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Padre Vaz: um peregrino do Absoluto
Paschoal Rangel
 

O autor, sacerdote, é licenciado em Filosofia e bacharel em Comunicação Social. Autor, entre outros, dos livros Emmanuel Mounier. Uma introdução ao personalismo mounieriano e Ensaios de literatura: uma introdução à leitura de 16 autores brasileiros, dirige a revista de teologia Atualização e o jornal O LutadorPadre Vaz: um peregrino do AbsolutoPaschoal RangelNo dia 23 de maio de 2002 morreu o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz. Nascido em Ouro Preto (MG) em 24 de agosto de 1921, escolheu ser jesuíta e entrou para a Companhia em 1938. Vocação filosófica indiscutível, doutorou-se na Universidade Gregoriana, Roma, em 1953, com uma tese "Sobre a Dialética e a Contemplação nos Diálogos de Platão", escrita em latim, "a língua que me era mais familiar", contou ele, "entre as admitidas para a redação da tese". Logo depois, regressou para o Brasil e, segundo uma expressão dele, "meus anos goetheanos de peregrinação começaram por volta de 1953". Foi ser professor em Nova Friburgo (RJ), onde lecionou filosofia durante dez anos. Saiu dali para Belo Horizonte; em seguida, foi para o Rio de Janeiro, e enfim voltou para Belo Horizonte, sempre como professor de filosofia. A saída de Nova Friburgo se deveu aos acontecimentos políticos e sociais de 1964, já que dava assistência ao grupo da JUC e, depois, ao da Ação Popular (AP), na primeira fase, tendo sido mesmo o teórico e um dos principais inspiradores do movimento em seu nascedouro. Movimento de que, posteriormente, se afastou, quando a AP se radicalizou e marxistizou e perdeu a inspiração cristã.

Seu trabalho intelectual mais profundo se exerceu durante os anos de Belo Horizonte, seja na UFMG, onde foi professor por cerca de 22 anos, seja no CES (Centro de Estudos Superiores) da Companhia de Jesus, onde continuou seu labor magisterial até o fim da vida, só se tendo afastado dele muito recentemente, já debilitado. Foi aqui também que, nos últimos quinze anos, pôde ir organizando artigos e estudos filosóficos, fazendo-lhes as correções e revisões necessárias, e publicando, aos poucos, seus Escritos de Filosofia. Esses “escritos” não se reduziam a artigos redigidos ao correr dos anos, mas constituem uma “massa filosófico-sistemática” impressionante pela profundidade do pensamento e o volume das leituras e citações atualizadíssimas, o domínio da matéria e a organicidade que ele imprimia ao texto. Impôs-se a tarefa de fazer uma Antropologia Filosófica (2 tomos), a fim de, sobre a idéia e a realidade do ser humano, construir uma filosofia da cultura (Escritos de Filosofia – III), uma Ética Filosófica (2 tomos). Além disso, preparou para nova edição seu primeiro livro mais importante, Ontologia e História, de 1968, a qual saiu em 2001, como Escritos de Filosofia – VI. Além disso, terminou o estudo sobre as Raízes da Modernidade, posto à venda em 2002, sem que ele o tenha podido ver impresso.

Antes de Ontologia e História (1968), que, como dissemos, é o primeiro de seus livros mais importantes, padre Vaz havia publicado Cultura e Universidade, em 1966, e Visão Cristã em Teilhard de Chardin, em 1967.

Sua obra escrita, é muito maior e está ainda precisando de ser coletada, revisada, organizada, o que certamente os jesuítas irão fazer.

Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz merece ser mais conhecido. Houve certamente uma evolução em seu pensamento. Nos últimos anos da década de 50 e durante os anos 60, ele teve uma atuação política bastante definida, marcada por um pensamento que talvez possamos classificar como “pensamento da esquerda católica”. Quando o acusavam de ser marxista, após a publicação do “Documento Base da Ação Popular”, que lhe é atribuído, ele não aceitava o rótulo, criticava o marxismo, e se defendia dizendo, por exemplo, que seus críticos pareciam não conhecer o pensamento da esquerda católica francesa, que tinha à frente, entre outros, um Emmanuel Mounier, em quem ele, Vaz, também se alimentava. Esse engajamento político atraiu para ele enorme prestígio nos meios universitários e lhe trouxe imensos aborrecimentos posteriores. Não cabe nesta nota um estudo da posição do padre Vaz nesse momento histórico. Ele teve críticos tenazes e radicais, como é o caso do historiador da filosofia brasileira Antônio Paim, que julga descobrir em seus textos daquela época não tanto um “esquerdismo católico”, mas uma “opção totalitária”, que continuava a doutrina ditatorial pombalina, o uso do Estado (Poder) para impor uma idéia de civilização e cultura, que os seus teóricos achavam salvadoras. Isto, por outro lado, faz parte – continua Antônio Paim – de uma das vertentes do positivismo brasileiro, que dominou explicitamente a Primeira República e permanece implicitamente na política nacional.

A imagem de um padre Vaz político e político de esquerda ficou muito gravada na mente de muitos que o reprovaram e resolveram afastar-se dele nos últimos 30 anos. Ele não só se desembaraçou de algumas utopias, mas foi dando um rumo diferente ao seu pensamento.

Como contou a Marcos Nobre e José Márcio Rego, ele teve uma formação aristotélico-tomista sistemática, com um aprofundamento posterior na filosofia grega e medieval no seu curso de doutorado. Nos primeiros anos após a volta ao Brasil, o trabalho junto à JUC levou-o a aproximar-se do pensamento de Marx. Mas, passados os anos de contato mais íntimo com Marx, depois que veio lecionar na UFMG, em Belo Horizonte, iniciou seu trabalho dando cursos no campo da História da Filosofia. Ocorrendo, em 1970, o segundo centenário de nascimento de Hegel, a FAFICH resolveu comemorá-lo. Diz então o padre Vaz: “Em 1970, o meu trabalho intelectual recebeu um novo rumo”. “Até então o meu conhecimento de Hegel estivera condicionado à leitura de Marx nos tempos da JUC, tendo em vista a poderosa atração do marxismo sobre a juventude universitária da época. O meu encontro, ou reencontro com Hegel em 1970 fez-me perceber uma profunda afinidade das minhas preocupações filosóficas com alguns aspectos do pensamento hegeliano” (NOBRE, Marcos e REGO, José Márcio. Conversas com Filósofos Brasileiros, São Paulo, Editora 34, 2001, p. 30).

Foi então que, no âmbito da FAFICH da UFMG, ele e um grupo de alunos e professores se entregaram à leitura sistemática das obras principais de Hegel: a Fenomenologia do Espírito, a Ciência da Lógica, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas e a Filosofia do Direito. Esses estudos, que se faziam lenta e longamente, anos seguidos, dilataram, como ele disse, seus horizontes filosóficos, fizeram-no entender melhor a Dialética e o problema da História e da sociedade, particularmente do Estado moderno. Mas sobretudo o orientaram numa direção que sempre o seduziu: “a releitura da metafísica clássica nos quadros da Ciência da Lógica”.

Revela o padre Vaz aos seus entrevistadores que “as vicissitudes da [sua] peregrinação, a partir de 1970 foram tranqüilas”. Um habeas-corpus do Superior Tribunal Militar resolveu praticamente a questão em que estava envolvido junto à Segurança Nacional e ele pôde dedicar-se inteiramente ao trabalho intelectual que era, por vocação, o seu (cf. Conversas com Filósofos Brasileiros, p. 30). Nessa importante “conversa” com Marcos Nobre e José Márcio Rego, importante porque as respostas, assim como as perguntas, foram feitas e respondidas por escrito e com prazo suficiente para serem seriamente pensadas, o padre Vaz reconhece que suas posições e textos dos tempos da JUC só podem ser entendidos no contexto da época, uma época de exacerbação ideológica e de expectativa de uma revolução socialista iminente e vitoriosa na América Latina. “Nossa análise”, admitiu francamente ele, “hoje devemos reconhecê-lo, estava ingenuamente equivocada no que diz respeito às forças em confronto” (Ibidem, p. 32).

Isto não significa que ele tivesse passado a compactuar seja com o regime militar, seja com as injustiças sociais, que perduram no Brasil e na América Latina. Pelo contrário. Só que ele começou a olhar com maior clarividência a complexidade da questão social e internacional e a não meter a colher de pau nesse angu de caroço que é a macroeconomia e a política, reconhecendo que economia e política, quando a gente quer passar das conversas de bar ou das fofocas e palpites, devem ficar para quem é do ramo, como dizia Tancredo Neves.

É uma tentação entrar aqui numa análise do pensamento de Henrique Vaz. Mas isto extrapolaria inteiramente o propósito desta nota. Fica para outra ocasião. Há, porém, dois livrinhos recentemente editados e que dizem muito do que era o padre Vaz: um, em colaboração com Marcelo Perine, em que ele trata do Humanismo Hoje: Tradição e Missão (Editora PUC-Minas, 2001) e outro, expressivo de sua peregrinação em direção ao transcendente, intitulado Experiência Mística e Filosofia na Tradição Ocidental (Edições Loyola, 2002). Ao cabo das peregrinações goetheanas, ou melhor, captando o que já se vinha fazendo durante todo o percurso de suas andanças; o peregrino da metafísica encarnada na história para o resgate do homem e dos valores éticos diz afinal as penúltimas palavras na “experiência mística”, que não nega, antes realiza plenamente a filosofia e que tornou o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz um “Peregrino do Absoluto”. Aleluia!

Apontamentos bibliográficos sobre o padre Vaz

Tendo já apontado os principais livros do próprio padre Henrique Cláudio de Lima VAZ, tentarei indicar alguns textos que falam dele e de sua filosofia:

1. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. “Meu Depoimento”, in: LADUSÃNS, padre Dr. Stanislavs. Rumos da Filosofia Atual no Brasil em Auto-retratos, São Paulo, Edições Loyola, 1976, p. 297-311.

O livro foi idealizado e coordenado por Ladusãns e traz, neste primeiro volume que ficou sendo o último, se não estou enganado, os depoimentos de 27 pensadores. Ao cabo do testemunho do padre Vaz, vem uma bibliografia em que se arrolam 62 artigos, estudos, colaborações em opúsculos e livros, já incluindo Ontologia e História, a obra mais importante até aquela data.

2. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Um depoimento a Marcos Nobre e José Márcio Rego, in: Conversas com Filósofos Brasileiros, São Paulo, Editora 34, 2000, p. 29-44. Esta entrevista completa aquela de 1976, referida no nº 1.

3. CRIPPA, Adolpho. (Coordenador). Idéias Filosóficas no Brasil – Século XX – Parte I, passim. Ver índice onomástico.

4. VILLAÇA, Antônio Carlos. O Pensamento Católico no Brasil, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.180-188, em que se apresenta o livro Ontologia e História.

5. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo e Neotomismo no Brasil. São Paulo, Grijalbo, 1968, p. 143-171. Ótimo estudo, com a reserva de que pára em 1968, como era inevitável.

6. CAMPOS, Fernando Arruda. Tomismo Hoje, São Paulo, Edições Loyola, 1989, p. 350-356. A limitação do estudo vem do fato de o padre Vaz só ter iniciado a publicação de sua obra teórica substancial em 1991, com sua Antropologia Filosófica, Escritos de Filosofia – II. Mas a análise de F. Arruda Campos é muito boa.

7. PAIM, Antônio. As Idéias Políticas no Brasil – Vol II, São Paulo, Editora Convívio, 1979, p. 201-206. Uma crítica rigorosa daquilo que seria “a opção totalitária” da AP, padre Vaz à frente.

8. PAIM, Antônio. Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro: “A Opção Totalitária”, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1982, p. 49-53. Repete-se a mesma crítica.

9. PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil, 3ª edição revista e ampliada, São Paulo, Editora Convívio, 1984, p. 61-67. Ele não leva em conta a mudança de rumo do pensamento do padre Vaz a partir de 1970. Além de tudo, não podia estudar o desenrolar de seu pensamento mais maduro, que o padre Vaz expôs a partir de 1986 e, sobretudo, de 1991, com a publicação da Antropologia Filosófica.

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