A hipótese que gostaria de apresentar aqui, hoje, é que a “religião” não constitui apenas - como freqüentemente se interpreta - uma temática “prática” singular (uma espécie de problema conseqüencial ou colateral ou ainda “especial” - mas em todo caso não fundamental) dentro do sistema da filosofia transcendental de Kant. Justamente em consideração aos fios que nela se emaranham e que dela se desenrolam, representa, sim, um momento sistemático e problemático absolutamente central no todo do projeto crítico kantiano.
De modo preliminar, vejamos o conjunto da questão. 1) Desde a conclusão de A crítica da razão pura (1781, 1787), Kant já havia afirmado que “sem dúvida o fim último da natureza, a qual se ocupa sabiamente de nós ao constituir a nossa razão, está voltado exclusivamente ao interesse moral” (“Cânon da razão pura”, B 829); e ainda, 2) na Crítica da razão prática (1788), depois de ter demonstrado que esse interesse moral atinge a sua plenitude somente na absoluta autonomia da razão prática, a qual se torna lei para si mesma como dever puro e incondicional, chegará a indicar a inevitável e necessária relação que existe entre a moralidade e a religião, ou melhor, o percurso que, a partir da moral e tendo-a como fundamento, conduz (e deve conduzir) à religião; para chegar enfim 3) a percorrer às avessas esse caminho fundamental, na obra sobre A religião nos limites da simples razão (1793), partindo justamente da religião considerada como “outra” em relação à razão pura, vale dizer, a religião na sua forma historicamente revelada - o cristianismo -, para demonstrar afinal que a essência necessária dessa religião positiva assenta exclusivamente no puro imperativo moral que a razão dá a si mesma.
Observe-se que esta minha insistência não significa reduzir por completo a filosofia crítica de Kant a uma “filosofia da religião”, mas ao contrário alçar a sua filosofia da religião como ponto de observação, ou melhor como um dos pontos de observação e de verificação do itinerário kantiano, porque no fundo ela vem a coincidir, em Kant - como espero poder demonstrar -, com a própria estrutura totalizante e auto-referencial da razão.
Como perspectiva sintética dessa interpretação, poderemos citar uma passagem da introdução de A religião nos limites da pura razão, onde Kant escreve que “uma religião que declarasse inconseqüentemente [unbedenklich: de maneira leviana, sem reflexão] guerra à razão não resistiria muito tempo”. Uma afirmação como essa (talvez livre do tom de advertência um pouco policialesca que Kant lhe atribui) poderia provavelmente encontrar o consentimento de um teólogo como Tomás de Aquino ou da melhor tradição apologética da teologia católica, segura do fato de que a revelação cristã é por sua própria natureza “razoável”, ou seja, correspondente ou pertinente às perguntas e às expectativas da razão humana, restando pois - como resposta - qualitativamente outra, ou seja, infinita, em relação à pergunta. Em Kant essa tradição teológica (que todavia já fora profundamente contestada pela cultura da Reforma protestante), é paradoxalmente retomada, mas num sentido por assim dizer invertido: se a religião nunca pode se colocar em conflito com a razão, isso se deve ao fato de que a razão já determinou a priori a origem, o conteúdo e o objetivo de toda e qualquer religião possível.
O nome dessa determinação é moralidade, e a forma específica dessa moralidade (isto é, da pura razão prática) em relação à religião é chamada por Kant teologia. E é justamente através de uma redefinição do conceito específico de “teologia” que Kant abrirá a dupla passagem do conhecimento (isto é, essencialmente da ciência da natureza) à moral e, juntamente da moral, à religião. Com a única diferença que, enquanto a primeira passagem é irreversível (a moral para Kant não nos faz conhecer nada, apenas nos coloca diante do imperativo categórico do puro dever, e o “tu deves!” nunca nos levará a formular qualquer espécie de “eu sei”); a segunda passagem, ao contrário, tem uma espécie de reversibilidade ou circularidade: a moral conduz à religião, mas a religião não pode senão conduzir à moral. Mas vejamos um pouco mais de perto essa questão.
Como ponto de referência textual, escolhi as Lições de Filosofia da Religião (Vorlesungen über die philosophische Religionslehere), dadas por Kant no ano acadêmico de 1783/84 (mesmo que publicadas apenas em 1817, postumamente), que se apresentam como momento crucial, mesmo em nível cronológico, posicionadas como estão entre a primeira e a segunda Críticas, justamente na passagem entre a razão pura teorética e a razão pura prática.
Mas poderíamos recordar que essas Lições coincidem significativamente com outros dois escritos: os Prolegômenos a toda futura metafísica que se apresentar como ciência, de 1783, e a Resposta à pergunta: o que é Iluminismo?, publicada em 1784.
Vale a pena recordar que os Prolegômenos teorizam a nova metafísica crítico-transcendental como uma ciência que está rigorosamente nos limiares da razão, e que não só pode determinar o que está dentro desses limites - vale dizer, o objeto do conhecimento científico, isto é, o “fenômeno” -, mas pode e deve também pensar e constituir aquilo que está além desses limites, e que, mesmo não sendo objeto da ciência, é objeto da moral, e portanto permanece sempre imanente à razão pura. Dentro da única razão pura, então, o dado sensível ou fenomênico é objeto do intelecto, enquanto o ser último das coisas (a coisa em si) torna-se somente objeto da razão, sendo, enquanto tal, chamado precisamente de “mundo noumênico”.
O texto sobre o Iluminismo, por sua vez, propunha o projeto de uma “saída” da razão do “estado de menoridade” que tinha sua origem na própria razão, no momento em que ela assumiu como guia um fator ou uma autoridade diferente de si. Mais especificamente, projetava “o ponto principal do Iluminismo”, vale dizer, a emancipação do uso público da razão de qualquer dependência ou qualquer relação com algo além de si mesma, “principalmente com coisas da religião”.
(Além disso, as Lições coincidem cronologicamente com alguns escritos de antropologia e filosofia da história - que em algumas passagens deixam um eco explícito -, e podem ser lidas como um passo em direção aos Fundamentos da metafísica dos costumes, que Kant publicará em 1785.)
Dentro de um único horizonte crítico, a abordagem que as Lições propõem do nexo religião-moral é um pouco diferente da que encontramos na obra sobre a Religião nos limites da pura razão, que virá a ser publicada dez anos depois. Nesta última, Kant considerará a religião em chave majoritariamente histórico-antropológica, como uma hermenêutica moral da dogmática cristã: pensemos na célebre interpretação do Verbo divino como a idéia personificada do bom princípio, isto é, como ideal da perfeição moral; ou na interpretação da fé histórica como mero veículo da fé verdadeira, isto é, da fé racional pura, que como veículo é destinado a desaparecer; assim como a Igreja visível, entendida como corpo de Cristo, deve transformar-se numa comunidade ética universal, numa “igreja invisível” constituída pela pura intenção moral dos corações.
Nas Lições, ao contrário, Kant coloca o problema religioso diretamente como problema teológico. A questão é bastante interessante para compreender a estratégia hermenêutica kantiana, também para compreender de maneira mais atenta às conseqüências que tudo isso terá na interpretação moral do cristianismo. O fato de que este último venha a ser completamente esvaziado de seu conteúdo histórico, e por isso mesmo da sua origem divina, encontra seu pressuposto “natural” numa bem precisa interpretação da abertura cognitiva e da determinação ética da razão humana. O que me parece estar em jogo aqui não é tanto uma compreensão ou incompreensão da religião e da fé cristã, mas, sobretudo, uma compreensão ou incompreensão que a razão humana tem da sua própria natureza.
Normalmente se espera que a teologia seja entendida como uma busca por assim dizer de segundo grau, dependente da preliminar manifestação de seu próprio objeto, também somente no seu nível puramente natural (pensemos, por exemplo, no “dado” da realidade criada que remete a um criador ou mesmo somente, como em Descartes, à nossa idéia inata de perfeição, entendida também esta como um “dado” presente em nós, que remete inequivocamente à existência do ser perfeito). Naturalmente, a “secundariedade” da teologia resulta, pois, ainda mais evidente no caso de uma busca que tome os movimentos do dado revelado, isto é, de um evento histórico espaço-temporal. Em Kant, no entanto, é a teologia que constitui a base sobre a qual pensar a religião; ou, dito em outros termos, é a teologia que suscita a religião e não vice-versa.
O ponto de partida aqui é então a determinação precisa da teologia, ou melhor, do caráter teológico da investigação racional, e ainda mais radicalmente a dimensão teológica da própria razão. Não é por acaso que - obrigado como todos os professores da época a dar aulas seguindo e comentando os manuais sistemáticos - Kant tenha-se deparado com esse problema lendo com seus alunos dois textos pertencentes à chamada “metafísica escolástica” (Schulmetaphysik) ou escola racionalista de origem leibniziana, a Preparação à teologia natural (Vorbereitung zur natürlichen Theologie, 1781) de Johann August Eberhard, e sobretudo a célebre Metaphysica (1739) de Alexander Gottlieb Baumgarten.
Sem nem ao menos acenar aos complexos problemas levantados pela leitura crítica kantiana desses dois manuais racionalistas (ou, para usar um termo do próprio Kant, “dogmáticos”), limito-me simplesmente a citar as definições que esses dois autores dão da teologia natural. 1) Para Eberhard, a preparação à teologia natural é “a ciência das regras para a formação do mais perfeito conhecimento de Deus no intelecto humano e para sua comunicação”; enquanto que 2) para Baumgarten (autor seguramente de maior importância aos olhos de Kant), “a teologia natural é a ciência de Deus, na medida em que pode ser conhecido sem a fé” (theologia naturales est scientia de deo, quatenus sine fede cognosci potest: § 800).
Também para Kant a teologia deve ser independente da fé, mas não certamente porque ela diga respeito ao conhecimento racional de Deus, mas porque considera exclusivamente a aplicação do conceito de Deus à moralidade. Eu não sei e nunca poderei saber quem é Deus e se de fato ele existe; mas devo postulá-lo e devo crer por fé moral nele. Como é conhecido, de fato, já na primeira Crítica Kant havia negado absolutamente a possibilidade de determinar o ser como um predicado (já que “ser” ou “existir” - Dasein - é a simples posição de alguma coisa, determinável somente através da forma de representação transcendental do eu penso: o espaço, o tempo, as categorias), e em conseqüência havia concluído que Deus permanece absolutamente indeterminável, exatamente como uma coisa que não se dá, não se coloca sensivelmente.
Além disso, ainda na “Dialética transcendental”, dentro da Crítica da razão pura, Kant propõe um uso diferente da teologia especulativa, no qual a existência de Deus desenvolve, por assim dizer, uma nova função, a de ser uma hipótese racional necessária. Neste caso, o conceito de Deus - como ideal transcendental - não se refere a um objeto dado na experiência, mas, num sentido que Kant chama “regulativo”, se refere apenas ao uso mesmo do intelecto em geral. Nesse sentido “hipotético”, o conceito de Deus possui apenas um valor negativo, no sentido de que nunca poderá ser conhecido objetivamente, mas projeta além da experiência uma unidade puramente ideal (nunca efetivamente real), como perspectiva ideal de unificação de todas as regras do intelecto. E todavia, conclui Kant, “se nunca sob outra relação, a não ser, digamos, sob a prática, o pressuposto de um ser supremo e omnisuficiente, como suma inteligência [= Deus], afirmasse sua validade sem contradição, seria então da maior importância determinar exatamente, do lado transcendental [= do lado teorético], esse conceito como o conceito de um ser necessário e realíssimo”. E isso exatamente para subtrair o conceito de Deus às injustificadas críticas dos ateus (que crêem ilusoriamente poder demonstrar que Deus não existe) ou dos deístas (que admitem um Deus como causa do mundo mas não como ser inteligente e livre, isto é, “moral”), mas ao mesmo tempo para purificá-lo de qualquer tentação antropomórfica (a qual seria aos olhos de Kant a pretensão do cristianismo), a favor de uma nova forma de teísmo: o theismus moralis.
Pois então, nas Lições de 1783/84, e mais precisamente na parte dedicada à “Teologia transcendental”, Kant retoma esse conceito “mínimo” de Deus como ente que se pode pensar, sim, mas não como existente (e nem como não existente), simplesmente como não contraditório em senso lógico, pondo esse conceito diretamente a serviço da “Teologia moral”.
Nessa posição kantiana, então, podemos ver em ação à passagem da ontoteologia à teologia moral, entendendo por ontoteologia não só, em sentido restrito, aquela que trata da dita “prova ontológica” para demonstrar a existência de Deus, que o próprio Kant chamou primeiramente dessa maneira, distinguindo-a da prova cosmológica e da físico-teológica (ainda que para ele a primeira seja tacitamente pressuposta pelas outras duas), mas a ontoteologia como consideração da teologia racional como realização metafísica da ontologia moderna. A teologia não tem mais um valor teorético-demonstrativo, mas hipotético-propedêutico: hipotético no sentido de uma inteligibilidade puramente ideal, entendendo por “ideal” o puramente subjetivo, isto é, do qual não se poderá nunca fazer experiência; e propedêutico em vista da auto-fundação da teologia moral, a qual somente pode fundar e ao mesmo tempo conduzir à realização a possibilidade ideal da ontoteologia.
Com isso chegamos ao fundo da questão, vale dizer, ao estatuto próprio da teologia. Pareceria um tema secundário nas preocupações “críticas” de Kant, entretanto, a bem ver, ele se reveste de uma importância talvez oculta, mas de absoluto relevo para compreender que a “religião” kantiana vive exatamente nesse cruzamento da possibilidade, ou melhor, da impossibilidade especulativa e necessidade moral.
No início das Lições, Kant se pergunta: “O que é a teologia?”. E responde: “O sistema do nosso conhecimento do ser supremo”. Mas, se “sistema é aquilo em que domina em geral a idéia do todo”, então será necessário precisar que “o sistema do conhecimento de Deus não significa o conjunto de todos os possíveis conhecimentos de Deus, mas aquilo que de Deus é encontrado pela razão humana”. Se a primeira coisa nos é impossível, até aonde podemos alcançar a segunda? A solução crítica de Kant consiste em referir a capacidade gnoseológica da teologia não mais ao seu objeto - o qual, como já foi dito, não pode ser dado - mas à sua própria forma cognoscitiva interna. A pergunta será, então: “Em que sentido o nosso conhecimento de Deus, ou a teologia da nossa razão possuem algum valor? [...] Temos nós um conhecimento do objeto que seja adequado ao valor do objeto em si?”. A resposta é possível somente na passagem - numa espécie de mutação genética - do plano teorético para o prático: “Na moral, vemos que não simplesmente o objeto tem um valor, mas que também o seu conhecimento tem em si um valor”. A nossa teologia não pode vangloriar-se por isso, por poder objetivar o sumo valor, já que no confronto com este último ela permanece “apenas uma sombra”.
Mas então, dentro dessa sombra, “a verdadeira pergunta será: o nosso conhecimento possui, apesar disso, sempre um valor?”. A resposta de Kant é clara: “Sim! Enquanto se relaciona à religião, porque a religião não é nada mais do que a aplicação da teologia à moralidade, isto é, aos bons princípios, e uma conduta agradável ao supremo ser”. Na medida em que essa religião - como religião natural, substrato e critério de medida de cada religião, inclusive a revelada - constitui o suporte (die Stütze) e a solidez (Festigkeit) de todo princípio moral, a teologia possui um seu intrínseco valor “enquanto constitui a hipótese de cada religião e dá peso (Gewicht) a todos os nossos conceitos de virtude e retidão”. A idéia de Deus constitui um tipo de curva da trajetória da razão, a qual põe em prática a sua intencionalidade teológica na pura adesão ao dever moral, o único “absoluto” que lhe é dado plenamente, ou melhor: que a razão dá a si mesma.
Assim: 1) a religião é que determinará a medida e o estatuto da teologia, relacionando-a com a moralidade. Mas, 2) circularmente, será a teologia, na sua conotação de necessidade moral, que nos conduzirá necessariamente à religião.
1) Em relação à única medida possível da teologia, a pergunta de Kant soa: “Qual é o minimum de teologia, enquanto necessário à religião? Qual é o menor conhecimento útil de Deus que nos possa lançar a acreditar num Deus e a confirmar isso na nossa conduta de vida? Qual é o menor e mais restrito conceito de teologia? O seguinte: existe a necessidade de uma religião, e o conceito de Deus é suficiente para uma religião natural. Mas isto é verdade só se eu reconheço que meu conceito de Deus é possível, e que ele não contradiz as leis do intelecto”. Estamos aqui diante de uma verdadeira reductio ad minimum theologicum.
2) Mas, por sua vez, “a possibilidade do conceito de Deus”, o seu reconhecimento especulativo - talvez admitido pelo deísta mas recusado pelo ateu - pede um fundamento necessário e incontestável, enquanto, como possibilidade, “se baseia na moralidade”: aquilo do qual ninguém pode duvidar. E isso porque “de outra maneira a moralidade não teria nenhum movente. Por esse motivo a simples possibilidade de um tal ser [e essa é a possibilidade especulativa fundada como movente moral] é suficiente para que a religião venha a ser produzida no homem”. A religião é, então, algo que se alcança; digamos assim: ela constitui um uso peculiar da própria razão, na qual o que é apenas possível (no sentido teorético) recebe sua realidade necessária no imperativo moral da razão (pura) prática.
Vamos esclarecer brevemente esse conceito de “movente” (Triebfeder). Ele exprime a mola que lança subjetivamente em movimento a vontade racional, vale dizer, que determina subjetivamente a vontade. Ele é apresentado nas Lições por Kant para resolver “a contradição entre o curso da natureza e a moralidade”. Trata-se do que a Crítica da razão prática chamará a “antinomia da razão prática”: “ou o desejo da felicidade deve ser a causa que move (Bewegursache) em direção às máximas da virtude, ou a máxima da virtude deve ser a causa eficiente da felicidade”. Só que “a primeira alternativa é absolutamente impossível, porque não se pode ser um homem moral pelo desejo de felicidade, pois nesse caso a moral não seria mais autônoma mas heterônoma”; enquanto “a segunda é impossível [...] no mundo”, e portanto não é “falsa absolutamente”, como a primeira, mas apenas em relação à causalidade do mundo sensível.
Pois então (e aqui voltamos ao texto das Lições), se não se postulasse a existência de “um ser que governe o mundo segundo a razão e as leis morais”, e que tenha estabelecido no curso futuro do mundo uma participação na felicidade por parte da criatura que dela fosse digna, “todos os deveres subjetivamente necessários [...] perderiam sua realidade objetiva”. Deus é, então, um “postulado” necessário em vista da realidade objetiva da lei moral.
Mas, aqui, o que quer dizer “realidade objetiva” e em que sentido é contraposta ao dever “subjetivo”? Claramente, não pode significar o efeito natural da virtude, isto é, a felicidade tout court, mas o tornar-se “dignos da felicidade”. Em outros termos, realidade objetiva e dever subjetivo estão ambos a priori. Se então os deveres me são assinalados de maneira incontestável pela minha razão, se faltasse Deus - diz Kant - faltar-me-ia um movente moral, porque caso contrário “eu deveria ser ou um delirante [reputando a moral como uma quimera irrealizável] ou um criminoso”. Mas por sua vez isso se explica pelo fato de que, enquanto “a felicidade é um sistema de fins contingentes”, justamente porque cada um participa dela somente na medida do seu mérito, a “moralidade, ao contrário, é o sistema absolutamente necessário de todos os fins, e justamente de acordo com a idéia de um sistema de todos os fins está o fundamento da moralidade de uma ação”.
Deus, então, é o movente moral do dever, mas enquanto ele “é por assim dizer a própria lei moral, mas pensada como personificada”. E não é por acaso que na passagem dessas Lições à Crítica da razão prática acontecerá uma ulterior formalização do conceito de movente, o qual, embora sendo um impulso subjetivo da vontade, será identificado com o motivo objetivo da própria lei moral, reconhecido unicamente no “respeito da lei moral”.
Como se diz num outro trecho das Lições, “a teologia moral, além da convincente certeza da existência de Deus, que adquirimos por seu intermédio, nos proporciona ao mesmo tempo a grande vantagem de sermos conduzidos à religião, ligando estritamente juntos o pensamento que temos de Deus com a nossa moralidade, e nos tornando desse modo também homens melhores”.
A teologia moral (segunda parte das Lições) é, então, aquela que torna absolutamente necessária, em sentido prático, a religião. Também aqui se assumem os predicados racionalistas de Baumgarten - por exemplo: a santidade, a bondade e a justiça de Deus -, mas aí se reinterpretam como dimensões postulatórias da razão prática: “A religião nos leva para Deus como a um santo legislador, a nossa inclinação à felicidade deseja nele um bom governador do mundo e a nossa consciência o coloca diante dos nossos olhos como o justo juiz”. Nessa perspectiva, a santidade de Deus será interpretada como a auto-obrigação da razão prática; a bondade divina será entendida (fora de qualquer gratuidade ou misericórdia) como a proporcionalidade da felicidade ao mérito do sujeito moral (isto é, à observância da lei moral); a justiça de Deus, enfim, significará a limitação do bem na distribuição da felicidade, de modo que será feliz apenas e exclusivamente quem for moralmente digno dela.
Não me é possível acompanhar nesta oportunidade o desenvolvimento dessa idéia kantiana da teologia moral. Limito-me simplesmente a sublinhar a dimensão de necessidade que a religião assume no meio dela. Num trecho das Lições, dedicado à “Natureza e a certeza da fé moral”, Kant coloca a questão comparando a moral à matemática. Em ambos os casos nós temos de lidar com “postulados necessários”, os quais não constituem meros pressupostos subjetivos (como as hipóteses especulativas), mas pressupostos que se baseiam em fundamentos objetivos, respectivamente teoréticos na matemática e práticos na moral. Por isso, a evidência dos imperativos morais é a mesma evidência dos axiomas matemáticos, e assim como ao negar estes últimos se incorreria num absurdum logicum (isto é, numa insensatez de juízo), ao negar a fé moral se cairia num absurdum practicum, que se dá “quando se mostra que alguém que queira negar algo deva ser um celerado (Bösewicht)”.
Nas Lições (analogamente às três Críticas e à Religion), Kant diz que moralidade e religião são “ligadas do modo mais estreito”, diferenciando-se apenas pelo fato de que na moralidade os deveres “são praticados como princípios fundamentais de todo ser racional, e pelo fato de que este último deve agir como membro de um sistema universal de fins”, enquanto na religião “esses deveres são vistos como mandamentos de uma suprema vontade santa, pois que, no fundo, as leis da moralidade são as únicas que estão de acordo com a idéia de uma suprema perfeição”. Dito em outros termos, usados aqui pelo próprio Kant, a conexão circular e necessária de moralidade e religião, além de ser um dado fundamental e estrutural da razão pura, é o reconhecimento progressivo de “um plano universal segundo o qual, a despeito de todos os abusos da liberdade por parte dos homens, alcançará no final o mais alto grau de perfeição do gênero humano”. A religião, para Kant - como se sabe -, nunca pode constituir-se historicamente, justamente por causa da sua pureza (deve, melhor ainda, libertar progressivamente o seu núcleo racional do invólucro histórico-revelado, inevitavelmente estatutário); e todavia o seu destino puramente racional, vale dizer, teológico-moral, se realiza somente na perspectiva de progresso histórico. A religião como uma filosofia da história.
A contraprova dessa solução é representada pelo tratamento do problema do mal. O problema é colocado como o problema leibniziano clássico da teodicéia, e de fato Kant o apresenta como resposta às objeções relativas aos atributos morais de Deus: santidade, bondade e justiça. Tendo em conta que quando Kant fala desses atributos considera-os já - diferentemente da sanctitas, bonitas e iustitia de Baumgarten (§ 906) - como sinais ideais da própria moralidade (e por isto perfeições de Deus enquanto Deus é entendido como realização objetiva da moralidade), pode-se compreender melhor a resposta histórico-fenomenológica e não simplesmente metafísica que nas Lições Kant dá ao problema - contra a santidade: qual é a origem do mal moral (das Böse)? Contra a bondade: de onde vem o mal físico (das Übel) no mundo? Contra a justiça: de onde a distribuição desigual do bem e do mal no mundo, em contraste com o mundo?
O otimismo metafísico e o pessimismo maniqueísta (mas, eu acrescentaria, também o realismo cristão) não são soluções percorríveis para Kant. A solução do problema será especificada pela dinâmica da auto-realização moral da razão e identificada com ela. O homem é o único ser que tem o poder de deduzir e “elaborar por si mesmo a própria perfeição” (cf. Idéias de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, 1784). Por isso Deus o criou livre, dando-lhe talentos e capacidades para desenvolver, mas também instintos animais para dominar. Por isso o homem, como disposição, “era certamente perfeito segundo a sua natureza”, ainda que “tosco”. De maneira que “à prova da sua liberdade, o homem cai”. De tosco mas perfeito animal torna-se um ser livre e tolo, e a perfeição deverá projetá-lo num progressivo e longo avanço até a idéia do perfeito ser moral. Nessa perspectiva, o mal no mundo é visto como “o incompleto desenvolvimento da semente para o bem”: nada de originário, portanto, mas “uma mera negação”, uma “limitação do bem”, a sua não-plena realização a partir de uma condição de rusticidade.
A “origem do mal” é, então, pensada como “o primeiro desenvolvimento da nossa razão em direção ao bem”. Nesse sentido, ele não é “inevitável”; mais ainda, Deus quer a sua eliminação “por meio do onipotente (allgewaltige) desenvolvimento da semente do bem”. Se essa semente é onipotente, então o mal será só uma “conseqüência colateral” (Nebenfolge) do bem. E se a razão (que é propriamente a semente do bem) no início é usada pelo homem a serviço do instinto, ao final (mediante a lei moral, em conexão com a qual surge o pecado como resíduo da liberdade) o homem chega a desenvolver a razão “por si mesma” (um ihrer selbst willen). Conseqüentemente, a solução será então que: “quando, no final o homem se desenvolveu totalmente, então o mal cessa por si mesmo”.
Deus é, portanto, justificado em relação ao mal, porque a totalidade da espécie do gênero humano, “no final alcançará a perfeição”, “e deverá livrar-se e separar-se dos seus instintos por meio (e segundo a capacidade: vermöge) da própria natureza. De tal desenvolvimento resultarão também alguns passos em falso e surgirão alguns vícios, mas a seu tempo tudo deverá conseguir um resultado glorioso”.
Sabemos que, dez anos depois, na Religion, Kant diz algo diferente: “Esse mal é radical porque corrompe o fundamento de todas as máximas e, ao mesmo tempo, como tendência natural, não pode ser extirpado mediante as forças humanas. [...] Não obstante, é necessário que essa tendência possa ser vencida, porque ela se manifesta no homem com ser livre nas suas ações”. A dialética entre a impossibilidade de extirpar o mal e a necessidade de vencê-lo atinge justamente o sentido kantiano da radicalidade do mal: “Inato pela natureza (sendo, nada menos, produzido para nós por nós mesmos)”, e por isso presumivelmente dominável também (mas quando?) por nós mesmos. É muito interessante que alguns contemporâneos de Kant, como Goethe e Schiller, pensassem que o verdadeiro Kant fosse aquele das Lições e não o da obra sobre a religião, pois nesta última ele provavelmente ficou condicionado pela censura prussiana a admitir o pecado original.
Segundo as Lições, a possibilidade de vencer o mal deve necessariamente realizar-se. Segundo a Religion, essa realização permanece uma necessidade radicalmente problemática, ou melhor, aporética com respeito à persistência do mal. Em ambos os casos, uma coisa fica, seja como for, consolidada: que o Deus do qual Kant fala não pode, ele mesmo, salvar gratuitamente esse mal diante da liberdade e da consciência do homem (porque “não se consegue absolutamente entender de que modo Deus, sendo dada a nossa liberdade, concorra [isto é, possa intervir e participar] às nossas ações”). Ou melhor, mesmo que o pudesse (e não podemos negá-lo com razões evidentes), ficaria sempre incompreensível à minha razão “de que modo algo que nela não se encontre já, mas ultrapasse cada razão, possa porém ser necessário à humanidade inteira para o seu bem estar”. Volta portanto ainda o problema da necessidade, e volta como o sentido profundo daqueles que Kant nas Lições chama “os mistérios da religião racional”. Pode Deus tornar feliz um homem que não seja digno de tudo? Para nós, que o pensamos como juiz, é impossível compreendê-lo, e em conseqüência nos entregarmos à sua bondade. Basta-nos aspirar - nós mesmos - a sermos dignos disso. Ou, como Kant escreverá na Religion, “não é essencial, nem conseqüentemente necessário, que cada um saiba o que Deus faz ou tenha feito para a sua salvação; mas certamente é necessário que cada um saiba aquilo que ele mesmo deve fazer para ser merecedor desta assistência”.
Aqui, diante do mistério, e sobretudo diante de uma bondade não mais identificada com a justiça (como havia proposto anteriormente Kant, nas Lições), e por isso não mais entendida como necessária, segundo Kant “é o profundo silêncio da razão”. Resta porém o problema de que esse silêncio possa ser apenas a recusa de falar daquilo que não se sabe com certeza, e então deixar o espaço livre para uma outra possibilidade da religião, não mais totalmente “moralizada” a priori no interior da razão; ou não é, ao contrário, o não-poder (e o não-dever) ouvir nada além do que o puro comando da razão, na forma auto-referencial da lei moral.
Que é, pois, o problema, muito debatido em todo o contexto do Iluminismo, e que Kant apresentará como prova de fogo decisiva de toda a filosofia “crítica”, o problema da relação entre pura religião racional e fé histórico-revelada, mais especificamente entre religião natural e cristianismo.
Nesse limiar eu paro, não apenas por falta de tempo ou pelo fato de que é seguramente mais conhecida a concepção e ao mesmo tempo a “redução” moralista da “religião cristã” feita por Kant, que a chama, precisamente, a única religião moral, sustentando pois com toda coerência que “o princípio cristão da moral como tal não é teológico (e portanto heterônomo), mas é a autonomia da razão pura prática por si mesma” (Crítica da razão prática). O motivo mais essencial pertence à natureza mesma do objeto que hoje enfrentamos. De fato, exatamente diante da interpretação kantiana da religião, como estrutura a priori e de uso imanente da razão (e sem levar em conta o uso que ele mesmo faz, para seus fins, da “matéria” histórica da tradição cristã), pode-se perguntar se realmente o cristianismo, por aquilo que diz de si mesmo, pode ainda ser legitimamente chamado de “religião”. |