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HOME > TEXTOS > FÉ & RAZÃO > CHAVES DE LEITURA DA NOVA ENCÍCLICA DO PAPA NO CAMPO DA BIOÉTICA
  
Chaves de leitura da nova encíclica do Papa no campo da Bioética
Artigo publicado na Agência Zenit
Entrevista dada por Dalton Luis de Paula Ramos ao jornalista Alexandre Ribeiro.

Dalton Luis de Paula Ramos é professor titular da USP onde leciona Bioética para cursos de graduação e pós-graduação da USP. É membro da Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano, da Comissão de Bioética da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), da equipe do Setor Vida do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) e coordena a área de bioética no Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. É organizador dos livros “Bioética, Pessoa e Vida” e “Bioética & Documento de Aparecida”, editados pela Editora Difusão.

Uma das grandes novidades da encíclica “caritas in veritate” é a forma pela qual aborda, de modo sistêmico, a questão do desenvolvimento e da solidariedade à questão da defesa da vida. A entrevista a seguir esclarece esse importante aspecto da encíclica.


Que indicações ou pontos de partida o senhor destacaria para as pessoas que pretendem ler e estudar a encíclica?
Esta encíclica não pode ser lida, aliás como todo documento do Magistério da Igreja, apenas nos seus aspectos específicos. Por exemplo, o tema da bioética, da defesa da vida e tantas outras temáticas pontuais da encíclica, como a questão econômica, não podem ser vistos de forma destacada. O centro da encíclica, para qualquer leitura que desejemos fazer, é o rosto de Cristo.
O ponto central está justamente nas primeiras linhas do texto: “A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”. Esta frase não é apenas uma abertura, ela efetivamente exerce todo o sentido de como se podem ler as questões que se seguem.
O Papa assinala que a Doutrina Social da Igreja tem como via mestra a caridade. É importante sempre retomar, quando se fala desta encíclica, a Doutrina Social da Igreja, já que o texto vem a consolidar este caminho.
No item 8, fala-se do desenvolvimento humano integral, retomando o que o Magistério da Igreja já colocava em 1967, na Populorum Progressio, do Papa Paulo VI. Bento XVI retoma isso. Quando se vai pensar nas questões que envolvem a dignidade humana e a defesa da vida, é preciso ter essa premissa e todo esforço do desenvolvimento humano integral. Eu particularmente considero que as ações educativas favorecem a que se possa ajudar a pessoa a se ver integralmente.

E o tema da defesa da vida?
Já no ponto 15, o Papa toca de forma mais direta nas questões que envolvem a defesa da vida. Retoma as encíclicas Humanae vitae e a Evangelium vitae. Então o Papa vem a somar a estes referenciais tão importantes esse trabalho pedagógico constante da Igreja de retomar qual é o nosso sentido, quais razões que nos levam a entender mais profundamente o que é a dignidade e o valor da pessoa humana.
Aprofundando ainda mais estes aspectos, o item 28 explicitamente coloca isso: “Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento atual é a importância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modo algum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos”.
A base do desenvolvimento dos povos é Cristo, como foi dito no início do texto. Porém, não podemos separar a questão do desenvolvimento da questão do respeito pela vida.
“A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro bem do homem. Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social” (n. 28).
Quando se nega que a abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento, começam a ficar evidentes os sinais de que esta sociedade está-se degradando. Isso ajuda no diagnóstico de se uma sociedade tem efetivamente o desenvolvimento em prol da própria humanidade.

Fala-se também de pesquisa científica e tecnologia.
A questão da pesquisa científica aparece no item 31. Aqui Bento XVI retoma algumas categorias que têm sido a marca de seu Magistério. Ele chama a atenção para um contexto cultural do nosso tempo, que se manifesta no que ele diz: “É indispensável o alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do desenvolvimento e da solução dos problemas sócio-econômicos” (n. 31).
Isso é uma marca muito forte desta encíclica. E aqui se entra na questão das tecnologias, de um desenvolvimento que se apoia nas tecnologias. É um ensinamento que nos lembra que as tecnologias são um bem que a inteligência humana pode oferecer para o desenvolvimento da humanidade como um todo, exigindo-se que isso se faça através do uso de uma razão. Razão que significa considerar a realidade no seu todo.

Aí já entra a questão do uso adequado da razão, que o Papa sempre assinala.
Sim. Como a gente pode enfrentar de forma adequada o tema do aborto, da eutanásia? Fazendo uso adequado da razão e da experiência humana. Assim sendo, numa sociedade desenvolvida, não só no seu aspecto de renda per capita, mas também onde existem políticas públicas efetivamente acessíveis a todos, o tema do aborto e o tema da eutanásia passa a ser secundário. Isto porque quando há condições efetivas para a vida, se pode enfrentar de forma adequada o tema da morte e ela não é o centro do  debate. Não é próprio da natureza humana falar de morte quando há condições de vida. A questão do desenvolvimento econômico, do desenvolvimento social e a questão da defesa da vida estão interligadas exatamente por causa disso.
No item 44, vemos o Papa falar que “a abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e econômica”. Ele aponta também como questão central a família: “Os Estados são chamados a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade, preocupando-se também com os seus problemas econômicos e fiscais, no respeito da sua natureza relacional”.
Ao lembrar aqui das características que promovem a centralidade, eu chamaria a atenção para outro ponto que a encíclica vai lembrar, porque é elemento essencial da Doutrina Social da Igreja, que é a questão da subsidiariedade. Isso significa, na questão da defesa da vida, que aqueles organismos sociais, qualquer que seja sua origem, que estão promovendo a vida, devem recebem subsídios dos organismos governamentais para desempenhar esta vocação.
Logo no item 51, Bento XVI assinala que “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se tornam artificiais a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental”.
Aqui é mais um diagnóstico que o Papa faz. E aponta também a necessidade da gente resgatar esta questão da solidez moral. Eu particularmente insistiria nas ações educativas como tal.

No decorrer da encíclica amplia-se o horizonte de compreensão de temas da bioética.
O capítulo VI, que fala do desenvolvimento dos povos e a técnica, é impressionante para quem pretende entender o que o Magistério da Igreja no que diz respeito à defesa da vida. Em poucas páginas se resgata a Doutrina da Igreja nesse campo, e Bento XVI vai juntado com a preocupação que referíamos do uso da razão. No item 70, aparece:  “O desenvolvimento tecnológico pode induzir à ideia de auto-suficiência da própria técnica, quando o homem, interrogando-se apenas sobre o como, deixa de considerar os muitos porquês pelos quais é impelido a agir.”
Quando o homem é chamado na sua vocação, criatividade e inteligência ao desenvolvimento da técnica, tem de se perguntar não só o como, mas também os porquês. Buscar o significado das ações humanas também no que diz respeito ao progresso tecnológico. Aí se chega explicitamente à questão da oportunidade de uma melhor preparação dos cientistas no que diz respeito à questão moral.
Depois, no item 74, o Papa vai explicitar a questão da bioética: “trata-se de um âmbito delicadíssimo e decisivo, onde irrompe, com dramática intensidade, a questão fundamental de saber se o homem se produziu por si mesmo ou depende de Deus.”
“Face a estes dramáticos problemas, razão e fé ajudam-se mutuamente; e só conjuntamente salvarão o homem: fascinada pela pura tecnologia, a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria omnipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas”, diz Bento XVI no item 74.

O desenvolvimento integral é um sonho distante?
 Não. Muito pelo contrário. Este desenvolvimento integral não pode ser confundido com escolaridade, titularidade. Quando a gente fala de desenvolvimento integral, e é justamente este o equívoco que tem a ver com o uso reduzido da razão, não se pode entender que isso se conquistaria só com um saber científico. Na verdade nós estamos falando do conhecimento do que é pessoa humana.
Não é com a ciência que eu interpreto o que é a pessoa humana, isto é, o seu significado maior e mais profundo. Com a ciência eu estudo um determinado aspecto desta realidade, chamada pessoa humana. Por exemplo, como funciona o seu organismo. Se queremos conhecer a pessoa humana devemos nos valer de outros métodos além do científico, como o que nos é oferecido olhando-se para a própria experiência, que cada um pode fazer, do que é ser uma pessoa, no conjunto das suas dimensões física, psicológica, espiritual, social  ou moral.
Então, neste sentido, o desenvolvimento integral da pessoa humana é um olhar para a própria pessoa. Não é uma coletânea de informações como se tenta fazer na universidade, no sentido de fazer um grande compêndio do conhecimento humano. É um conhecimento, um olhar para a própria experiência que é ajudado em um juízo. Olhar para a própria experiência significa justamente olhar para as experiências que eu faço em minha vida. Não é simplesmente provar fatos. É mais do que isso. É olhar para estes fatos da minha vida e ter um juízo a respeito do que isso significa.

Este é o trabalho que a Igreja nos ajuda a fazer. A experiência implica sempre um juízo. É isso que garante o desenvolvimento integral das pessoas. Portanto, é algo acessível a todos. Entram em cena as ações educativas e também uma companhia, que é o que a Igreja oferece para nós. Uma companhia que é a essência desse percurso educativo. E este percurso educativo vai consolidar consciências. Ajudar a que o homem possa olhar para a realidade da vida em todos os campos, seja social, econômico, ambiental... e dizer: isto é justo, isto constrói, ou, isto não constrói.
 
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