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Existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes? Parte I: A busca de felicidade e a cultura atual
Mauro Lepori

Mauro Lepori, filósofo e teólogo formado pela Universidade Católica de Friburgo, Suíça, autor de numerosos livros, é abade do Mosteiro Cisterciense de Hauterive, também na Suíça.

Revista Passos, 47 - fev/2004.

A palestra a seguir foi proferida no Meeting de Rimini para a Amizade entre os Povos de 2003. Pouco conhecido no Brasil, trata-se do maior evento cultural europeu da atualidade. Cada edição conta com cerca de 400 mostras, 3.000 sessões e milhares de participantes. A palestra apresenta, a partir da Regra de São Bento, uma inquietante reflexão sobre o homem de hoje, que dividimos em 3 partes.


“Existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes?” (cf. Salmo 33,13). A idéia do tema desta edição do Meeting foi provocada pelo tema de dois anos atrás: “Toda a vida pede a eternidade”, que ressoou em mim - diria - como a expressão de uma ânsia, de uma preocupação, de uma apreensão diante do homem de hoje. “Toda a vida pede a eternidade”: a vida humana é grandiosa, é um mistério imenso, é chamada a uma plenitude sem fim. Mas quando se observa o homem, o homem assim como se encontra na rua, no trem, no local de trabalho, na escola, nas férias, nas famílias; quando se observa os jovens, quando se observa o rosto das pessoas... nós nos perguntamos: mas, “existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes?”. Onde está, quem é o homem que hoje quer viver com plenitude, que deseja a felicidade, a felicidade verdadeira, aquela que não tem fim? Será que a cultura moderna conseguiu plasmar e difundir um tipo de homem que não vive a própria vida, um homem satisfeito com a desilusão, contente com a tristeza; um homem que nenhuma alegria pode mais surpreender, que nenhuma alegria, possuída ou esperada, mobiliza? Será que não se deseja mais a felicidade?

Um Deus que deseja o nosso desejo

“Existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes?”. Este versículo do Salmo 33 me levou, depois, a uma passagem da introdução da Regra de São Bento, sugerida como questionamento a ser feito a qualquer um que se apresente ao mosteiro para abraçar a vida monástica. Leio para vocês todo o trecho porque aprofunda a compreensão do nosso tema.
São Bento escreve: “O Senhor, procurando entre a multidão (...) o seu operário e diz: Existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes?”. Se ao ouvires isto, responderes: “Eu”, Deus te dirá: “Se queres ter a vida verdadeira e eterna, afasta a tua língua do mal e os teus lábios não profiram mentiras; foge do mal e faze o bem, procura a paz e a siga. Se te comportares deste modo os meus olhos estarão sempre sobre ti e os meus ouvidos estarão atentos às tuas orações e, mesmo antes de me invocares, dir-te-ei: “Eis-me aqui, estou presente!”. O que poderia ser mais doce para nós, caros irmãos, do que esta voz do Senhor que nos convida? Na sua misericórdia o Senhor nos indica o caminho da vida” (cf. RB, Introdução, 14-20).
É importante, antes de tudo, notar que São Bento põe o versículo do Salmo 33 nos lábios de Deus. É o Senhor que se envolve na multidão dos homens perguntando: “Existe um homem que quer a vida e deseja dias felizes?”. Então, na origem de tudo não está o desejo de vida e de felicidade do nosso coração, mas Deus que deseja a plenitude da nossa vida. Deus se faz mendicante do desejo de felicidade do coração do homem. Deus se coloca no meio da multidão e grita, como um vendedor ambulante, o seu desejo de encontrar um homem que queira a plenitude da vida e que queira ser feliz, um homem que queira viver na alegria. Este homem, Deus o procura como “seu operário”, como alguém para o qual já estabeleceu uma tarefa. Contudo, a condição necessária para responder ao seu chamado, a condição para viver a vocação humana e cada vocação particular, a condição para ser útil a Deus não são atitudes, capacidades ou qualidades mas, simplesmente, o desejo da vida e da felicidade, o desejo da plenitude da vida. A nossa vocação fundamental é o chamado de um Deus que se faz mendicante do nosso desejo de felicidade.
Assim, São Bento traz à luz três elementos fundamentais do mistério do homem diante do mistério de Deus. Estes elementos se expressam na pergunta colocada por Deus: “Existe um homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?”; da resposta do homem: “Eu”; e da resposta de Deus à resposta do homem: “Eis-me aqui, estou presente!”.
Ora, o “Eis-me aqui, estou presente!” pronunciado pelo Senhor não é só o prêmio pela disponibilidade do homem, porque o Senhor já pronuncia o seu “Eis-me aqui!” quando se mistura na multidão procurando um homem que deseje a felicidade. O “Eis-me aqui” de Deus é eterno e está na origem do homem, é a Origem. De fato, aludindo a uma expressão do profeta Isaías, São Bento faz o Senhor dizer: “Antes mesmo de me invocares dir-te-ei: “Eis-me aqui, estou presente!”.
É verdade que a nossa consciência percebe o desejo de felicidade como se ele surgisse em nós do nada. Há um afastar-se da imponência do Ser de Deus diante do homem que cria a faculdade misteriosa da nossa liberdade de ser capaz de desejar uma Origem e um Fim que dêem sentido e plenitude à vida. A Origem e o Fim existem e coincidem no Deus que nos diz “Eis-me aqui!” mas não se impõe, a fim de que o homem possa viver o desejo afirmando o “eu”. Para São Bento, dizer “eu” significa afirmar o próprio desejo de plenitude de vida. A identidade do homem é o desejo de felicidade. O lugar do desejo de plenitude da vida é o lugar no qual o homem tem o dom de ser alguém, uma pessoa, a imagem de Deus. “Eu”: parece a coisa mais simples de dizer e de afirmar. E, da mesma forma, parece simples e dedutível que o homem responda “eu” a quem lhe pergunte se quer a vida e a felicidade. No entanto, é exatamente neste “eu”, neste simples dizer “eu” que tudo se torna confuso e é como se Deus fosse encontrado gritando o seu “eis-me, estou aqui para lhe dar a vida e a felicidade!” em um deserto sem almas, sem rostos e sem desejo. A partir do pecado original o homem passou a ter dificuldade de dizer “eu”, porque não se pode dizer “eu” sem se colocar diante de um “Tu”, sem depender ontologicamente de um “Tu”. Quando Deus diz ao homem: “Eis-me aqui, estou presente!”, anuncia-lhe a si mesmo como o “Tu” diante do qual o homem pode dizer “eu”. A felicidade que Deus promete e oferece não é um sentimento: é uma plenitude de vida, a plenitude do nosso ser homens, do nosso “eu” humano.
Por isso, quando o “Eis-me aqui, estou presente!” de Deus, origem de tudo, se faz presença que procura o homem é como se o Criador fosse em busca da realização da sua obra, da criação do homem. Deus quer que o homem seja plenamente si mesmo.
A redenção leva a criação ao cumprimento e o Deus que se coloca em meio à multidão humana é Jesus Cristo, o Emanuel, o Deus-conosco, o Deus que diz ao homem “Eis-me aqui, estou presente!” até na sua carne e até na sua morte. E é Ele que se envolve com a multidão desejando o nosso desejo, sedento por nos matar a sede, o Deus crucificado que, pouco depois de ter gritado “Tenho sede!” (Jo 19,28), se deixa traspassar o coração para se tornar nascente. “Se conhecesses o dom de Deus, disse Jesus à Samaritana, e quem é que te diz: “Dá-me de beber” [que te diz: “Tenho sede!”], certamente lhe pedirias tu mesma, e ele te daria uma água viva” (Jo 4,10).

O temor da morte sem amor pela vida

Mas qual homem encontra, hoje, este Deus que se coloca entre a multidão mendigando o desejo de vida e de felicidade?
Vivemos em uma cultura mergulhada na contradição de temer a morte sem amar a vida. Uma cultura que se debruça sobre os dois pólos extremos do aborto e da eutanásia. É como se a sociedade inteira fosse habitada por pessoas que vivem somente porque ainda não estão mortas, como se a vida não fosse nada mais do que a testemunha da morte, o arauto da morte, de modo que aqueles dois lúgubres pólos extremos, mesmo cuidadosamente censurados, invadem de tal forma o pensamento, a consciência, os relacionamentos, que à vida não resta mais nada além da consciência da morte. A vida não é nada mais que uma suspensão temporária da morte, assim como a felicidade, se existe, não é mais que um relâmpago que passa e desaparece, como o efeito de algo assombroso.
Este medo da morte sem amor pela vida é uma contradição que penetra tudo e se torna cultura, modo de viver e de pensar. Quantos pais e educadores temem neuroticamente a morte de seus filhos, mas não se preocupam absolutamente em transmitir a eles o sentido da vida! Quantos pacifistas lutam contra a guerra mas não lutam contra o aborto! E quantos se iludem tentando enganar o medo da morte com a droga e o prazer efêmero destruindo, assim, suas vidas!
Esta situação é humana e culturalmente um beco sem saída porque o ódio pela vida não é uma alternativa ao medo da morte. É como se a consciência do homem contemporâneo estivesse constantemente fugindo da morte à vida e da vida à morte dentro de um circuito infernal no qual nunca se pode evitar nem a vida nem a morte. Mas, em última instância e inevitavelmente, é a morte que se afirma por si mesma sobre tudo e sobre todos.
São Paulo, escrevendo aos pagãos convertidos de Roma, parece se referir ao homem de hoje: “Quando éreis escravos do pecado, éreis livres a respeito da justiça. Que frutos produzíeis então? Frutos dos quais agora vos envergonhais. O fim deles é a morte” (Rm 6,20-21).
A morte como destino de todas as coisas efêmeras que se faz e se vive na busca pela felicidade. O desejo de vida e de felicidade, restituído pelo desejo de Deus, que se torna pura fuga, sem direção, da morte e da tristeza que lhe cabe, se vê constrangido a suportar, ainda, a morte como destino.
Mas como pode existir espaço para o desejo no coração do homem se o destino da vida é a morte? Na verdade, o desejo do coração humano só é vivo quando tende ao infinito e ao eterno: “Toda a vida pede a eternidade”. Se o destino é a morte, se o horizonte é a morte, o desejo é percebido como falso, como um sonho, como uma alienação da realidade, mesmo quando percebido, no fundo do coração, nos momentos de maravilhamento, de verdade, de comoção, de amizade ou de dor. Nestes momentos é melhor sufocá-lo, drogando-o de imediato com o que é efêmero: “De repente, tudo e, depois, o nada”. Para que serve, de fato, o desejo de infinito e de eternidade se estamos fechados num destino de morte?
Então, que novidade pode nascer diante de uma humanidade que vive dominada pelo destino de morte e que parece ter perdido a capacidade de querer a vida e desejar a felicidade, de dizer “eu” diante da plenitude do próprio destino?

Tudo é possível para Deus

Uma cena evangélica me parece descrever a dificuldade na qual nos encontramos e o ponto de fuga para um horizonte de esperança. É a cena do encontro de Jesus com um jovem rico que, primeiramente, parece sedento de plenitude (“Bom Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna?”), mas que vai embora triste quando Jesus, fitando-o com amor, lhe propõe abandonar toda a sua riqueza para segui-lo (Mc 10,17-22). Este jovem é exatamente a imagem do homem contemporâneo que por instantes deixa-se comover por um desejo de plenitude mas que, diante de uma proposta real de vida, se enfraquece, como se dissesse a si mesmo: “De qualquer forma, a morte é o meu destino!”.
Mas é no instante em que este homem está indo embora, fechado na tristeza do apego às suas riquezas, tendo sufocado no seu coração todo desejo de plenitude de vida e prisioneiro do seu destino mortal, que acontece algo de novo, - por ele e apesar dele - e se reabre um horizonte de esperança.
À primeira vista, Jesus parece querer sublinhar o desespero daquela negação dizendo: “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os ricos!” (Mc 10,23). Os discípulos se sentem, então, como que julgados pelo distanciar-se do jovem e, amedrontados, colocam uma pergunta desesperada a Jesus: “Quem pode então salvar-se?” (Mc 10,26). E Jesus, como se tivesse Ele mesmo sido tomado por um desânimo instintivo afirma, seguro e decidido: “Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível.” (Mc 10,27).
Mas a novidade ainda não está nestas palavras porque até os pagãos poderiam dizê-las, referindo-se à sua divindade. A novidade está no significado que estas palavras têm para Jesus naquele momento e na modalidade com a qual as torna presente naquela circunstância. Exatamente depois deste encontro frustrado com o jovem rico Jesus aperta o passo em direção a Jerusalém, em direção à paixão, cruz e ressurreição, e o faz de modo tão explícito e surpreendente que aterroriza os seus discípulos: “Estavam a caminho de Jerusalém e Jesus ia diante deles. Estavam perturbados e o seguiam com medo. E tomando novamente a si os 12, começou a predizer-lhes as coisas que lhe haveriam de acontecer: “Eis que estamos subindo para Jerusalém e o Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes, aos escribas e eles irão condená-lo à morte e entregá-lo aos gentios. Zombarão dele, cuspirão nele, irão açoitá-lo e hão de matá-lo: mas ao terceiro dia ele ressurgirá.” (Mc 10,32-34).
Esta é a novidade absoluta do cristianismo diante de cada humanidade sufocada no destino da morte. “Tudo é possível a Deus!”, mas enquanto os discípulos talvez começavam a sonhar com uma vitória da onipotência divina sobre a mesquinhez humana, Jesus revela a eles que o que é possível a Deus é sofrer a recusa do homem até a morte na cruz e que, a partir dali, poderá ressurgir.
Apesar da negação da vida e da felicidade por parte do homem, apesar do medo, da incapacidade e da impossibilidade de viver com plenitude e até de desejá-lo, Jesus Cristo sabe que ainda pode criar um lugar, uma impossível possibilidade de plenitude de vida para o homem que já a negou. Como? Correndo para realizar o mistério pascal, fazendo a oferta de si mesmo, doando a sua vida.
Deus não tem poder contra a liberdade do homem que lhe dá as costas; mas nenhuma recusa por parte do homem pode impedir a liberdade de Deus de amá-lo sacrificando-se a si mesmo. O amor de Deus supera a liberdade do homem para oferecer-lhe, apesar da sua negação, o âmbito de uma espera, de uma gratuidade que re-desperta a liberdade humana corrompida pelo pecado, restituindo-lhe um lugar de responsabilidade.
Por isso não podemos mais nos perguntar se há um homem que quer a vida e deseja a felicidade sem olhar, antes, o Homem-Deus que se entrega à morte e à ressurreição pela vida e pela felicidade do homem que lhe voltou as costas. É necessário, em suma, “partir novamente de Cristo”, como não se cansa de nos chamar a atenção João Paulo II neste início do terceiro milênio. É necessário partir novamente do “Eis-me aqui, estou presente!” de Deus em Cristo que chega até a cruz. E isto não somente para sair da armadilha da cultura da morte mas, também, como olhar e juízo sobre o drama humano. De fato, não há juízo mais verdadeiro sobre o homem do que o olhar de Cristo que não vê na multidão “perdida sem pastor” um lugar de desespero e tampouco de condenação, mas um lugar de miséria que chama sobre si a Misericórdia.

 
 
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