* Alain Finkielkraut, filósofo, professor da École Polytechnique de Paris e co-fundador do Institut d’études lévinassiennes, é autor de A ingratidão. Um ensaio sobre a relação do homem de hoje com a História (Objetiva, 2000), A humanidade perdida (Ática, 1998), A memória vã (Paz e Terra, 1990), A derrota do pensamento (Paz e Terra, 1988).
Disse Jean-Jacques Rousseau: “Eu odeio a tirania. Eu a considero a fonte de todos os males do gênero humano”. Era uma maneira de dar ao mal uma origem que já não fosse natural, mas histórica e social. O mal não estava mais no homem: estava na sociedade. Rousseau abria assim um espaço ilimitado para a política, pois, a partir daí, o objetivo da política passou a ser eliminar o mal da Terra, modificando radicalmente as condições da vida social humana. Mas, sobretudo, Rousseau punha na opressão, no domínio, a origem de todas as perversões, de todos os crimes humanos.
Somos hoje amplamente devedores desse pensamento. Ser discípulos de Rousseau significa poder remeter-se sempre ao crime original. [...] As coisas podem também ser vistas de um outro ponto de vista. A tendência espontânea da ideologia é classificar os seres humanos em duas categorias: de um lado, aqueles que agem e que, portanto, são responsáveis por seus atos, sendo, por isso, passíveis de acusação; do outro, aqueles que reagem, permanecendo externa a eles mesmos a causa de seus atos, e que, portanto, são inocentes. Estes gozam da imunidade do prefixo “re-”: réaction, résistence, rébellion, révolte (reação, resistência, rebelião, revolta). A sociologia hoje dominante inscreve-se no quadro dessa distribuição de papéis à la Rousseau. [...]
Na base da modernidade há uma espécie de ressentimento contra o mundo tal como é dado, um ressentimento perante o dado. Hannah Arendt fez do nascimento o paradigma ontológico do evento. Ante o estranhamento da condição do homem moderno, ela recorda a fórmula bíblica “um menino nasceu para nós”, dando-lhe uma espécie de tradução secular, leiga: o menino é um milagre. Hoje, porém, percebemos que a utopia hiper-moderna vem levando larga vantagem sobre os milagres. O homem está destinado a viver em meio ao que ele mesmo produziu. Ou será que deveríamos, precisamente, tomar o partido do dado? (trechos de uma palestra no Centro Cultural de Milão)
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