Que indicações ou pontos de partida o senhor destacaria para as pessoas que pretendem ler e estudar a encíclica?
Esta encíclica não pode ser lida, aliás como todo documento do Magistério da Igreja, apenas nos seus aspectos específicos. Por exemplo, o tema da bioética, da defesa da vida e tantas outras temáticas pontuais da encíclica, como a questão econômica, não podem ser vistos de forma destacada. O centro da encíclica, para qualquer leitura que desejemos fazer, é o rosto de Cristo.
O ponto central está justamente nas primeiras linhas do texto: “A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira”. Esta frase não é apenas uma abertura, ela efetivamente exerce todo o sentido de como se podem ler as questões que se seguem.
O Papa assinala que a Doutrina Social da Igreja tem como via mestra a caridade. É importante sempre retomar, quando se fala desta encíclica, a Doutrina Social da Igreja, já que o texto vem a consolidar este caminho.
No item 8, fala-se do desenvolvimento humano integral, retomando o que o Magistério da Igreja já colocava em 1967, na Populorum Progressio, do Papa Paulo VI. Bento XVI retoma isso. Quando se vai pensar nas questões que envolvem a dignidade humana e a defesa da vida, é preciso ter essa premissa e todo esforço do desenvolvimento humano integral. Eu particularmente considero que as ações educativas favorecem a que se possa ajudar a pessoa a se ver integralmente.
E o tema da defesa da vida?
Já no ponto 15, o Papa toca de forma mais direta nas questões que envolvem a defesa da vida. Retoma as encíclicas Humanae vitae e a Evangelium vitae. Então o Papa vem a somar a estes referenciais tão importantes esse trabalho pedagógico constante da Igreja de retomar qual é o nosso sentido, quais razões que nos levam a entender mais profundamente o que é a dignidade e o valor da pessoa humana.
Aprofundando ainda mais estes aspectos, o item 28 explicitamente coloca isso: “Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento atual é a importância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modo algum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos”.
A base do desenvolvimento dos povos é Cristo, como foi dito no início do texto. Porém, não podemos separar a questão do desenvolvimento da questão do respeito pela vida.
“A abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando uma sociedade começa a negar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivações e energias necessárias para trabalhar ao serviço do verdadeiro bem do homem. Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social” (n. 28).
Quando se nega que a abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento, começam a ficar evidentes os sinais de que esta sociedade está-se degradando. Isso ajuda no diagnóstico de se uma sociedade tem efetivamente o desenvolvimento em prol da própria humanidade.
Fala-se também de pesquisa científica e tecnologia.
A questão da pesquisa científica aparece no item 31. Aqui Bento XVI retoma algumas categorias que têm sido a marca de seu Magistério. Ele chama a atenção para um contexto cultural do nosso tempo, que se manifesta no que ele diz: “É indispensável o alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do desenvolvimento e da solução dos problemas sócio-econômicos” (n. 31).
Isso é uma marca muito forte desta encíclica. E aqui se entra na questão das tecnologias, de um desenvolvimento que se apoia nas tecnologias. É um ensinamento que nos lembra que as tecnologias são um bem que a inteligência humana pode oferecer para o desenvolvimento da humanidade como um todo, exigindo-se que isso se faça através do uso de uma razão. Razão que significa considerar a realidade no seu todo.
Aí já entra a questão do uso adequado da razão, que o Papa sempre assinala.
Sim. Como a gente pode enfrentar de forma adequada o tema do aborto, da eutanásia? Fazendo uso adequado da razão e da experiência humana. Assim sendo, numa sociedade desenvolvida, não só no seu aspecto de renda per capita, mas também onde existem políticas públicas efetivamente acessíveis a todos, o tema do aborto e o tema da eutanásia passa a ser secundário. Isto porque quando há condições efetivas para a vida, se pode enfrentar de forma adequada o tema da morte e ela não é o centro do debate. Não é próprio da natureza humana falar de morte quando há condições de vida. A questão do desenvolvimento econômico, do desenvolvimento social e a questão da defesa da vida estão interligadas exatamente por causa disso.
No item 44, vemos o Papa falar que “a abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e econômica”. Ele aponta também como questão central a família: “Os Estados são chamados a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade, preocupando-se também com os seus problemas econômicos e fiscais, no respeito da sua natureza relacional”.
Ao lembrar aqui das características que promovem a centralidade, eu chamaria a atenção para outro ponto que a encíclica vai lembrar, porque é elemento essencial da Doutrina Social da Igreja, que é a questão da subsidiariedade. Isso significa, na questão da defesa da vida, que aqueles organismos sociais, qualquer que seja sua origem, que estão promovendo a vida, devem recebem subsídios dos organismos governamentais para desempenhar esta vocação.
Logo no item 51, Bento XVI assinala que “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se tornam artificiais a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental”.
Aqui é mais um diagnóstico que o Papa faz. E aponta também a necessidade da gente resgatar esta questão da solidez moral. Eu particularmente insistiria nas ações educativas como tal.
No decorrer da encíclica amplia-se o horizonte de compreensão de temas da bioética.
O capítulo VI, que fala do desenvolvimento dos povos e a técnica, é impressionante para quem pretende entender o que o Magistério da Igreja no que diz respeito à defesa da vida. Em poucas páginas se resgata a Doutrina da Igreja nesse campo, e Bento XVI vai juntado com a preocupação que referíamos do uso da razão. No item 70, aparece: “O desenvolvimento tecnológico pode induzir à ideia de auto-suficiência da própria técnica, quando o homem, interrogando-se apenas sobre o como, deixa de considerar os muitos porquês pelos quais é impelido a agir.”
Quando o homem é chamado na sua vocação, criatividade e inteligência ao desenvolvimento da técnica, tem de se perguntar não só o como, mas também os porquês. Buscar o significado das ações humanas também no que diz respeito ao progresso tecnológico. Aí se chega explicitamente à questão da oportunidade de uma melhor preparação dos cientistas no que diz respeito à questão moral.
Depois, no item 74, o Papa vai explicitar a questão da bioética: “trata-se de um âmbito delicadíssimo e decisivo, onde irrompe, com dramática intensidade, a questão fundamental de saber se o homem se produziu por si mesmo ou depende de Deus.”
“Face a estes dramáticos problemas, razão e fé ajudam-se mutuamente; e só conjuntamente salvarão o homem: fascinada pela pura tecnologia, a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria omnipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas”, diz Bento XVI no item 74.
O desenvolvimento integral é um sonho distante?
Não. Muito pelo contrário. Este desenvolvimento integral não pode ser confundido com escolaridade, titularidade. Quando a gente fala de desenvolvimento integral, e é justamente este o equívoco que tem a ver com o uso reduzido da razão, não se pode entender que isso se conquistaria só com um saber científico. Na verdade nós estamos falando do conhecimento do que é pessoa humana.
Não é com a ciência que eu interpreto o que é a pessoa humana, isto é, o seu significado maior e mais profundo. Com a ciência eu estudo um determinado aspecto desta realidade, chamada pessoa humana. Por exemplo, como funciona o seu organismo. Se queremos conhecer a pessoa humana devemos nos valer de outros métodos além do científico, como o que nos é oferecido olhando-se para a própria experiência, que cada um pode fazer, do que é ser uma pessoa, no conjunto das suas dimensões física, psicológica, espiritual, social ou moral.
Então, neste sentido, o desenvolvimento integral da pessoa humana é um olhar para a própria pessoa. Não é uma coletânea de informações como se tenta fazer na universidade, no sentido de fazer um grande compêndio do conhecimento humano. É um conhecimento, um olhar para a própria experiência que é ajudado em um juízo. Olhar para a própria experiência significa justamente olhar para as experiências que eu faço em minha vida. Não é simplesmente provar fatos. É mais do que isso. É olhar para estes fatos da minha vida e ter um juízo a respeito do que isso significa.
Este é o trabalho que a Igreja nos ajuda a fazer. A experiência implica sempre um juízo. É isso que garante o desenvolvimento integral das pessoas. Portanto, é algo acessível a todos. Entram em cena as ações educativas e também uma companhia, que é o que a Igreja oferece para nós. Uma companhia que é a essência desse percurso educativo. E este percurso educativo vai consolidar consciências. Ajudar a que o homem possa olhar para a realidade da vida em todos os campos, seja social, econômico, ambiental... e dizer: isto é justo, isto constrói, ou, isto não constrói.
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