A verdade sobre nós mesmos que é a consequência da disciplina da interioridade não pára com o autoconhecimento. Ela se dissemina no relacionamento com o nosso próximo. Nosso próximo nunca esteve completamente fora de nosso olhar – sempre o mantivemos à vista, pelo menos com o rabo do olho – mas até agora tinha sido espiritualmente perigoso prestar muita atenção nele. Até então, este conhecimento tinha sido “contaminado” por fins autocentrados, principalmente, a preservação de nosso mito pessoal a respeito de nós mesmos. Nosso próximo vinha sendo o objeto de nossa observação afiada, crítica: sem fazer esforço, percebemos todas as maneiras que ele deixa a desejar em relação à norma que estabelecemos para ele. Pode ser que por um breve período nossa tendência fosse a de adulá-lo(a), porém mais cedo ou mais tarde nós identificamos as múltiplas imperfeições da pessoa e o próximo se torna, em certa medida, o inimigo.
Quando, através do silêncio e da solidão nós percebemos que merecemos estas mesmas críticas assim como nosso próximo, uma profunda mudança ocorre em nosso relacionamento com ele. [...] Tudo isto provoca certa ternura em nós, um sentimento de que este coitado é nosso irmão (ou até gêmeo) e que verdadeiramente somos seu guardião. Sentimos um impulso poderoso e instintivo de cobrir a sua nudez e de não mais expô-la. Para Bernardo, esta é a segunda verdade que nasce da humildade de se viver conosco mesmos, e seu nome é compaixão. O outro é agora percebido e sentido como sendo o “parceiro de nossa natureza” (socius naturae nostrae). Como podemos cuidar dele?[...] O intenso encontro com tudo aquilo que é pobre e deficiente em nós mesmos, ao invés de nos inserir numa depressão autocentrada, abre a porta para uma comunhão compassiva com o próximo e com todos os próximos, com toda a humanidade. Agora descobrimos que o amor ao próximo, com toda a sua nobreza, não é a conclusão, o ponto de repouso. Amor para com ele é, na verdade, como já foi dito, um “êxtase horizontal” – ele nos desloca de nós mesmos – mas descobrimos que uma vez fora de nossa própria pele, nós não nos encaixamos na pele – cabemos – do próximo. Podemos tomá-lo para dentro de nossa preocupação (concern), mas não encaixamo-nos nele. Ele não tem suficiente capacidade para nos receber, nem é suficientemente grande para nos satisfazer (cf. Summa Ia IIae, sobre a felicidade). Nosso amor e serviço a ele é uma grande responsabilidade e uma grande alegria, mas ele não é nossa realização. E não obstante ele nos ensina o caminho da autotranscendência, e por causa dele, e juntamente com ele, olhamos para o alto, para o êxtase vertical, para Deus, a fonte e completude do nosso ser. Este olhar para o alto, cheio de saudade, pode ser considerado o terceiro modo da ascese, que é simplesmente “desejo”. S. Bento na sua Regra diz que devemos desejar a vida eterna “com toda força de nosso desejo espiritual” (cum omni concupiscentia spiritali) e S. Bernardo e seus seguidores falam da “unificação do desejo”, a unicidade do desejo. Esta unicidade do desejo, por sua vez, coincide com aquilo que toda a tradição monástica chama de memoria Dei, lembrança de Deus. Quando uma pessoa realmente vive na lembrança de Deus, Deus se torna o pensamento subjacente de todos os seus pensamentos, a pré-ocupação de todas as suas ocupações. Ele sempre está ali em nossa consciência, imediatamente abaixo da superfície, sustentando a superfície. E tão logo você arranhe a superfície, isto é, tão logo você explore o menor pedacinho abaixo do superficial, você se choca com Ele, como o suporte e a união de toda a multiplicidade de nossos interesses humanos. Esta memória pode parecer muito quiescente, muito não-emotiva, mas o fato é que ela está sempre pronta para transformar-se em chama. A qualquer momento esta memória se torna consciente de si mesma, ela se une à vontade e se torna um desejo ardente de posse e de união [...]
Quando me foi pedido dar esta conferência vários meses atrás, soube imediatamente que tipo de conferência eu não queria dar. Eu não queria dar uma conferência sobre práticas monásticas ou espiritualidade na linha da revista “Seleções”. Lá, os valores mais profundos são sempre instrumentalizados a serviço da saúde, longevidade ou prosperidade. Reze dez minutos por dia, porque estudos recentes mostram que a pessoa que reza vive em média 7 anos a mais do que a pessoa que não reza. Cultive amizades, porque a pessoa que cultiva amizades tem menos “colesterol ruim” do que a pessoa que não cultiva. O mesmo problema existe, penso eu, na premissa do livro “O Monge e o Executivo”. Aproveite da antiga, esotérica e todavia fundamentalmente simples, sabedoria monástica a fim de se tornar o gerente dos seus sonhos e dos sonhos de seus empregados. Imagino que vocês estejam familiares com a distinção entre uti e frui. Uti é um modo de agir que sempre tem em mente uma meta além de si mesma: é útil, porque nos leva para aquilo que realmente desejamos. Frui é um modo de agir que não tem outra meta em mente a não ser si mesmo. S. Bernardo expressa isto de um modo muito famoso no dizer: Amo quia amo; amo ut amem. Amo porque amo. Amo para amar. Quando se chega ao frui, a atividade é seu próprio motivo e sua própria meta.
Eu não quero apresentar uma visão da vida monástica pela qual você sairia deste auditório um pouco mais capaz de fazer as coisas que realmente são importantes – perder peso, tornar-se popular, controlar o seu batimento cardíaco, aumentar o número de bytes do seu banco de dados interior. Na visão de Bernardo, a vida monástica é importante porque ela nos conecta em verdade e amor com as três grandes preciosidades – com nossa própria humanidade, com outros seres humanos, e com Deus, o mistério ao coração do universo. Ele acredita, como eu acredito, que a vivência desta tríplice comunhão autenticamente já é beatitude e que é esta beatitude que no fundo todo ser humano deseja.
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