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Dualismo antropológico e sexualidade
Jarosław Merecki
 

Propuseram-me que analisasse a relação entre o chamado dualismo antropológico e o modo como se entende a sexualidade. Creio que, em última análise, o problema se reduza à compreensão da relação da pessoa humana com seu corpo, uma vez que a sexualidade nada mais é que uma das expressões desse corpo. Em outros termos, poderíamos também falar da relação entre a liberdade (uma das expressões — ou, talvez, a expressão por excelência — da personalidade do homem) e a natureza humana (o corpo enquanto aquilo que a liberdade encontra como dado). Em outras palavras, ainda, podemos dizer que o corpo é aquela parte da natureza (entendida no sentido mais geral) que está mais próxima da pessoa. O problema, no entanto, consiste em determinar o grau dessa proximidade e — do ponto de vista do agir humano — em verificar o seu valor moral.

A pessoa humana — tal como a conhecemos neste mundo — existe sempre no corpo. Esse dado pode ser reconhecido como ponto pacífico independentemente da interpretação que se tenha da relação entre a pessoa e seu corpo: ele pode ser admitido tanto por dualistas quanto por materialistas ou representantes de outras posições a respeito da relação entre pessoa (alma, espírito, mente) e corpo (1). Da mesma maneira, é também óbvio que o corpo é determinado sexualmente, um fato que o homem compartilha com a maioria dos animais: o corpo é sempre masculino ou feminino. O fato de ser masculino ou feminino não é certamente uma característica acidental do corpo; esse fato o determina essencialmente, e tem profunda influência sobre a maneira como o homem vive sua corporeidade.

Mas é justamente aqui que aparece a pergunta que nos interessa nesta nossa reflexão: de que forma e em que grau a estrutura sexuada do corpo pode constituir a norma do nosso agir? Podemos atribuir ao corpo um significado que seria moralmente vinculativo para a nossa liberdade? Ou, ao contrário, a estrutura sexual do corpo, mesmo sendo dada, é de tal forma “aberta” do ponto de vista moral, que nos permite determinarmos segundo o nosso arbítrio o sentido que ela tem para nós? Em outras palavras: é a liberdade que decide sobre o sentido moral do corpo?

Naturalmente, a resposta a essas perguntas depende da posição que se atribui ao corpo na estrutura da pessoa humana. Por isso, gostaria de dividir minha reflexão em três passagens: na primeira, distingo duas formas de dualismo antropológico e procuro mostrar suas conseqüências; na segunda, analiso brevemente nossa experiência do corpo, procurando mostrar o lugar do corpo na estrutura da pessoa humana; na terceira passagem, procuro identificar algumas implicações antropológicas e éticas da determinação sexual do corpo.

1. Dois dualismos

Geralmente se admite que os termos do debate moderno sobre a relação entre a mente e o corpo foram estabelecidos por Descartes. Foi realmente Descartes quem propôs a solução que entrou para a história do pensamento moderno sob o nome de dualismo. De fato, para Descartes o homem é composto dessas duas substâncias, que, ontologicamente, são independentes entre si. Uma é identificada com o pensamento, com a consciência de si, e, por isso, é chamada res cogitans (coisa pensante); já a outra é constituída por nosso corpo material existente no espaço, e por isso chamada res extensa (coisa extensa). Em sua tentativa de dar à filosofia uma fundação nova e evidente, Descartes a encontra no pensamento do sujeito, que constitui uma esfera imune ao exame da dúvida sistemática. Posso duvidar de tudo, mas mesmo na dúvida mais radical uma coisa permanece certa: o fato de que estou pensando. A substância pensante é, portanto, identificada com aquilo que é especificamente humano, ou seja, com a alma espiritual (2).

Qual é a relação entre estas duas substâncias: a substância espiritual e a substância material? Na realidade, Descartes quer evitar a relação absolutamente extrínseca entre a alma e o corpo. Assim, em sua Meditação Sexta, escreve: “Não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas [...] componho com ele um único todo” (3). Mas foi justamente na visão de Descartes que essa unidade se tornou contestável. Como é que duas substâncias totalmente diferentes podem interagir entre si? O próprio Descartes teorizava que a interação delas se dava no cérebro, o que continua a ser muito problemático, uma vez que o cérebro é a parte material do corpo. Seja como for, no contexto que nos interessa hoje o importante é o fato de que, partindo da coisa pensante, Descartes tem de reconstruir a unidade do homem, mas — segundo muitos intérpretes de seu pensamento — não consegue. Seu dualismo é ontológico.

Mas não paramos por aqui. O próprio problema da relação entre a alma e o corpo não nasceu na modernidade. Ele já havia sido proposto pela filosofia antiga, na qual encontramos também diversas soluções. A solução que à primeira vista guarda muito semelhança com o dualismo ontológico de Descartes é a de Platão. Segundo Platão, a alma vive no corpo numa espécie de prisão da qual só se separa depois da morte (4). No entanto, entre a concepção de Platão e a de Descartes existe uma diferença clara. Enquanto, para Platão, o corpo é um organismo vivificado pela alma “nutritiva”, para Descartes, o corpo é um mero mecanismo (de forma tal que os animais não são diferentes das máquinas). Descartes abandona a doutrina tradicional da alma como princípio da vida, a doutrina que encontrou sua formulação mais completa em Aristóteles. Para Aristóteles, a alma e o corpo estão ligados como forma e matéria, de modo que não pode existir um corpo humano que não seja organizado pela alma. Já para Descartes, a vida se torna um processo mecânico que não precisa da alma. A alma deixa de ser a forma do corpo, pois, na visão filosófica de Descartes, as formas não existem. Ela perde, assim, a sua função própria e se torna — como depois dirá justamente G. Ryle em sua crítica ao dualismo cartesiano — “o espectro na máquina” (5). Ainda que Aristóteles fale do corpo como “um certo instrumento natural” dado à alma, para ele esse instrumento nunca se torna algo meramente material e externo (como outros instrumentos que o homem pode usar), pois o corpo “tem em si mesmo o princípio do movimento e da imobilidade” (6). Para o homem (como para todos os seres vivos), existir no corpo não é algo acidental (como parecia a Platão), mas essencial, de modo tal que Aristóteles pode dizer que a vida é o próprio ser de um ser vivo — na formulação latina que se tornou clássica: vivere viventibus esse (7).

Quais são as conseqüências do dualismo ontológico para a moral? Se o que é realmente humano é identificado com a alma em sua acepção cartesiana, fatalmente o corpo se torna algo exterior à verdadeira humanidade do homem. Seu estatuto ontológico é o de uma máquina privada de um princípio vital. Assim concebido, facilmente pode ser tratado como um instrumento (ou seja, objeto) cujo sentido humano é determinado pela alma (ou seja, sujeito). Ainda que eu viva no corpo (Descartes admite isto sem dificuldades), não sou o corpo, mas o possuo. O corpo enquanto tal não fala uma linguagem autenticamente humana. Naturalmente, tudo isso tem conseqüências indiretas sobre a compreensão da sexualidade. Em sua dimensão material, ela pertence ao corpo e partilha de sua sorte. Ela pode servir aos fins da procriação, pode ser “usada” como instrumento de prazer, mas não contém em si um sentido moralmente vinculativo, porque autenticamente humano. A sexualidade torna-se também mero instrumento.

Mas diversas críticas foram dirigidas ao dualismo ontológico de tipo cartesiano. Em épocas mais recentes, ele foi criticado especialmente no âmbito da filosofia analítica, que parte da análise da linguagem, e da fenomenologia, que parte da descrição da experiência vivida do homem. Não é o caso, aqui, de arrolar uma série de objeções feitas ao dualismo cartesiano. Em nosso contexto, basta-nos constatar que em amplas áreas da filosofia moderna o dualismo ontológico de cunho cartesiano parece superado. Pode-se mesmo falar de um renovado interesse pela encarnação do homem. Por exemplo, nas livrarias será muito fácil encontrar diversos livros dedicados à linguagem do corpo, cujos autores explicam como os gestos do corpo exprimem os estados da alma.

Nessa situação, parece curioso o fato de que em muitos casos a superação do dualismo ontológico não conduz à superação do dualismo na esfera moral. Resta o que eu gostaria de chamar dualismo axiológico. Especialmente no campo da sexualidade, continua-se a tratar o corpo como “mudo” — por assim dizer —, não atribuindo a ele nenhuma verdade que se deva respeitar. Nesse contexto, pode ser instrutiva a crítica que se faz à moral sexual ensinada pelo Magistério da Igreja, que é tachada de biologismo, como se costuma dizer. De que se trata? A Igreja — afirmam os críticos —, em sua moral sexual, especialmente a que é exposta na encíclica Humanae vitae, quer que o homem se submeta às leis da natureza (no caso da encíclica Humanae vitae, seriam as leis que governam a procriação). Mas o homem, enquanto pessoa — um sujeito racional e livre —, não deve identificar as leis biológicas com as normas morais: uma identificação desse tipo constituiria justamente o caso do biologismo (8). O próprio homem é quem deve decidir sobre o sentido humano dessas leis. No entanto, há quem tenha notado — na nossa opinião, corretamente — que nessa crítica muitas vezes se esconde um outro tipo de biologismo (9). Fazendo com que o corpo não tenha voz no campo moral, ele não é tratado como uma realidade apenas biológica, privada do sentido especificamente humano? Se é assim, não nos encontramos numa espécie de “vazio axiológico”? A razão, obrigatoriamente, deve conferir ao corpo o sentido moralmente relevante, dado que não o pode encontrar no próprio corpo. Resumindo, podemos dizer que a essência do dualismo antropológico contemporâneo pode ser descrita da seguinte forma: a pessoa é vista cada vez mais como um ser espiritual, enquanto seu corpo (e suas expressões, como a sexualidade) é visto apenas como um bem material e instrumental, como uma coisa que se pode usar para o prazer ou para proveito próprio ou alheio. Como conseqüência no campo da ética sexual, a razão deve se tornar axiologicamente “criativa”, pois não encontra aí nenhuma verdade que a vincule.

Por outro lado, não podemos esquecer que a razão, por sua natureza, é receptiva. Quando lhe é negada a possibilidade de “ler” a verdade inscrita na dimensão mais profunda do corpo (a dimensão autenticamente humana), a razão facilmente preenche esse vazio axiológico cedendo às coisas que se impõem a ela pela força de sua existência, ou seja, por meio de suas tendências naturais. Assim, muitas vezes nos vemos diante de uma verdadeira heterogênese dos fins. A tentativa de conferir ao homem a prerrogativa de decidir sobre o sentido de seu corpo (contra o biologismo de primeiro tipo) submete-o aos impulsos imediatos do corpo, não realmente assumidos e elaborados pela razão. A meu ver, esse dado constitui uma das razões do chamado pansexualismo que facilmente podemos constatar em nossa cultura atual. Insiste-se — especialmente na publicidade — na sexualidade não elaborada de alguma forma humana, apresentada apenas como puro estímulo, pois dessa forma se pode incutir nos outros os sentimentos e comportamentos que se desejam.

O problema que se impõe, nesta altura, diz respeito à natureza da razão e, ao mesmo tempo, à natureza e vocação do homem enquanto tal. O conceito de razão que dominou amplamente a cultura moderna é o conceito que M. Horkheimer chamou “razão instrumental”. É uma razão que sabe usar eficazmente os meios, mas não diz nada sobre os fins. Um autor contemporâneo assim descreve as conseqüências de semelhante concepção da razão: “Enquanto o mundo se humaniza e se torna cada vez mais acolhedor para o homem, o homem se naturaliza e faz com que seus fins derivem cada vez mais de suas paixões incontroladas e cada vez menos de uma idéia reguladora de bem” (10). Nessa concepção da razão, o corpo — tanto o meu quando o corpo da outra pessoa — só pode ser tratado como instrumento, e qualquer vínculo normativo que vier a ser proposto ao sujeito será percebido como uma limitação não justificada de sua liberdade. Mas podemos tratar o outro como simples objeto do prazer? A resposta negativa que damos quase espontaneamente a essa pergunta deveria nos induzir, porém, a reconsiderar a concepção da razão instrumental. Ao menos como hipótese, podemos partir de uma outra visão da razão, ou seja, da visão na qual — para permanecer em nossa temática — a razão não se limita a registrar as tendências naturais inscritas no corpo, mas é capaz de descobrir seu significado propriamente humano e, portanto, também vinculativo para a liberdade. Para justificar melhor essa hipótese, queremos partir de uma descrição sintética da nossa experiência do corpo.

2. Algumas notas sobre a experiência do corpo

Em nossa linguagem comum, temos duas formas de expressar nossa relação com o corpo — e ambas são rebaixadas por nossa experiência. Podemos dizer: “Eu tenho o meu corpo”, mas podemos dizer também: “Eu sou o meu corpo”. Há experiências em que vivemos nossa transcendência em relação ao nosso corpo. Por exemplo, no caso de uma doença podemos, por assim dizer, tomar distância de um órgão do nosso corpo, a ponto de — em caso de necessidade — amputar esse órgão sem diminuir de forma alguma a nossa subjetividade. De maneira geral, podemos dizer que o nosso ser pessoa consiste em possuir a natureza humana que se exprime precisamente pela nossa corporeidade (11). Parece que tanto Platão quanto Descartes insistiram justamente nessa primeira modalidade da nossa experiência do corpo, chegando — cada um a seu modo — à teoria das duas substâncias pelas quais o homem seria composto.

Do nosso ponto de vista, porém, é mais interessante a segunda modalidade da nossa relação com o corpo, que exprimimos com as palavras “Eu sou o meu corpo”. Tomemos um exemplo muito simples, mas ao mesmo tempo muito rico em significado. Quando alguém toca em minha mão, posso perguntar: “Quem tocou em minha mão”, mas posso muito bem dizer também: “Quem tocou em mim?”. Eu estou presente como pessoa em minha mão, de modo tal que, tocando-a, o outro toca ao mesmo tempo a mim mesmo enquanto pessoa. Não estamos lidando aqui com um contato entre dois corpos, mas com um verdadeiro contato interpessoal. Como pessoa, eu me exprimo em meu corpo, e há experiências nas quais eu me identifico com ele. Dessa forma, o corpo se torna uma espécie de sinal que — como todo sinal — remete àquilo que significa, torna possível o contato com a realidade a que remete — no caso em questão: o contato entre dois sujeitos. O contato, portanto, não acontece entre dois instrumentos dos quais os sujeitos se serviram, mas, por meio do corpo, dois sujeitos se encontram de modo imediato (um “eu” encontra outro “eu”). Se antes falamos da transcendência do sujeito com relação a seu corpo, aqui devemos falar de sua imanência ao corpo. Assim, a experiência que vivemos testemunha como têm fundamento tanto a tese da transcendência quanto a tese da imanência da pessoa ao corpo.

Quando pensamos numa outra pessoa, a primeira coisa que nos vem à cabeça é a imagem exterior de seu corpo. Porém, na visão que temos do corpo de uma outra pessoa, nem todas as suas partes têm o mesmo papel. Em outras palavras, a subjetividade do homem não se exprime da mesma forma por meio de todas as partes do corpo. Existe aqui uma hierarquia precisa. O primeiro lugar cabe ao encontro dos rostos e, em especial, dos olhos. Não por acaso, E. Lévinas baseou toda a sua ética no apelo que emana do rosto do homem. No encontro com o rosto, o mandamento abstrato “Não matar” torna-se um mandamento concreto: “Eu não devo matar” (12). O rosto e os olhos exprimem da maneira mais evidente a subjetividade da pessoa, de forma tal que, no encontro dos olhares, eu sei com particular evidência que não estou lidando com um objeto, do qual poderia fazer uso segundo os meus desejos, mas com um sujeito que merece ser afirmado por si mesmo. Dessa forma, o corpo humano é envolvido no ethos da pessoa, que — segundo a famosa expressão de Kant — nunca pode ser tratada como um meio, mas sempre como um fim que deve ser afirmado por si mesmo. Naturalmente, as outras partes do corpo podem também atrair nossa atenção, em especial tudo o que exprime as qualidades sexuais da pessoa do sexo oposto. Essa partes, porém, não têm o poder de tornar manifesta a transcendência da pessoa da mesma forma como o rosto e os olhos. Isso é confirmado também pelo fenômeno do pudor sexual, cuja função consiste justamente em concentrar a atenção na pessoa do outro enquanto tal, e não apenas em seus valores sexuais (13). A pessoa não quer ser usada para o prazer ou para outras finalidades do outro, mas quer se sentir afirmada em sua subjetividade própria.

Dessa forma, chegamos à dimensão moral do nosso “ser corpo”. Como já indicamos, a ética nasce da percepção da pessoa como valor em si, ou seja, um valor que deve ser afirmado por si mesmo. Esse valor incomensurável da pessoa, nós também o chamamos sua dignidade, para sublinhar desse modo o fato de que ela excede a qualquer cálculo utilitarista. Ora, se a dignidade da pessoa deve ser afirmada por si mesma, devemos dizer também que raramente ela é afirmada de modo direto, se é que podemos falar assim. A dignidade não é um valor ao lado de outros valores que pertencem à pessoa, mas é composta pelo conjunto desses valores. Assim, normalmente é afirmada de modo indireto, ou seja, por meio desses outros valores. Em termos mais concretos: sendo que a pessoa humana existe no corpo e se exprime por meio de seu corpo, sua dignidade é afirmada na afirmação de seu “ser corpo”. Não podemos, por exemplo, bater na sua cara afirmando que não quisemos ofender sua dignidade. O rosto, como sublinhou justamente E. Lévinas, é expressão concreta da dignidade pessoal. E isso diz respeito a todo o corpo: ele, enquanto tal, é o sinal da pessoa, que, portanto, só pode ser respeitada em seu corpo. A própria experiência não admite aqui nenhum dualismo do tipo: “Eu, mesmo ferindo o seu corpo, respeito a sua dignidade pessoal”.

Se a pessoa é tão estritamente ligada a seu corpo, as tendências naturais inscritas nesse corpo adquirem também um valor pessoal e, portanto, moral. Não são apenas, como se costumava dizer, inclinações naturais, mas se tornam verdadeiras inclinações pessoais. Da forma mais conspícua, esse dado pode ser ilustrado com o caso do chamado instinto de autopreservação. Ainda que o compartilhemos com seres não-pessoais, no caso do homem ele indica um bem sem o qual a pessoa não pode realizar nenhum outro bem. De fato, como já dissemos, para os seres vivos vale o princípio aristotélico: vivere viventibus esse, ou seja, o homem existe apenas enquanto vive. Por isso — do ponto de vista moral -, o respeito que a ele se deve por sua dignidade não pode deixar de incluir também o respeito por sua vida no corpo.

Esse princípio vale também para as outras dimensões do corpo. Em termos gerais, o respeito que se deve à pessoa exige também o respeito pelo corpo humano com a sua estrutura, que se torna, assim, moralmente relevante. Se é assim, podemos dizer que o corpo, com suas tendências fundamentais, torna-se uma espécie de linguagem, que permite perceber o que é realmente bom para a pessoa.

Vemos também nesse ponto como, na nossa ação concreta, a separação dualista entre o corpo e a pessoa, com sua dimensão espiritual, se torna muito problemático. Há gestos do corpo que exprimem de modo objetivo certos estados de espírito e determinados sentimentos. Naturalmente, nós podemos usá-los da maneira errada, mas isso não elimina o fato de que eles, objetivamente, têm um determinado significado. Pensemos, por exemplo, no proverbial “beijo de Judas”. O que queremos dizer quando usamos essa expressão? Nós nos referimos a um gesto que, por sua natureza, é falso, porque o beijo objetivamente exprime sentimentos de simpatia, amizade, amor, e, aqui, ao contrário, é usado como meio de traição, que de forma alguma pode ser animada por semelhantes sentimentos. Portanto, o gesto enquanto tal, nesse caso, é empregado de forma errada também do ponto de vista moral.

De maneira geral, podemos dizer que o corpo exprime objetivamente significados genuinamente humanos em situações de intimidade humana. A sexualidade, em especial, é um âmbito no qual gestos corporais, sentimentos e atitudes espirituais constituem uma unidade inseparável, de forma tal que a linguagem do corpo adquire nesse caso uma evidência especial. O marido não pode dizer à esposa que traiu: “Dei apenas meu corpo a outra mulher, mas, espiritualmente, pertenço totalmente a você”. Aqui, o dom do corpo exprime objetivamente o dom da pessoa, e não pode ser “usado” para exprimir outros significados; ou melhor: pode ser usado assim, mas esse uso será sempre errado, pois está em contradição com o significado objetivo do gesto. Queremos aprofundar esse ponto na última passagem da nossa reflexão.

3. O significado pessoal da sexualidade

Os aspectos antropológicos e éticos do significado pessoal do corpo e de sua linguagem foram objeto de uma análise filosófica e teológica aprofundada na chamada “teologia do corpo” de João Paulo II. Creio que, no contexto das nossas reflexões sobre o dualismo antropológico, a análise de João Paulo II seja particularmente sugestiva, uma vez que é justamente a tentativa de superar o dualismo tanto em sua primeira versão quanto na segunda.

Partindo da análise da solidão original do homem, João Paulo II sublinha dois de seus significados: um positivo e outro negativo. Em seu significado positivo, a solidão exprime a diversidade do homem perante todo o resto da criação. O homem, sendo um corpo entre os corpos, é ao mesmo tempo totalmente diferente: no mundo dos corpos, não encontra nenhum ser que lhe seja comensurável. O homem é estruturalmente diferente de tudo o que o cerca, e toma consciência disso — a consciência da sua alteridade constitui um dos traços da sua identidade. João Paulo II escreve: “A autoconsciência caminha pari passu com o conhecimento do mundo, de todas as criaturas visíveis, de todos os seres vivos aos quais o homem deu nome para afirmar diante deles sua diversidade. Assim, portanto, a consciência revela o homem como aquele que possui a faculdade cognoscitiva em relação ao mundo visível. Com esse conhecimento que, de certa forma, o faz sair de seu ser, o homem ao mesmo tempo se revela a si mesmo, com toda a peculiaridade de seu ser. Ele não está apenas essencial e subjetivamente sozinho. Com efeito, a solidão significa também subjetividade do homem, a qual se constitui por meio do autoconhecimento. O homem está sozinho porque é ‘diferente’ do mundo visível, do mundo dos seres vivos” (14).

Essa sua solidão, porém, tem ao mesmo tempo um outro aspecto — o aspecto da falta, da incompletitude. Sem o outro homem, com o qual entrar em diálogo e em comunhão, o homem não é capaz de encontrar-se plenamente. Diante dos outros seres criados, ele se sente só — desta vez no sentido negativo do termo. As palavras do Criador exprimem esse seu estado de espírito: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Podemos dizer que sua necessidade do outro já está inscrita na própria estrutura de seu corpo, ainda que envolva naturalmente todo o seu ser. O próprio instinto sexual, que o homem compartilha com muitos animais, tem para ele o significado pessoal: dirige-o para uma pessoa do outro sexo. Se é verdade que o homem, por sua natureza, é um ser social (de modo que só adquire as estruturas fundamentais para seu desenvolvimento por meio do contato com os outros; pensemos, por exemplo, na linguagem, que é um meio indispensável para expressar nossa racionalidade), se é verdade, portanto, que o homem, por sua natureza, é um ser social, essa verdade envolve também o seu corpo: o instinto sexual nos lembra que não é bom que o homem esteja sozinho. A unidade do homem e de sua experiência se manifesta também nesse nível. A própria sexualidade exprime o que é constitutivo para o homem enquanto tal, ou seja, o seu ser “para o outro” e o seu realizar-se “com o outro”. Por isso, João Paulo II escreve: “Justamente por meio da profundidade dessa solidão originária, o homem emerge agora na dimensão do dom recíproco, cuja expressão — que por isso mesmo é expressão de sua existência como pessoa — é o corpo humano com toda a verdade originária de sua masculinidade e feminilidade. O corpo, que exprime a feminilidade ‘para’ a masculinidade e, vice-versa, a masculinidade ‘para’ a feminilidade, manifesta a reciprocidade e a comunhão das pessoas. Exprime-a por meio do dom, como característica fundamental da existência pessoal” (15).

A categoria do dom torna-se aqui uma chave que nos permite entender a especificidade da relação entre o homem e a mulher também na dimensão corporal. João Paulo II lembra freqüentemente as palavras do Concílio Vaticano II, segundo as quais o homem é a única criatura no mundo visível que Deus quis “por si mesma” e que, por isso, não pode “encontrar-se plenamente a não ser por meio de um dom sincero de si” (Gaudium et spes, 24). Essas palavras dizem simplesmente que o homem precisa encontrar-se com o outro no amor. O amor, porém, por sua natureza, pertence a esse âmbito da vida humana que é regulado pela lei do dom. Falando de maneira geral, toda a vida social do homem pode ser dividida em dois grandes âmbitos: um que é regido pela lei do mercado, no qual o serviço deve ser devidamente remunerado, e outro que é regulado pela lei do dom, ou seja, no qual algo é dado em nome da pura gratuidade. O homem precisa de ambos os âmbitos: no primeiro, produz e adquire os meios necessários para sua vida; no segundo, descobre os fins de sua vida, que não se submetem à lei do mercado. Existem coisas que não se compram e nem se vendem. Uma delas é justamente o amor, que só pode ser doado. A outra é o corpo humano, que não pode ser vendido ou comprado, pois isso significaria que se vende ou se compra a própria pessoa humana. Também em sua dimensão sexual o corpo só pode ser doado gratuitamente, e o primeiro destinatário desse dom é a pessoa humana do outro sexo. Nas palavras de João Paulo II: “O corpo humano, com seu sexo, sua masculinidade e feminilidade, visto no próprio mistério da criação, não é apenas fonte de fecundidade e procriação, como ocorre em toda a ordem natural, mas encerra desde ‘o princípio’ o atributo ‘esponsal’, ou seja, a capacidade de exprimir o amor: esse amor, precisamente, no qual o homem-pessoa se torna dom e — mediante esse dom — realiza o próprio sentido do seu ser e existir” (16). É assim que devemos compreender também a linguagem do corpo no âmbito sexual. O ato sexual exprime justamente esse dom da pessoa — de toda a pessoa: com sua espiritualidade, emotividade e corporalidade — e não pode ser privado desse significado, que exprime o dom total de si ao outro. Ou melhor: não deve ser privado desse significado, pois a linguagem do corpo — como qualquer linguagem — pode ser também usada de maneira errada ou até abusada. Isso, porém, não a priva de seu significado objetivo.

Podemos dizer que a estrutura do corpo e — pelo que diz respeito ao nosso tema — a estrutura da sexualidade em toda a sua dimensão humana indicam ao homem as formas fundamentais de sua auto-realização. O corpo, desde o início, fala a linguagem especificamente humana, que não pode ser ignorada sem dano ao próprio homem. A compreensão da unidade do homem (corpórea, emocional e espiritual) traz consigo a descoberta da dimensão moral dos dinamismos do corpo. As normas morais, que brotam disso, não aparecem então como limitações injustificadas da liberdade humana, mas são vividas como conseqüências da compreensão do sentido da “liberdade encarnada”.

* Jarosław Merecki é docente da Universidade Lateranense e do Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família de Roma.


Notas

1. De fato, em grande parte da filosofia contemporânea, o “velho” problema da relação entre a alma e o corpo se transformou no problema da relação entre a mente e o cérebro (o chamado mind-body problem). Para ter uma apresentação sucinta e confiável das posições contemporâneas, cf. Sandro Nannini. “Mente e corpo nel dibattito contemporaneo”. In: L’anima. Seconda navigazione. Annuario di filosofia 2004. Milão, Mondatori, 2004, pp. 23-40.

2. No quadro definido por nosso tema, não podemos analisar a legitimidade dessas passagens (por exemplo, a passagem do pensamento à substância pensante). É preciso lembrar apenas que já na época de Descartes elas foram contestadas.

3. René Descartes. “Meditações”. In: Descartes. Coleção “Os Pensadores”. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo, Nova Cultural, 1996, pp. 328-329.

4. Cf. Platão. Fédon, 66 b e ss.

5. Cf. G. Ryle. Lo spirito come comportamento. Turim, Einaudi, 1955.

6. Aristóteles. De anima, II, 1 412 b 16.

7. Id., ibid., II, 4 415 b 13.

8. Cf. mais sobre a objeção do biologismo em: J. Merecki SDS. “Naturalizzazione della persona o diritto naturale?”. In: Anthropotes, nº ..., p. 311-327.

9. Cf. A. Szostek MIC. Natur – Vernunft – Freiheit, Philosophische Analyse der Konzeption “schöpferische Vernunft” in der zeitgenössischen Moraltheologie. Frankfurt am Main, Peter Lang Verlag, 1992.

10. R. Buttiglione. “Plus ratio quam vis: considerazioni sul destino dell’idea di ragione al principio del secolo XXI”. In: A. Szostek, A. M. Wierzbicki. Codzienne pytania Antygony. Lublin, Instytut Jana Pawła II KUL, 2001, p. 145.

11. Sobre a teoria da pessoa que aqui se pressupõe, cf. R. Spaemann. Personen. Versuche über den Unterschied zwischen “etwas” und “jemand”. Stuttgart, Klett-Cotta, 1996.

12. Cf., por exemplo, E. Lévinas. Totalità ed Infinito. Saggi sull’esteriorità. Milão, Jaca Book, 1996, p. 203.

13. Cf. a análise do pudor sexual em: K. Wojtyla. Amor e responsabilidade.

14. João Paulo II. Uomo e donna lo creò. Catechesi sull’amore umano. Città Nuova Editrice-Libreria Editrice Vaticana, p. 46.

15. Id., ibid., p. 75.

16. Id., ibid., p. 77.


 
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