O Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân passou 13 anos de sua vida em uma prosão comunista no Vietnam, e os útilos 11 anos de sua vida no exílio. Tendo ocupado o cargo de presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz., pode ser considerado uma das grandes testemunhas do empenho cristão na luta pelos direitos humanos no século XX. Mas a grande força de seu testemunho é a sua capacidade de cultivar o amor e a esperança nas situações mais difíceis, que o tornou um marco de vida cristã para todos. Nesse artigo, o Cardeal Renato Martino, Dom Giampaolo Crepaldi e o Papa Bento XVI escrevem sobre o significado de seu testemunho.
O Cardeal François-Xavier Nguyên Van Thuân, nascido no Vietnam em 17 de abril de 1928, foi, sem dúvida, uma das maiores testemunhas do cristianismo do século XX. Filho de uma família de católicos vietnamitas, foi ordenado padre em 1953 e bispo em 1967. Foi feito prisioneiro pelo governo comunista do Vietnam em 1975, tendo permanecido na prisão por 13 anos.
Na prisão, passou por experiências amargas, durante alguns meses esteve confinado numa cela minúscula, sem janela, úmida, que para respirar passava horas com o rosto enfiado num pequeno buraco no chão. Os carcereiros eram mudados constantemente, para evitar que eles conversassem com ele e se tornassem seus amigos. Porém, após algum tempo as autoridades chegaram á conclusão que essa não era uma boa estratégia, pois a cada dia mais guardas se “contaminavam” com o prisioneiro. Nesse período, escreveu às escondidas três livros, todos dedicados ao tema da esperança.
Foi libertado em 1988. Em 1991 foi para Roma e nunca mais teve permissão e voltar ao Vietnam. No Vaticano, tornou-se vice-presidente (1994) e presidente (1998) do Pontifício Conselho Justiça e Paz. Em 2000, pregou o retiro quaresmal para o papa João Paulo II e a cúria romana, tendo sido feito cardeal em 2001.
Faleceu de câncer, em Roma, em 16 de setembro de 2002, e sua causa de beatificação foi aberta em 2007. Os textos a seguir ajudam a compreender a grandeza e a importância do testemunho do cardeal Van Thuân para a Igreja e para o mundo:
Cardeal Renato Raffaele Martino
(sucessor do Cardeal Van Thuân na presidência do Pontifício Conselho Justiça e Paz, por ocasião do lançamento na Itália de sua biografia, “O milagre da esperança”)
Permitam-me deter-me em alguns aspectos muitos notáveis do texto, que já porta um título significativo: “o milagre da esperança”. Geralmente a palavra milagre vem conectada à fé, os testemunhos fortes da fé ou, ainda mais, às obras de caridade. É raro e pouco comum encontrar a palavra milagre junto à palavra esperança. Mas eu não creio que haja um título mais adequado, tão de acordo, para descrever com uma frase a biografia do Cardeal Van Thuân. Tudo, em tantas circunstâncias de sua vida, encaminhava para resultados desafortunados e sem esperança. Basta considerar as graves doenças que o acompanharam ao longo de toda sua existência; a seu episcopado doloroso; passado mais nas cadeias vietnamitas que diretamente na guia do seu Povo de Deus; a descoberta do tumor que a carregaria ao túmulo no mesmo dia em que recebeu a indicação ao cardinalato da Santa Igreja Romana; ao apego visceral que tinha a seu povo e à sua nação – vivido quase sempre em condições de exílio. Apesar disso, apesar de tudo, a esperança cristã mostrou neste homem uma fecundidade miraculosa, que nos conquista e renova. “Podemos verdadeiramente dizer que ‘sua esperança estava cheia de imortalidade’ (cfr. Sal 3, 4.6). Estava pleno de Cristo, vida e de ressurreição de quantos nele confiam”, disse o santo Padre na homilia das exéquias do cardeal.
[...] A esperança, vivida como virtude e como paradigma, ajudou ao cardeal meu predecessor a ser humanamente muito bom, simples, acolhedor, porque sua confiança em Deus o tornava profundamente disponível e aberto a seus irmãos, e até mesmo a seus inimigos [...]
Apesar da profundidade de seu pensamento, permaneceu simples como uma criança. Aceitou a vulnerabilidade como o preço natural pela sua própria sinceridade pureza: características certamente difíceis de serem mantidas por ele, quando se pensa o mal que tantas pessoas fizeram a ele e à sua fsmília muitas pessoas o têm feito e à família.
Todos dos nós sabemos que quando tentamos compreender o Cardeal Van Thuân, com sua vida atormentada e seu excepcional testemunho cristão, estamos diante, no final das contas, com o próprio Deus, que através de seus sinais imperscrutáveis , realizou o milagre da esperança.
Dom Giampaolo Crepaldi
(secretário do Cardeal Vant Thuân no Pontifício Conselho Justiça e Paz, presidente do Observatório Internacional Cardeal Van Thuân para a Doutrina Social da Igreja)
Deus, com o seu amor providente e misericordioso, acompanhou-o, amparou-o, salvou-o nas vicissitudes complicadas de uma vida vivida nas encruzilhadas mais dramáticas do século passado. O Cardeal soube responder a este amor com um abandono confiante; permaneceu fiel ao Senhor também nos momentos mais obscuros e perigosos da prova e da tentação. Ele afirmava que permanecer no Senhor não é ócio nem passividade. É uma ação, um ato de amor a Deus: "Quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto" (Jo 15, 5). O testemunho radioso do Cardeal faz-nos compreender profundamente o significado do evangelho de São Paulo: "já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl 2, 20). Assim também a nossa oração sabe tornar-se palavra de amor: Senhor Jesus, desejo permanecer em Ti, seremos um só, uma única vontade, um só coração, um só impulso, um único amor. Deixará de se distinguir entre o que pertence a Ti ou a mim.
Quando, no desempenho das práticas e das atividades do Dicastério, surgiam problemas ou dificuldades difíceis de resolver e governar, o Cardeal costumava tranquilizar-me, exclamando com simplicidade evangélica: "Não se preocupe, o Senhor salva-nos!". Não evitava as suas responsabilidades, mas orientava tudo para a justa perspectiva da vontade misericordiosa de Deus e do Seu amor providente. Aquela sua exclamação revelava a qualidade espiritual da vida interior do Cardeal e constitui a chave para penetrar o mistério da sua alma. Tudo está nas mãos de Deus e deve colocar-se tudo em suas mãos, sem resistências e com absoluta confiança. [...]
Meditava, nos dias terríveis da prisão, sobre a pergunta feita pelos discípulos a Jesus, durante a tempestade: "Mestre, não se Te dá que pereçamos?" (Mc 4, 39), até que uma noite, do fundo do coração, uma voz lhe falou: "Porque te atormentas tanto? Deves distinguir entre Deus e as obras de Deus, tudo o que realizaste e desejas continuar a fazer, visitas pastorais, formação de seminaristas, religiosos, religiosas, leigos, jovens, construção de escolas, de centros para estudantes, missões para a evangelização dos não-cristãos..., tudo isto é uma obra excelente, são obras de Deus, mas não são Deus! Se Deus quiser que tu abandones todas estas obras, pondo-as em Suas mãos, fá-lo imediatamente, e tem confiança n'Ele. Deus fá-lo-á infinitamente melhor do que tu; ele confiará as Suas obras a outros, muito mais capazes do que tu. Tu escolheste unicamente Deus, e não as suas obras!". Tinha aprendido a fazer a vontade de Deus. Esta luz deu-lhe uma nova força, que mudou completamente o seu modo de pensar e o ajudou a superar momentos fisicamente quase impossíveis. Temos aqui, com palavras essenciais, a verdade total e profunda de um cristianismo vivido de maneira santa e exemplar. Foi este, deveras, o grande segredo do Cardeal Van Thuân!
Assim, soube viver na alegria de Cristo ressuscitado, no perdão, no amor e na unidade, mesmo no meio das dificuldades quase insuportáveis. Esta sua atitude fez mudar os seus algozes, que se tornaram seus amigos. Até o ajudaram, às escondidas, a fazer uma cruz com pedaços de madeira, e depois a fazer também a corrente para ela, com fio elétrico da prisão, que ele usou sempre, porque lhe recordava o amor e a unidade que Jesus nos deixou no Seu testamento. Aquela corrente segurou sempre a sua cruz peitoral de Bispo e depois de Cardeal, aquela velha cruz de madeira, coberta com um pouco de metal. Cruz de testemunho heróico, cruz de amor.
Papa Bento XVI
(na encíclica Spes salvi, 32 e 34).
Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperança é a oração. Quando já ninguém me escuta, Deus ainda me ouve. Quando já não posso falar com ninguém, nem invocar mais ninguém, a Deus sempre posso falar. Se não há mais ninguém que me possa ajudar – por tratar-se de uma necessidade ou de uma expectativa que supera a capacidade humana de esperar – Ele pode ajudar-me. Se me encontro confinado numa extrema solidão... o orante jamais está totalmente só. Dos seus 13 anos de prisão, nove dos quais em isolamento, o inesquecível Cardeal Van Thuân deixou-nos um livrinho precioso: Orações de esperança. Durante 13 anos de prisão, numa situação de desespero aparentemente total, a escuta de Deus, o poder falar-Lhe, tornou-se para ele uma força crescente de esperança, que, depois da sua libertação, lhe permitiu ser para os homens em todo o mundo uma testemunha da esperança, daquela grande esperança que não declina, mesmo nas noites da solidão.
Para que a oração desenvolva esta força purificadora, deve, por um lado, ser muito pessoal, um confronto do meu eu com Deus, com o Deus vivo; mas, por outro, deve ser incessantemente guiada e iluminada pelas grandes orações da Igreja e dos santos, pela oração litúrgica, na qual o Senhor nos ensina continuamente a rezar de modo justo. O Cardeal Nguyen Van Thuân, contou no seu livro de Exercícios Espirituais, como na sua vida tinha havido longos períodos de incapacidade para rezar, e como ele se tinha agarrado às palavras de oração da Igreja: ao Pai Nosso, à Ave Maria e às orações da Liturgia. Na oração, deve haver sempre este entrelaçamento de oração pública e oração pessoal. Assim podemos falar a Deus, assim Deus fala a nós. Deste modo, realizam-se em nós as purificações, mediante as quais nos tornamos capazes de Deus e idôneos ao serviço dos homens. Assim tornamo-nos capazes da grande esperança e ministros da esperança para os outros: a esperança em sentido cristão é sempre esperança também para os outros. E é esperança ativa, que nos faz lutar para que as coisas não caminhem para o « fim perverso ». É esperança ativa precisamente também no sentido de mantermos o mundo aberto a Deus. Somente assim, ela permanece também uma esperança verdadeiramente humana.
|