A título de conclusão, gostaria de indicar duas dimensões da vida que emergem dessa concepção da razão (e da liberdade) iluminada pela graça, e que tornam a vida humanamente saborosa. É o oposto desse cansaço que domina hoje a Europa. Refiro-me à consciência da vida como vocação e à percepção presente do Mistério (memória), chegando ao reconhecimento de algumas presenças como “preferência” por cada um de nós.
A vida como vocação
Se a consistência da minha vida – do seu início ao destino final, passando pelo instante presente – está na ligação com o Mistério, então a vida de um homem só encontrará plenitude na adesão, através dos apelos com que a realidade o provoca, a essa Presença benévola. Como cada coisa fala de Deus a quem sabe escutá-lo, o diálogo com o Mistério de Deus ocorre sempre dentro e não fora da realidade (memória).
A minha vida pertence a um Outro e, por isso, é um dom concedido a mim e, ao mesmo tempo, é uma missão porque, pelo fato mesmo de existir, sou chamado a viver para um Outro. É esse o fulcro da riqueza e da expressividade de uma vida plenamente humana.
Quando tomamos consciência de um dom (Gabe) e de uma missão (Auf-gabe), dentro do desígnio benévolo de Deus, torna-se possível viver todas as coisas com um significado eterno, com utilidade para si e para o mundo. Então podemos dizer que a vida é “vocação”, a vida enquanto tal é um chamado de Deus à existência – como se descreve na Bíblia – e é um chamado a oferecer-lhe uma resposta amorosa em todas as nossas ações.
O homem é livre porque responde a Alguém que o amou por primeiro, como um Pai. A forma mais completa de usar a nossa razão e a nossa liberdade é exatamente essa de reconhecer-nos como filhos de Deus, para podermos ser também pais, gerando outros não só para a vida biológica, mas para o significado do viver. O de que mais precisamos, em qualquer âmbito da vida, é de homens assim, sejam eles empresários, médicos, cientistas ou juristas do mais alto nível. Por isso, é necessário que esses profissionais sejam homens adultos, capazes de comunicar o sentido da vida e fazer com que os outros cresçam, e assim, por sua vez, também amem a vida. Só então podem enfrentar o desafio de documentar, dentro do seu respectivo âmbito de trabalho, todas as conseqüências implícitas dessa percepção do humano.
Desse modo, construímos uma sociedade para o futuro e garantimos a vitalidade de um povo na história. Quem comunica a vida com o seu significado continua a crescer; quem não é mais capaz de fazê-lo inicia uma decadência que o fixa em seus próprios interesses, tornando-o, afinal, tão confuso e aborrecido que ele até desiste de recomeçar.
A memória: objetividade e preferência
A possibilidade desse caminho vocacional apóia-se na categoria da “memória”, entendida como reconhecimento amoroso da Presença de Deus através da trama dos fatos e das circunstâncias quotidianas.
São duas as dimensões inseparáveis dessa memória: de um lado, concentra-se nos gestos objetivos da vida cristã, como a oração e o silêncio, os sacramentos, a vida comum, a unidade, onde tudo é criado e querido pelo Mistério explicitamente como sinal objetivo da Sua presença (Eucaristia!). Por outro lado, para facilitar ao máximo o itinerário da razão e da liberdade – até se reconhecer amorosamente o Mistério, através das circunstâncias – Deus se manifesta e nos atrai com força servindo-se dessas situações, relacionamentos, rostos nos quais nós mesmos sentimos a vibração da realidade com particular intensidade: é a “preferência”.
Frente ao que mais nos atrai, ao que mais nos interessa, torna-se urgente envolver-nos com todo o nosso ser para compreender e abraçar o que temos diante de nós. Nessas situações, a nossa humanidade exige uma resposta plena de significado. Nunca nos contentaremos com uma resposta meramente instrumental, superficial.
Quando um casal está noivo, sabemos o quanto é determinante para o rapaz e para a moça a presença do outro, e como estão (quase) espontaneamente disponíveis a empregar todas as próprias energias em favor dessa presença. Numa tal situação, não podemos contrapor, de um lado, o conhecimento e o amor da pessoa e, de outro lado, o conhecimento e o amor do Mistério, porque ela (a pessoa) é sinal dEle (o Mistério). Três perguntas ajudam a entender essa relação entre a experiência que eles vivem e o Mistério: Quem fez com que vocês se encontrassem? Qual é a consistência última dessa relação? Quem a conserva para sempre?
Quem vive essa experiência sabe muito bem que o conhecimento afetivo do outro, enquanto sinal do Mistério presente, é a modalidade viva de uma relação de amizade entre razão e Mistério. É, pois, a resposta à pergunta que fizemos no título acima e nos indica o caminho para viver tudo (relações, trabalho, ciência, leis, economia e política) de tal modo que em cada passo da caminhada se confirme essa hipótese: a nossa razão e a nossa liberdade são favorecidas pela existência do Mistério bom, que nos chama.
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