Continuando sua reflexão sobre a encíclica “Caritas in veritate” , Dom Crepaldi mostra as implicações do primado do receber sobre o fazer na vida econômica e social. Além disto, aponta para as novidades contidas na encíclica nos campos da defesa da vida e do meio ambiente.
A idéia de fundo de que o receber precede o fazer explica outra novidade de grande alcance de “Caritas in veritate”. Os dois direitos fundamentais à vida e à liberdade religiosa são apresentados de forma explícita e consistente pela primeira vez em uma encíclica social. Não que nas encíclicas precedentes eles tenham sido esquecidos, mas sem dúvida aqui, pela primeira vez, estes direitos estão unidos organicamente ao tema do desenvolvimento e estão evidenciadas as conseqüências econômicas e políticas negativas que acontecem quando eles não são respeitados..
Em “Caritas in veritate” a “questão antropológica” se torna plenamente “questão social”. Aqui, a reprodução humana e a sexualidade, o aborto e a eutanásia, as manipulações de identidade humana e a seleção eugenética são problemas sociais de importância primordial que, se geridos de acordo com uma lógica de pura produção, deturpam a sensibilidade social, minam o senso da lei, corroem a família e dificultam a acolhida aos mais fracos.
Estas indicações da encíclica não valem apenas como exortação, mas convidam a um novo pensamento e uma nova prática para o desenvolvimento. Um pensamento e uma prática que levem em conta as interconexões existentes entre os aspectos antropológicos ligados à vida e à dignidade humana e aqueles econômicos, sociais e culturais ligados ao desenvolvimento. Por exemplo, não será mais possível propor projetos de desenvolvimento apenas econômico-produtivo, que não levem em consideração, sistematicamente, também a dignidade da mulher, a reprodução, a família e os direitos dos nascituros.
Existem outras duas temáticas novas em “Caritas in veritate”. A primeira é é a do ambiente, que já havia sido abordado por João Paulo II. Também aqui “Caritas in veritate” repropõe a precedência do receber sobre o fazer. A natureza é vista não como depósito de recursos materiais, mas sim como palavra criada. Não simples coisas, mas um bem confiado ao homem para o bem de todos.
Os direitos à vida e à liberdade religiosa já vistos antes estão ligados à ecologia ambiental. A preocupação preservacionsita deve liberar-se de algumas hipotecas ideológicas que consistem em negligenciar a dignidade superior da pessoa humana e em só considerar a natureza numa chave de leitura materialista, como fruto do acaso ou da necessidade. O compromisso para com o meio ambiente não será plenamente frutífero se não for sistematicamente associado ao direito da pessoa humana à vida, primeiro elemento de uma ecologia humana que sirva como referência a uma ecologia ambiental.
O outro tema novo é a ampla discussão do problema da técnica no capítulo VI da encíclica. Também aqui estamos em face a uma novidade absoluta: é na primeira vez que uma encíclica aborda esse tema de forma tão orgânica, desde as reflexões antropológicas sobre a questão da técnica “Laborem exercens” de João Paulo II. A idéia de fundo é a de que a crise das grandes ideologias políticas abriu espaço à nova ideologia da técnica ou, poderíamos dizer, para a tecnicidade como mentalidade. Trata-se do maior desafio ao princípio da prioridade do receber sobre o fazer. A mentalidade exclusivamente técnica reduz tudo a mero fazer. Por isto, se combina bem com uma cultura niilista e relativista.
Compreendemos destas observações que “Caritas in veritate” é uma grande proposta cultural e de mentalidade a serviço do verdadeiro desenvolvimento. Os recursos para o desenvolvimento não são só econômicos, mas imateriais e culturais, de mentalidade e de vontade. Pede-se uma nova perspectiva sobre o homem que só o Deus que é verdade e amor pode dar.
Verdade e amor são gratuitos. Eles superam a simples dimensão da viabilidade e nos abrem à dimensão do não disponível, do essencial. A encíclica inteira afirma que sem esta perspectiva o desenvolvimento humano fica impossível. Isto permite que enfrentemos de um modo novo os problemas econômicos e financeiros ligados à globalização dos mercados. Sem me aprofundar as questões econômicas, quero realçar como “Caritas in veritate” explica muito bem que o elemento não produtivo, mas recebido, da fraternidade – que representa uma dimensão de dom e gratuidade nas relações humanas – é hoje em dia de fundamental importância para a solução dos mais espinhosos problemas que temos pela frente. Dimensão de dom e gratuidade que até mesmo o mercado precisa para poder funcionar.
Essa é uma importante aplicação do princípio de que o receber precede o fazer. Mas para que isso aconteça, é necessário que a reciprocidade própria da fraternidade entre plenamente dentro dos mecanismos econômicos e motive a redistribuição, a justiça social e a solidariedade não num momento sucessivo ou apenas para aliviar situações.
Na “Caritas in veritate”, Bento XVI retoma ainda as indicações da “Centesimus annus” sobre as relações entre Estado, privado e sociedade civil, aprofundado-as e desenvolvendo-as até esboçar as características de uma economia civil do dom ou da reciprocidade.
Quero fazer uma última observação. A referência contínua à Verdade e ao Amor infunde a “Caritas in veritate” uma grande liberdade de pensamento, permitindo que a encíclica não se perca diante das ideologias que lamentavelmente ainda confundem o caminho do desenvolvimento. A gratuidade da verdade e do amor conduzem ao verdadeiro desenvolvimento porque eliminam reducionismos e visões parciais. Deste ponto de vista a encíclica tem o grande mérito de afastar-se de visões obsoletas, esquemas analíticos superados, simplificações de problemas complexos. Um excessivo reducionismo Norte-Sul dos problemas do desenvolvimento, depois da crise do reducionismo Este-Oeste; uma desconsideração dos aspectos culturais do subdesenvolvimento; um ecologismo freqüentemente separado pela visão completa da pessoa humana; uma preocupação com os problemas econômicos em sentido restrito sem a preocupação com seus aspectos institucionais; uma visão assistencialista e não subsidiária do desenvolvimento são algumas destas ideologias residuais que a encíclica supera decididamente. A atenção se volta sempre ao homem concreto, objeto de verdade e de amor e ele mesmo capaz de verdade e de amor.
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