Falando à intelectualidade francesa, em um mosteiro, Bento XVI refaz um caminho que começa no desejo do ser humano de encontrar a Deus e chega até o anúncio do cristianismo nos tempos atuais.
Encontramo-nos num lugar histórico, edificado pelos filhos de São Bernardo de Claraval, que o seu predecessor, o saudoso Cardeal Jean-Marie Lustigier, quis como centro de diálogo entre a Sabedoria cristã e as correntes culturais, intelectuais e artísticas da sociedade atual. [...] O lugar em que nos encontramos é de certa forma emblemático. De fato, está ligado à cultura monástica, pois aqui viveram jovens monges, esforçando-se por chegar a uma compreensão mais profunda da sua vocação e viver melhor a própria missão. Trata-se de uma experiência que ainda hoje tem interesse para nós, ou encontramo-nos somente num mundo já ultrapassado? Para responder, devemos refletir um pouco sobre a natureza do mesmo monaquismo ocidental. [...]
Em primeiro lugar e antes de mais nada há que dizer, com muito realismo, que não era intenção deles criar uma cultura e nem mesmo conservar uma cultura do passado. A sua motivação era bem mais elementar. O seu objetivo era: quaerere Deum, buscar Deus. Na confusão dos tempo em que nada parecia resistir, eles queriam fazer o essencial: empenhar-se por encontrar aquilo que vale e sempre permanece, encontrar a mesma Vida. Andavam à procura de Deus [...] Quaerere Deum: visto que eram cristãos, não se tratava de uma expedição num deserto sem estradas, de uma busca rumo à absoluta escuridão. O mesmo Deus tinha estabelecido sinais de percurso, mais, tinha aberto um caminho, e a tarefa consistia em achá-lo e segui-lo. Este caminho era a sua Palavra que, nos livros das Sagradas Escrituras, se abria diante dos homens. Conseqüentemente, a procura de Deus requer por exigência intrínseca, uma cultura da palavra ou, como se exprime Jean Leclercq: no monaquismo ocidental, escatologia e gramática estão intimamente conexas uma com a outra (cf. L'amour des lettres et le désir de Dieu, p. 14). O desejo de Deus, le désir de Dieu, inclui l'amour des lettres, o amor pela palavra, o penetrar em todas as suas dimensões. Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da língua, compreendê-la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir. Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua. Uma vez que a procura de Deus exigia a cultura da palavra, faz parte do mosteiro a biblioteca que indica as vias rumo à palavra. Pelo mesmo motivo, dele faz parte também a escola, onde concretamente se abrem as vias. Bento chama ao mosteiro um dominici servitii schola. O mosteiro serve para a eruditio, a formação e a erudição do homem - uma formação cujo objetivo último é fazer com que o homem aprenda a servir a Deus. Mas isto supõe precisamente também a formação da razão, a erudição, baseado na qual o homem aprende a perceber, por entre as palavras, a Palavra.
[...] A Palavra que abre o caminho da procura de Deus, sendo ela mesma este caminho, é uma Palavra que se refere à comunidade. Por certo, ela trespassa o coração de cada indivíduo (cf. At 2,37). Gregório Magno compara isto a uma dor repentina que atravessa a nossa alma sonolenta e nos acorda tornando-nos atentos a Deus (cf. Leclercq, ibid., p. 35). Deste modo, porém, torna-nos atentos também uns aos outros. A Palavra não leva apenas pela via individual de uma imersão mística, mas introduz na comunhão com todos os que caminham na fé. Por isso, é preciso não só refletir sobre a Palavra, mas também lê-la de modo justo. [...]
A Escritura necessita da interpretação e precisa da comunidade onde se formou e é vivida Nesta possui a sua unidade e aí se descerra o sentido que mantém o todo unido. Ou dito de outro modo: existem dimensões do significado da Palavra e das palavras, que só se descerram na comunhão vivida desta Palavra que cria a história. Mediante a crescente percepção das distintas dimensões do sentido, a Palavra não fica desvalorizada, antes aparece em toda a sua grandeza e dignidade. Por isso, o "Catecismo da Igreja Católica" pode dizer justamente que o cristianismo não é simplesmente uma religião do livro no sentido clássico (cf. nº. 108). O cristianismo percebe nas palavras a Palavra, o mesmo Logos, que explica o seu mistério através de tal multiplicidade. Esta estrutura particular da Bíblia é um desafio sempre novo para cada geração. Por sua natureza, ela exclui tudo o que hoje se chama fundamentalismo [...]
Partimos da observação de que, com a derrocada dos velhos sistemas e certezas, a atitude de fundo dos monges era o quaerere Deus - ir em busca de Deus. Poderíamos dizer que esta é verdadeiramente a atitude filosófica: olhar para além das realidades penúltimas e ir à procura das últimas, verdadeiras. Quem se fazia monge, encaminhava-se por uma via longa e elevada, mas já tinha encontrado a direção: a Palavra da Bíblia na qual ouvia falar o próprio Deus [...] A fim de que se abra um caminho para o âmago da Palavra bíblica enquanto Palavra de Deus, esta mesma Palavra deve ser antes anunciada para o exterior. A clássica expressão desta necessidade que tem a fé cristã de se tornar comunicável aos outros está numa frase da Primeira Carta de Pedro que, na teologia medieval, era considerada a razão bíblica do trabalho dos teólogos: “Estai sempre prontos a responder [...] a todo aquele que vos perguntar a razão (logos) da vossa esperança” (3,15). (Logos deve-se tornar apo-logia, a Palavra deve tornar-se resposta). De fato, os cristãos da Igreja primitiva não consideraram o seu anúncio missionário como uma propaganda, que devia servir para fazer crescer o próprio grupo, mas como uma necessidade intrínseca que derivava da natureza da sua fé: o Deus em que acreditavam era o Deus de todos, o Deus uno e verdadeiro que se tinha mostrado na história de Israel e, enfim, no seu Filho, dando assim a resposta que dizia respeito a todos e que, no seu íntimo, todos os homens aguardam. A universalidade de Deus e a universalidade da razão aberta a Ele constituíam para eles o motivo e, ao mesmo tempo, o dever do anúncio. Para eles, a fé não dependia dos hábitos culturais, que divergem de um povo para outro, mas ao âmbito da verdade que diz respeito igualmente a todos.
O esquema fundamental do anúncio cristão “para o exterior” - para os homens que, com suas perguntas andam à procura - acha-se no discurso de São Paulo no Areópago. Neste contexto, tenhamos em conta que o Areópago não era uma espécie de academia, onde as cabeças mais ilustres se encontravam para discutir acerca das coisas sublimes, mas um tribunal que era competente em matéria de religião e devia opor-se à importação de religiões estrangeiras. É precisamente esta a acusação contra Paulo: “Parece que é um pregoeiro de deuses estrangeiros” (At 17,18). Ao que Paulo replica: “Encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao Deus desconhecido’, Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio” (cf. 17,23). Paulo não anuncia deuses desconhecidos. Anuncia Aquele que os homens ignoram, e todavia conhecem-No: o Ignorado-Conhecido; Aquele que procuram e, no fundo, conhecem, mas que é o Ignorado e o Incognoscível. O mais profundo do pensamento e do sentimento humanos sabe, de algum modo, que Ele deve existir. Que na origem de todas as coisas deve estar não a irracionalidade, mas a Razão criativa; não o ocaso cego, mas a liberdade. No entanto, apesar de todos os homens saberem de algum modo isto - como Paulo ressalta na Carta aos Romanos (1,21) - este conhecimento permanece irreal: um Deus só pensado e inventado não é um Deus. Se Ele não se mostra, não chegamos a Ele de forma alguma. A novidade do anúncio cristão é a possibilidade de dizer agora a todos os povos: Ele mostrou-se. Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do anúncio cristão consiste num fato: Ele mostrou-se. Isto, porém, não é um fato cego, mas um fato que, em si mesmo, é Logos - presença da Razão eterna na nossa carne. Verbum caro factum est (Jo 1,14): assim mesmo, agora no fato está o Logos, o Logos presente entre nós. O fato é razoável. Certamente, continua a ser necessária a humildade da razão para poder acolhê-lo; é precisa a humildade do homem que responde à humildade de Deus.
A nossa situação atual, sob muitos aspectos, é distinta daquela que Paulo encontrou em Atenas, mas, mesmo assim, em muitas coisas é bastante análoga. As nossas cidades já não estão cheias de altares e imagens de muitas divindades. Para muitos, Deus tornou-se verdadeiramente o grande Desconhecido. Mas, como então por detrás das numerosas representações dos deuses estava escondida e presente a pergunta acerca do Deus desconhecido; também a atual ausência de Deus é tacitamente importunada pela pergunta sobre Ele. Quaerere Deum - buscar a Deus e deixar-se encontrar por Ele: isto, hoje, não é menos necessário do que em tempos passados. Uma cultura meramente positivista que relegasse para o âmbito subjetivo, como não científica, a pergunta acerca de Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, o descalabro do humanismo, cujas conseqüências não deixariam de ser graves. O que fundamentou a cultura da Europa, a procura de Deus e a disponibilidade para O escutar, permanece também hoje o fundamento de toda a verdadeira cultura. |