A encíclica “Caritas in veritate” de Bento XVI transforma a Doutrina Social da Igreja em nada menos que a relação entre a Igreja e o mundo, pois se trata “do desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”, ampliando ao máximo o tema do desenvolvimento presente na “Populorum progressio” de Paulo VI – da qual recorda o quadragésimo aniversário.
É uma encíclica de amplo respiro, perfeitamente inserida no pontificado de Bento XVI, que não só fez dos termos “caridade” e “verdade” o coração de seu magistério, pois os considera o coração mesmo do cristianismo, mas também insere de modo radical o tema de “Deus no mundo” – ou seja, o cristianismo é somente útil ou é indispensável para a construção de um verdadeiro desenvolvimento humano? O Papa pensa que é indispensável e, na encíclica, diz o porquê.
Por isso, trata-se de um texto corajoso, que elimina qualquer dúvida possível com relação ao papel público da fé cristã e ao fato de que dela deriva uma visão coerente de vida, em pé de igualdade com outras visões.
O mundo, segundo a “Caritas in veritate” não deve apenas ser acompanhado por uma caridade sem verdade, mas deve ser salvo pela caridade na verdade. Para chegar a essa conclusão, o papa retoma Paulo VI e indica o ponto de vista teológico pelo qual a Igreja deveria considerar os fatos sociais. Trata-se de duas considerações estratégicas que o Cardeal Renato Martino e Dom Giampaolo Crepaldi, presidente e secretário do Pontifício Conselho Justiça e Paz, apresentando a encíclica em 7 de julho, mostraram muito bem.
O primeiro capítulo da encíclica, dedicado a Paulo VI, recorda sua encíclica “Populorum progression” de 1967. Paulo VI não estava incerto sobre o valor da Doutrina Social da Igreja, como muitos disseram e continuam dizendo, nem teria atenuado a importância de uma presença pública do cristianismo na história. Pelo contrário, Bento XVI diz que ele assentou as bases da grande retomada que pouco depois aconteceria com João Paulo II. E sendo Paulo VI o papa do Concílio, é evidente que com esse trabalho de Bento XVI representa a revalorização de todo um período histórico.
Esta retomada do pensamento de Paulo VI tem o mesmo significado da condenação à “hermenêutica da fratura”, na análise do Vaticano II, feita por ele em 2005. A “Caritas in veritate” afirma que não existem duas doutrinas sociais, uma pré-conciliar e outra pós-conciliar, mas uma única Doutrina Social da Igreja.
Quanto à visão teológica da qual partir, o papa esclarece que não se trata de qualquer análise sociológica, mas da fé dos apóstolos. Ou seja, a Igreja não parte “do mundo”, mas da fé dos apóstolos. Só assim a Doutrina Social da Igreja pode ser útil para o mundo.
Esta é a perspectiva central de toda a encíclica e a razão de ser das posições que sustenta. Que o verdadeiro desenvolvimento não pode separar os temas da justiça social daqueles do respeito da vida e da família. Que não se pode lutar pela proteção da natureza se esquecendo de que a pessoa humana é superior a todo o resto da criação. Que a eugenia é muito mais preocupante que a diminuição da diversidade nos ecossistemas. Que o aborto e a eutanásia corroem o senso da lei e impedem, na origem, toda forma de acolhida ao mais fraco – representando uma ferida de enormes conseqüências para a comunidade humana. Que a economia precisa de gratuidade e que essa não deve ser simplesmente superposta no fim ou pensada ao lado da atividade econômica, mas – pelo contrário – deve ser elemento de solidariedade no interior mesmo dos processos econômicos – e sem isto a própria atividade redistributiva do Estado se tornará impossível. Essas e outras considerações presentes na encíclica nascem do Evangelho. Mas, o Evangelho, enquanto ilumina essa realidade social, econômica e política, lhe restitui a autonomia da própria dignidade, mostrando convergências antes impensadas entre a visão cristã e as necessidades autênticas da sociedade humana.
Pensemos, por exemplo, na economia: a globalização, em função da competição, impede os Estados de praticar a solidariedade “depois” da produção. É necessário organizar a solidariedade já dentro da atividade produtiva, como buscam fazer, por exemplo, ainda que entre mil contradições, os movimentos de responsabilidade social das empresas. Aqui se encontram as necessidades concretas da economia globalizada de hoje e as indicações da fé cristã – para a qual a economia é sempre um fato humano e comunitário e, portanto, a dimensão ética não lhe diz respeito apenas no momento seguinte, mas no interior do próprio processo produtivo.
Nesta encíclica, pela primeira vez, são tratados de modo sistemático os temas da globalização, do respeito ao meio ambiente e da bioética, que nas encíclicas precedentes haviam sido tocados. É uma encíclica que olha decididamente para o futuro, com a coragem do realismo da sabedoria cristã. A polarização Norte-Sul deve ser superada, diz Bento XVI, a responsabilidade do subdesenvolvimento não é só de alguns, mas de muitos, inclusive dos países emergentes e das elites dos países pobres. Algumas vezes, até mesmo as organizações humanitárias e os organismos internacionais parecem mais interessados com o próprio bem estar e com a própria burocracia que com o desenvolvimento dos países pobres. O turismo sexual não é sustentado apenas dos países dos quais partem os “clientes”, mas também daqueles que os hospedam. A corrupção pode ser encontrada também nas ajudas humanitárias. Os países industrializados erram ao proteger excessivamente a propriedade intelectual, principalmente no caso dos medicamentos. Nos países considerados atrasados, existem realmente superstições e visões ancestrais que podem impedir o desenvolvimento... E vai por aí afora...
É uma encíclica que condena as ideologias do passado e também as novas: do terçomundismo ao ecologismo. Mas enfrenta, sobretudo, uma: a ideologia da técnica, à qual está dedicado todo o sexto capítulo. Depois da falência das ideologias políticas, se consolidou a ideologia da técnica, ainda mais perigosa na medida em que se alimenta da cultura relativista que a cerca.
O ponto de vista central da encíclica foi retomado por Dom Crepaldi, que ao apresenta-la no Vaticano, caracterizou-a como a “prevalência do receber sobre o fazer”. E assim voltamos ao problema de fundo: sem Deus os homens são fruto do acaso e da necessidade e nada têm a receber. Mas então o mundo – inclusive o mercado e a comunidade política – necessita de um pressuposto que ele mesmo não pode dar-se. A pretensão cristã permanece sempre a mesma. |