Da recuperação do diálogo entre as humanidades, a ciência e a Igreja como experiência humana possível: a retomada de 2000 anos de conhecimento.
Afinal o que significa uma universidade católica? Sabemos que vivemos numa época em que muito se fala da “dignidade das identidades e das diferenças”. Há sempre riscos nessa dinâmica: exclusão, injustiças, medos. Essa é uma experiência humana por excelência: a dor do discernimento. O debate ao redor da inclusão da Ex Corde Ecclesiae no cotidiano da PUCSP pode ser um bom momento para pensarmos sobre como se pode realizar uma identidade da universidade católica no plano intelectual e científico, pára além dos preconceitos que dominam a esfera acadêmica.
São muitos os espaços onde se dá o debate contemporâneo, e muitas as teorias propostas. A PUCSP pode ser, entre outras coisas, um espaço privilegiado onde se discuta essa longa tradição da Igreja constituída por 2000 mil anos de filosofia, ciência, teologia e magistério. O conjunto de conceitos que compõem o universo católico pode e deve entrar no debate. Por que não? Vejamos seis tópicos, entre tantos outros:
1. Os excessos da vida técnica voltada para o sucesso é um drama humano atual típico. Pára além das cartilhas mais comuns em nossa época, uma reflexão sistemática sobre o conceito de Transcendência dentro da tradição dos pensadores cristãos e do Magistério da Igreja (ou mesmo abrâamicos em geral, além dos grandes sistemas religiosos mundiais), pode ser uma medida consistente para entendermos a crise de sentido contemporânea. Ao deixarmos de lado a natural vocação humana para o Transcendente (aqui entendido como Deus) podemos apenas estar entregando nosso destino e nossa natureza ao banal barateamento dessa dimensão. A tradição católica transcende a tendência contemporânea de reduzir o ser humano ao “animal do pão terrestre” e ai está um dos seus grandes valores. As urgentes questões que circulam ao redor da sociedade tecno-dependente são vistas de outro modo quando transcendemos os limites dessa racionalidade da eficácia. Precisamos superar o medo de pensar para além do “pão terrestre”.
2. Um dos núcleos do cristianismo é a associação entre o conceito de Logos grego e a figura de Jesus Cristo (presente na descrição de Cristo como Pantocrator). Ao tomarmos Cristo como logos, estamos assumindo que a investigação acerca de sua história na Terra e aquilo que a partir dela foi construída, nos porá em contato com uma experiência de natureza racional. Não da racionalidade instrumental referida acima, mas de uma racionalidade que podemos encontrar profundamente nos pensadores cristãos e no magistério histórico da Igreja: uma racionalidade que se move nas alturas da indagação acerca do princípio e o fim último das coisas. A razão humana é escatológica por natureza, ou encontra Deus ou encontra o vazio. O ser humano, naturalmente, chega a essa indagação, quando lhe damos a chance. Para isso, se faz necessário o estudo atento de textos que lá chegam, e antes de tudo, sua recuperação na prática cotidiana com os alunos. A Universidade católica é um locus natural onde isso pode acontecer. Isso não fere outras dimensões do cotidiano acadêmico, mas as enriquece. Precisamos superar o medo do Logos cristão.
3. O relativismo filosófico (incluindo aqui as outras formas derivadas de relativismos) é um dos grandes desafios contemporâneos, não porque nós o tenhamos inventado (Platão já conhecia essa questão, representado na história da filosofia pela figura de Protágoras), mas porque ele hoje se transformou numa forma de totalitarismo cognitivo e epistêmico. Podemos experimentar sua crítica através de documentos e textos que fazem parte do tesouro conceitual da Igreja, colocá-los no debate, avaliar seu alcance, percorrer seu impacto. Precisamos superar o medo implícito na experiência socrática de reconhecermos que podemos estar errados em alguma postura. Esse risco (do erro) não faz parte da preguiça relativista.
4. O magistério da Igreja, e sua teologia e filosofia decorrentes, reúne em sua identidade séculos de reflexão sistemática acerca da condição humana. A universidade católica é o lócus natural para essa experiência de pensamento. São raras as instituições antigas entre nós que acolhe em si este tipo de perenidade. A Igreja detém em seu patrimônio a experiência de uma identidade milenar para além do senso comum contemporâneo, filho distante do anti-clericalismo jacobino. Através desse magistério, a alma humana vem à luz, assim como muitos dos desafios contemporâneos. Precisamos superar o medo da possível crítica que o passado pode vir a fazer ao presente.
5. A democracia, para além de seus inegáveis ganhos, tende a produzir um viés excessivamente dependente da tirania da maioria e da moda. Muito do que a Igreja produziu se afasta da “paixão pela moda”, refletindo, talvez, a experiência de uma instituição que não pode se dar ao luxo de “amar a moda” justamente porque busca contemplar a eternidade. Nessa tensão entre o tempo eterno e o momento pode estar um tesouro da experiência intelectual humana pára além do excessivamente efêmero. A liberdade que o pensamento experimenta nessa busca de contemplação sistemática da eternidade pode ser um dado ímpar num mundo asfixiado pela banalidade do momento. Não ter “que agradar sempre” pode ser a diferença entre a mentira e a verdade num mundo obcecado pelo narcisismo ontológico. Precisamos superar o medo de reconhecer a idolatria da democracia e suas modas diante de nossos olhos.
6. Um outro campo de investigação que estaria no âmbito de uma identidade intelectual na universidade católica é o estudo crítico-bíblico pára além das excessivas manias que reduzem tudo a teorias sociais e políticas a partir do século XIX. Por que, afinal, só valeria o que tem 200 anos? Ao contrário, a identidade católica de uma universidade pode se dar no trato cotidiano com essa experiência crítico-bíblica que transcende as manias interpretativas modernas, investigando amplamente uma narrativa que nasce 2000 anos atrás e que se mantém ao alcance dos sujeitos históricos atuais. Precisamos superar o medo dos 2000 anos que nos contemplam.
Lado a lado, ciência, filosofia, teologia e magistério. Quem mais pode oferecer a sociedade esta vivência do que uma universidade católica? Não há o que temer, hoje isso é o “novo”.
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