Deve-se compreender de forma clara e adequada o significado do ensino religioso nas escolas públicas, no contexto do Estado laico. Não se trata da imposição de uma única fé, ou mesmo da obrigatoriedade de ser religioso, mas sim do respeito à exigência de uma formação integral da pessoa humana, que poderá assumir perfis diversos, de modo a respeitar as opções confessionais de cada família e de cada educando, mas que não deve ser confundida com a proposta de uma “religião genérica” ou de uma leitura sociológica do fenômeno religioso.
O ensino religioso nas escolas públicas é um dos aspectos do acordo entre Igreja e Estado assinado no Vaticano durante a visita do presidente Lula ao papa Bento XVI, em novembro de 2008. Define-se, assim, a imposição do ensino religioso a todos? De uma única concepção religiosa? Da religião católica? Houve muita afirmação desencontrada sobre essas questões e até questionamentos sobre se esse aspecto do acordo não colidia com o princípio da separação entre Igreja e Estado, estabelecido pela República, e o da laicidade do Estado. Espero que minha reflexão sobre o assunto possa ajudar a dirimir eventuais dúvidas.
Antes de tudo, o que diz o texto do acordo na versão divulgada pelo Itamaraty (Nota nº 637, de 13 de novembro de 2008)? O artigo 11 estabelece: "A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa." Afirma-se, portanto, a liberdade religiosa e o respeito à diversidade cultural e religiosa do povo brasileiro; tudo em sintonia com a Constituição federal e com a realidade sociocultural brasileira. Alguém poderia pôr em dúvida a importância da educação religiosa para a formação integral da pessoa, mas creio que a maioria da população brasileira não duvida disso.
É ainda a Constituição que determina, como tarefa da educação, visar "o pleno desenvolvimento da pessoa" (artigo 205). Estou bem convencido de que uma boa formação religiosa vale muito na vida de uma pessoa, mas respeito quem pensa diversamente. Certo, não me refiro a caricaturas que se fazem da religião, ou a instrumentalizações e desvios da religião, nocivos à boa convivência social.
A seguir, o parágrafo 1º mesmo do artigo do acordo estabelece a questão que mais gerou preocupação, provavelmente por desconhecimento do texto em questão: "O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação." Fica muito claro que o ensino religioso previsto no acordo não é imposto aos estudantes, mas é de matrícula facultativa; não é só católico nem é discriminatório, mas plural e respeitoso da diversidade cultural e religiosa do Brasil; grupos religiosos não-católicos poderão oferecer sua própria proposta de ensino religioso. Tratando-se de um acordo entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro, aceitas as afirmações sobre o respeito à diversidade religiosa, o texto poderia ter-se limitado a falar do ensino religioso católico, mas vai além e afirma que o mesmo também vale para as demais confissões religiosas. Não se fazem discriminações.
O texto do acordo também não introduz novidade na legislação brasileira, mas retrata aquilo que já está na lei. De fato, repete-se ipsis litteris o que se lê no artigo 210 da Constituição: "O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental." O acordo também reproduz aquilo que já vem estabelecido na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). Sendo facultativo para o aluno, são os pais ou os responsáveis legais que podem ajudá-lo a tomar a decisão da matrícula, ou não, quando ele é menor de 16 anos. Quem não quer não será obrigado a fazer a matrícula.
Mas cabe a pergunta se é competência do Estado "ensinar religião". E aí estou de acordo em dizer que não, e também não é o que se prevê no acordo. O Estado deve assegurar aos alunos o direito de receber a formação religiosa desejada. É um direito cidadão. Mas o Estado não escolherá a religião que deve ser ensinada, nem os conteúdos da disciplina, tampouco ministrará o ensino religioso: seria contrário à laicidade do Estado e à liberdade religiosa do povo. O ensino religioso compete aos grupos religiosos específicos que queiram promovê-lo, atendendo a um direito de cidadãos que o desejarem. Evidentemente, isso requer uma regulamentação própria, que já existe em alguns Estados brasileiros, como o do Rio de Janeiro.
De fato, a educação religiosa nos estabelecimentos públicos de ensino fundamental não deve ser diluída em questões gerais de sociologia ou de antropologia religiosa, ou reduzida ao estudo comparado de temas religiosos; nem deverá ser proposta como uma espécie de "religião genérica", indefinida e não-confessional. Tal religião não existe; ou, então, seria uma espécie de religião oficial, oferecida indevidamente pelo Estado, negando o princípio da pluralidade e da liberdade religiosa, bem como a própria laicidade do Estado. Semelhante ensino religioso também não atenderia ao direito constitucional dos cidadãos interessados em receber a educação religiosa conforme à sua fé e sua consciência, nos termos fixados pela lei e no respeito pleno da liberdade religiosa.
Enfim, os diversos grupos religiosos poderiam levantar a dúvida quanto à conveniência da participação dos próprios adeptos no ensino religioso oferecido nas escolas públicas de ensino fundamental. E não ficariam constrangidos os que não professam nenhuma religião? Como já ficou dito, pelo texto do acordo, ninguém será obrigado a matricular-se; e cada grupo religioso pode oferecer a própria proposta de ensino para seus membros. E não se excluem as possibilidades de colaboração ecumênica entre os grupos que o desejarem. |