Continuando sua apresentação da terceira encíclica de Bento XVI , o cardeal Martino continua aprofundando seus laços com a encíclica “Populorum Progressio” e mostra as implicações da caridade e da verdade para o desenvolvimento integral.
A redação da “Caritas in veritate” necessitou de mais tempo de preparação e por isso não pode ser publicada no aniversário de quarenta anos da “Populorum progressio” (2007). Mas isso não elimina o nexo importante com a encíclica de Paulo VI, evidente já no fato da “Caritas in veritate” ser chamada de uma encíclica sobre “o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”. Evidente ainda no primeiro capítulo da encíclica, dedicado exatamente à “Populorum progressio”, e que deve ser lido em continuidade ao magistério de Paulo VI. O tema da “Caritas in veritate” não é o “desenvolvimento dos povos”, mas sim o “desenvolvimento humano integral”, sem que o segundo implique no esquecimento do primeiro. Pode-se dizer portanto que a perspectiva da “Populorum progressio” é alargada, em continuidade com sua profunda dinâmica interna.
Creio que fica claro, com “Caritas in veritate”, que o pontificado de Paulo VI não representou nenhum retrocesso relativo à Doutrina Social da Igreja, como muito freqüentemente se tem dito, mas que este Papa contribuiu de modo significante para configurar a visão da Doutrina Social da Igreja na trilha da “Gaudium et spes” e da tradição precedente, constituindo-se na base sobre a qual João Paulo II se inseriu.
Não se deve minimizar a importância destes aspectos de “Caritas in veritate”, que eliminam muitas interpretações que pesaram e ainda pesam na compreensão do significado da Doutrina Social da Igreja, sua natureza e utilidade. “Caritas in veritate” mostra que Paulo VI uniu a Doutrina Social da Igreja à questão da evangelização (“Evangelii nuntiandi”) e previu a importância central que os temas da reprodução humana teriam para as questões sociais (“Humanae vitae”).
A perspectiva de Paulo VI e as idéias da “Populorum progressio” estão presentes em toda a “Caritas in veritate” e não só no primeiro capítulo, especialmente dedicado a ela. A parte o uso de algumas idéias específicas relativas sobre o desenvolvimento dos países pobres, “Caritas in veritate” faz suas três perspectivas de grande alcance contidas na encíclica de Paulo VI.
O primeiro é a idéia que "o mundo sofre com a falta de pensamento" (PP 85). “Caritas in veritate” desenvolve este tópico articulando os temas da verdade do desenvolvimento e do desenvolvimento na verdade até sublinhar a necessidade de um interdisciplinaridade ordenada do conhecimento e das competências a serviço do desenvolvimento humano.
O segundo é a idéia que “não há humanismo verdadeiro sem abertura ao Absoluto” (PP. 42), pois “Caritas in veritate” também se move na perspectiva de um humanismo verdadeiramente integral. Ficamos assim diante do objetivo do desenvolvimento do homem inteiro e todos os homens.
O terceiro é que na origem do subdesenvolvimento está a falta de fraternidade (PP 66). Também Paulo VI apelava para a caridade e a verdade quando convidava a trabalhar "com todo o coração e toda a inteligência" (PP. 82).
À “Populorum progressio” vem conferida a mesma honra dada à “Rerum novarum”: vir periodicamente recordada e comentada. Ela é a nova “Rerum novarum” da família humana globalizada.
A partir deste humanismo integral, a “Caritas in veritate” fala também da crise atual econômica e financeira. A imprensa se mostrou interessado principalmente neste aspecto e os jornais se perguntavam o que seria dito na nova encíclica sobre a crise atual. Quero dizer que o tema central da encíclica não é este, porém “Caritas in veritate” não se subtraiu ao problema.
Não a enfrentou no aspecto técnico, mas avaliou-a à luz dos princípios de reflexão e dos critério de juízo da Doutrina Social da Igreja e no interior de uma visão mais geral da economia, de sua finalidade e da responsabilidade dos seus atores. Esta crise, de acordo com “Caritas in veritate”, evidencia a necessidade de reconsiderar o modelo econômica chamado “ocidental”, pedido feito a vinte anos atrás pela “Centesimus annus” e nunca levado até o fim.
Porém, diz isto depois de haver esclarecido que - como já tinha visto Paulo VI e como vemos até melhor hoje - o problema do desenvolvimento se tornou policêntrico e o quadro das responsabilidades, dos méritos e das culpas se alargou muito. De acordo com “Caritas in veritate”, "a crise nos força a rever nosso caminho, dar-nos novas regras e encontrar formas novas de compromisso, valorizar as experiências positivas e rejeitar as negativas. A crise se torna ocasião de discernimento e de nova projetualidade. Nesta chave de leitura, confiante e não resignada, deve-se enfrentar as dificuldades do momento presente" (n. 21). Da encíclica surge uma visão positiva, de estímulo para a humanidade para que realmente possa encontrar os recursos de verdade e vontade para superar as dificuldades. Não um encorajamento sentimental, uma vez que na “Caritas in veritate” são identificados com lucidez e preocupação os principais problemas do subdesenvolvimento de grande parte do planeta. Mas um estímulo fundamentado, consciente e realista porque no mundo estão agindo muitos protagonistas e atores da verdade e do amor e porque o Deus que é Verdade e Amor está sempre agindo na história humana.
No título de “Caritas in veritate” aparecem os dois termos fundamentais do magistério de Bento XVI: a caridade e a verdade. Estes dois termos têm marcado todo o seu magistério nestes anos de pontificado, e representam a essência da revelação cristã. Unidos, são a razão fundamental da dimensão histórica e pública do cristianismo e estão, portanto, na origem da Doutrina Social da Igreja. Realmente "por este laço estreito com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressão autêntica de humanidade e como elemento de fundamental importância nas relações humanas, inclusive nas de natureza pública. Só na verdade a caridade resplandece e pode ser autenticamente" (n. 3). |