Relato do encontro sobre educação realizado pelo Núcleo Fé e Cultura na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 5 de maio. Uma reflexão sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação a partir da encíclica Fides et ratio, de João Paulo II. Extraído de Passos Litterae Communionis nº 19, junho de 2001
O representante do Secretário Municipal de Educação certamente terá muito o que contar sobre o encontro “Educação, uma razão aberta à realidade”, organizado pelo Núcleo Fé e Cultura, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Com efeito, Artur Costa Neto comentou que, na cultura de hoje, a fé e a vida humana estão “desconectadas” uma da outra e têm sido “maltratadas”. E por isso agradeceu o fato de que no âmbito da PUC se proponha uma “vida mais verdadeira”. A educação a uma vida verdadeira foi o ponto central das colocações da tarde de 5 de maio.
Padre Vando Valentini, coordenador do Núcleo, deu início ao encontro lembrando às mais de cem pessoas presentes a colocação do Cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Cláudio Hummes, na abertura do fórum organizado pela Companhia das Obras do Brasil em julho do ano passado, sobre o tema “Educação: uma questão de liberdade”. Na ocasião, D. Cláudio declarou que “a Igreja gostaria de ser parceira nesta discussão para que possamos avançar realmente em direção a uma educação integral”.
Assim, Marcos Lorieri, professor de educação da PUC-SP, procurou acenar aos pressupostos antropológicos da nova Lei de Diretrizes e Bases, confrontando-a com a encíclica Fé e Razão (Fides et ratio), lançada por João Paulo II em 1998. Anibal Fornari, professor de filosofia da Universidade de Santa Fé, na Argentina, percorreu de certa forma o caminho inverso, esclarecendo como uma fé viva e uma razão aberta, defendidas pela encíclica papal, fundamentam um trabalho educacional verdadeiro. Em seguida, professores de várias instituições fizeram perguntas relacionando as exposições a problemas atuais da educação.
Antes de mais nada, Marcos Lorieri observou que a filosofia é congênita ao ser humano, por se referir a perguntas fundamentais que todos nos colocamos. É com base nessas perguntas fundamentais que são avaliadas em primeiro lugar a LDB e os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). Por exemplo, com relação aos chamados “agentes formadores” - também conhecidos como “professores” -, Lorieri observou que todo trabalho educativo pressupõe a clareza sobre “o que é o ser humano e como podemos trabalhar com ele”. A consciência da natureza humana naturalmente desperta a questão: “Essa criança vai ser uma pessoa com quem eu gostaria de conviver? Nós vamos gostar dela quando for adulta? Que tipo de ser humano quero formar com a minha intervenção educativa?”.
A LDB procura responder: um cidadão livre, solidário, apto para o trabalho e plenamente desenvolvido (Cf. Art. 2 da LDB, “Dos princípios e fins da educação”) - valores aos quais ninguém se opõe. No entanto, tais valores perderam a motivação profunda que os gerou: o reconhecimento de uma presença excepcional, ou seja, a experiência da fé. Como observa o texto da Fides et Ratio, o centro da cultura deslocou-se de Deus para a natureza e para o homem. Assim, a LDB, fruto de uma cultura laica também, reflete a “naturalização” de valores que nasceram com o cristianismo. Com relação à solidariedade e à ética, por exemplo, procuram-se encontrar motivos “naturais” para agir de uma certa forma e não de outra, afinal parece melhor para qualquer sociedade viver sem grandes conflitos do que provocá-los continuamente.
Aprender... a ir além
Marcos Lorieri sublinhou o fato de que em qualquer proposta educativa atual surge a expressão “aprender a aprender”. Se por um lado esse termo sugere que o aluno desenvolva capacidades cognitivas para lidar com várias realidades, por outro subjaz à expressão a idéia de que o aluno está na escola para “produzir conhecimento”, de que ele é treinado para ser um “bom conhecedor” e, portanto, para seguir um modelo científico de racionalidade.
Mas também diante desse ideal não se pode fugir às perguntas fundamentais: “A LDB quer formar homens livres, mas livres em quê? Quer formar um ser humano apto para o trabalho, mas qual trabalho? Nosso sistema de trabalho é humano? Pretende desenvolver plenamente o ser humano, mas o que significa ‘pleno’? Essas categorias estão cheias de um significado que a Lei não explicita”. Justamente, Lorieri encerrou sua colocação falando da necessidade humana de “transcendência” através de uma imagem bastante simpática: “A gente precisa espichar a vida para mais além”.
O gancho para a palestra de Anibal Fornari estava feito: a percepção do “mais além” começa quando a razão se abre a uma realidade que não pertence ao homem, mas na qual ele se encontra. Com a vivacidade de quem vive plenamente a razão, Anibal falou sobre a razão como instrumento de abertura pessoal e ecumênica, e sobre a fé como algo interno à razão, na medida em que é capacidade de reconhecer uma presença significativa na própria vida, aliás, a presença mais significativa da vida.
Nas palavras do professor argentino, a razão serve para o homem reconhecer a si mesmo dentro do universo, ou seja, reconhecer o dado, sua natureza, seu destino, a partir do qual o homem diversifica modalidades de conhecimento para viver. Desse modo, o movimento de conhecimento não parte do homem em si - ou do aluno que precisa “aprender a aprender” -; o conhecimento começa com a percepção da alteridade, pois nós fomos recebidos no mundo, não “jogados” nele. Essa premissa tem uma conseqüência de grande importância para a educação: a idéia da totalidade - presente por exemplo, na discussão sobre os cursos “transdisciplinares” - não pode ser representada como um “formigueiro”, mas deve ser imaginada como uma totalidade “polêmica”, “dramática”, “intersubjetiva”.
Duas cidades
Por isso, “a escola deve ser o espaço público de liberdade para introduzir a pessoa ao exercício pleno da razão (a afeição)”; a educação deve favorecer a busca da verdade, não como busca de um último argumento abstrato, mas de uma pessoa que expresse existencialmente a verdade buscada. Afinal, segundo Anibal, não se pode educar a pessoa para que ela viva como um “solitário triste”, mas para que ela tenha a liberdade de aderir ao outro que a ama.
Se alguém observou os presentes durante a palestra de Anibal Fornari, viu pessoas adultas em silêncio incomum, como se estivessem ouvindo algo absolutamente novo e de extrema importância. Esta impressão se aprofundava à medida que Anibal falava, apoiado em Santo Agostinho, sobre a pertença do homem a “duas cidades”. Uma é a cidade concreta, que se refere ao Estado e que concede nossa “cidadania” - termo tão presente nas leis sobre educação; outra, porém, é a chamada cidade da “paidéia”, a cidade da educação do homem, na qual a pessoa faz a experiência de uma identidade livre, pois é o lugar do relacionamento com Deus. Ignorada a cidade de Deus, temos as condições para o surgimento do totalitarismo, porque a estrutura do Estado pretende responder ao desejo humano de felicidade.
Ao contrário, “o educador deve comunicar a sua vida. O que se comunica na história é o homem; o verdadeiro sujeito da história é o homem”. Fornari observava que Deus é o educador supremo, uma vez que Ele propõe um caminho dando-se a si mesmo aos seus “alunos”. Da mesma forma, o verdadeiro educador é aquele que faz uma proposta clara ao outro, com a qual a pessoa pode entrar no mundo, abrir-se à realidade e, enfim, redescobrir-se “herdeira” de um mundo, para reconhecer, reaprender e comunicar novamente o que recebeu.
Horizonte infinito
Após os dois painéis, os debatedores colocaram suas questões. Antônio Boing, diretor da Associação das Escolas Católicas, perguntou como lidar com modelos culturais que mudam tão rapidamente na sociedade moderna; Jair Militão, professor da Uni-Nove, ligado à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, referiu-se à “educação dos educadores”; o professor Carlos Aurélio, após lembrar que a educação busca a verdade, comentou a perda de rumos da educação católica, pressionada entre o desejo da “qualidade” dos conteúdos e a necessidade de responder à “quantidade” de conteúdos exigida pelo Estado; Francisco Borba, professor da PUC de Campinas, observou mais uma vez que fé e razão pertencem uma à outra, já que a fé revela a natureza da razão.
Com a mesma simpatia de sua palestra, Marcos Lorieri, retomando as colocações de Carlos Aurélio e Antonio Boing, ressaltou que a educação busca a verdade, mas não se deve reduzir a educação à escola; que a verdade buscada pela escola, sozinha, seria inalcançável, e que, justamente porque as pessoas perderam a consciência de pertencer, é necessário lutar por uma educação verdadeira. “Senão, fico um ser humano ‘murcho’, pois sozinho não dou conta dos meus desejos, preciso da transcendência, preciso ‘espichar a vida’”.
Por sua vez, Anibal Fornari respondeu a primeira questão colocada lembrando que o problema central não é lidar com modelos, mas que o educador considere a si mesmo, diga “eu” para dizer “tu”, e viva até o fundo suas exigências últimas. Sem essa condição, o educador não terá critérios para se confrontar com o aluno, e talvez caia sem perceber no discurso da profissionalização ou da democracia. Se a nova lei brasileira é uma adaptação às exigências do mundo moderno, é necessário que nos perguntemos aonde vamos chegar com ela, o que desejamos gerar. Pois o trabalho maior da educação não consiste em formar profissionais aptos, mas em “fazer emergir, da criança, o adulto”.
Assim também foi respondida a questão sobre a constituição do sujeito educativo, abordada por Jair Militão: o educador oferecerá ao aluno as particularidades de cada matéria no horizonte de totalidade da existência. Na medida em que o educador possui a consciência madura de si como um homem que caminha para um destino, saberá propor ao seu aluno a verdade já experimentada. Com relação à interferência do Estado na educação, Anibal provocou os professores da platéia a que aproveitassem as “brechas” da lei, para construir uma educação que não destrua o homem, mas favoreça uma “introdução à realidade inteira”. Por fim, o grande educador concluiu dizendo: “A realidade é infinitamente maior do que pensamos, é o âmbito em que a verdade subsiste, possuir a verdade é possuir o ser. Ou este horizonte infinito é uma paixão inútil, ou já começo a experimentar que ele existe, e vou continuar entrando na montanha do ser”.
Seria possível dizer que o encontro de 5 de maio tenha sido mais um discurso sobre educação entre tantos que têm sido feitos nos últimos tempos? Se olharmos o mar de documentos, artigos de jornais e revistas, discussões sobre a qualidade e a quantidade das universidades e escolas brasileiras, esse dia poderia se perder no horizonte como um pequeno barco de pescadores.
Mas, se olharmos com atenção, esse aparentemente frágil barco carrega homens que pertencem a uma história incomparável e a um Educador excepcional. Certamente, o evento foi uma continuação do encontro promovido pela Companhia das Obras no ano passado e também uma tentativa de responder ao desafio de D. Cláudio, que tem reconhecido como poucos o valor de um trabalho educativo e cultural no âmbito da Igreja. Não se podem ignorar as muitas iniciativas tomadas pelo nosso Cardeal a esse respeito: a criação do Núcleo Fé e Cultura e do Centro Universitário Assunção (Uni-Fai), como espaços em que a cultura católica pode se expressar livremente, estão entre os mais evidentes. Guardadas as proporções, o evento organizado pelo NFC, o trabalho dos movimentos, as iniciativas de D. Cláudio, inserem-se humildemente na tradição dos grandes educadores brasileiros iniciada pelos jesuítas.
Por isso, qualquer pessoa que tenha ido ao encontro com Marcos Lorieri e Anibal Fornari, ou que tenha tomado conhecimento dele através de quaisquer meios, pode se entender como educador e educando ao mesmo tempo, e viver a grande aventura descrita no livro de padre Luigi Giussani sobre educação: “educador e educando são dois homens, são dois entre os homens: é o tempo daquela companhia amadurecida e forte que liga aqueles que vivem a mesma experiência do mundo, que encontram o chamado de atenção do ser em cada instante do seu caminho; e o tempo no qual se trabalha juntos, lado a lado, por um destino que reúne a todos” (Educar é um risco. São Paulo, Companhia Ilimitada, 2000, p. 74). Bom trabalho, amigos! |