e cedo ou tarde reaparece a intolerância.

O debate sobre o ensino religioso no Brasil é um bom exemplo disso. Ao mesmo tempo em que o discurso dominante na mídia e nos meios acadêmicos exalta o respeito à diversidade, procura-se retirar o núcleo que dá consistência a uma realidade social, negando a ela a possibilidade legítima de expressar sua experiência - isso pode ser tolerado apenas na esfera privada. Penaliza-se não apenas um grupo, mas toda a sociedade, que fica privada de uma contribuição original e valiosa. Uma educação autenticamente religiosa é necessariamente democrática, pois valoriza a pessoa, fortalece sua liberdade, estimulando o diálogo e a colaboração para a realização de obras comuns.

Se quisermos construir uma sociedade mais ética, portanto, o caminho não é a anulação das diferenças incômodas, mas a afirmação do valor da pessoa concreta, considerada em suas dimensões culturais e sociais, aberta ao diálogo e à colaboração com os outros.


Com o tempo, os valores morais acabam sendo moldados pela mentalidade dominante, que, por sua vez, é determinada por quem detém o poder numa sociedade. É possível escapar desse relativismo moral e ético?

MARLI PIROZELLI N. SILVA: Sim, mas isto requer um trabalho contínuo, pois todos nós estamos mergulhados numa cultura que tenta nos convencer diariamente de que não podemos ter certeza a respeito de nada.

Ao tratarmos de questões que envolvem um juízo de valor, a expressão mais utilizada por todos é “depende da situação”, ou seja, não se pode afirmar que algo possa ser bom ou mau em si, mas tudo depende do ângulo pelo qual se analisa uma situação ou dos interesses envolvidos.

A idéia de uma verdade universal, que pode ser conhecida pela razão, desapareceu, prevalecendo uma concepção individualista, que confere à consciência individual o privilégio de “criar” juízos sobre o bem e o mal.

Questões relativas aos avanços da pesquisa genética, ao desenvolvimento e aplicação de novas tecnologias, assim como decisões na esfera pessoal, do trabalho ou da família recebem o mesmo tratamento: são julgadas de acordo com a conveniência individual ou com as possibilidades práticas de realização (tudo aquilo que é possível fazer torna-se legítimo).

Desta forma, qualquer atitude pode ser não apenas compreendida, mas justificada desde que compreendida de “um certo ponto de vista”.

Elimina-se a realidade objetiva e retira-se do homem a capacidade de reconhecê-la, dispensando-o de exercer a virtude da “prudentia”, compreendida em seu verdadeiro sentido: ver a realidade com olhar límpido e inteligência reta (livre de preconceitos e interesses) e decidir-se pelo certo, transformando o que foi reconhecido como verdadeiro em ação.

O resultado desse processo nós conhecemos bem e agora nos esforçamos para limitar os excessos dos julgamentos individuais por meio de códigos mais severos que dêem conta dos múltiplos aspectos da vida.

Cito um exemplo que revela com clareza os limites do relativismo: recentemente, durante uma aula na Universidade, os alunos debatiam sobre a existência de critérios éticos universais que pudessem ser reconhecidos por todos os homens e sobre o papel da cultura nos diferentes contextos culturais e temporais. Afirmando com veemência a inexistência de critérios éticos válidos para todos e o respeito à diversidade cultural, os alunos ficaram surpresos e inconformados ao constatarem que suas conclusões justificavam plenamente os atuais atos terroristas.

Voltamos, então, ao papel da educação para uma sociedade ética.

Lembremos que a ética pressupõe acima de tudo o conhecimento de um fundamento: o próprio ser do homem, ontologicamente constituído pela exigência de realização plena, por perguntas inextirpáveis sobre o sentido último da vida, que se referem à totalidade da existência.

Por isso, quem se interessa pela educação ética deve ter como premissa o realismo: não se educa para a ética partindo de uma concepção ideal de homem ou de uma sociedade perfeita, mas da observação atenta da realidade humana.

A grande tarefa que temos, também na Universidade, é ajudar o homem a tomar consciência de si mesmo, reconhecendo o desejo, quase sempre obscurecido, de realização que o constitui, pois, se isso não ocorre, todo o empenho humano volta-se para a satisfação de aspectos setoriais.

Este é, sem dúvida, o caminho mais seguro para escapar do relativismo, do poder hegemônico e construir novas formas de relacionamento.

 

 
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