A encíclica “Caritas in veritate” purifica a visão de homem da Modernidade, isto é, permite que a pessoa possa olhar para si mesmo, para suas contradições e limitações, lançando-se com esperança e vigor na sua vocação de desenvolver-se e colaborar no desenvolvimento dos demais .
“Caritas in veritate” não será entendida de forma adequada se for vista apenas a partir de cada tema desenvolvido, sem uma visão geral. O verdadeiro tema da encíclica é o lugar de Deus no mundo. A partir daí, a encíclica trás também um balanço político e social da Modernidade e dos danos que nossa incapacidade de receber aquilo que não é nossa produção causou ao verdadeiro desenvolvimento.
O parágrafo 34, um dos mais belos e importantes da encíclica, fala da “admirável experiência do dom”. A Modernidade, na sua visão dominante, elimina a possibilidade de “receber” e de “acolher” qualquer coisa de verdadeiramente novo e que “irrompe” na nossa vida. Impede-nos de receber a caridade e o amor que sempre se apresentam de forma imprevista e nunca podem ser produzidos por nós. Elimina, assim, o lugar de Deus no mundo – pois Deus é Caridade e Amor. Elimina a possibilidade de reconhecer o outro como “irmão”, porque a proximidade se pode produzir – diz a encíclica – mas a fraternidade não.
Alguns observaram que a encíclica fala muito mais de fraternidade que de solidariedade. Realmente. Mas não para eliminar o termo solidariedade, mas para esclarecê-lo mais à luz da fé cristã. A fraternidade requer um único Pai e não pode ser outra coisa que não um dom. A solidariedade corre o risco do “solidarismo” e, portanto, da horizontalidade ética. Podemos dizer que a fraternidade cristã purifica a solidariedade humana.
Que relação existe entre as perspectivas do dom, da liberdade e da responsabilidade? “Caritas in veritate” coloca o tema do desenvolvimento neste contexto, no da responsabilidade e não no dos mecanismos sociais. Ele não nasce daquilo que produzimos, mas da aceitação de deveres indispensáveis. Do contrário, a liberdade seria arbitrária e a responsabilidade irresponsável.
No parágrafo 43, do capítulo sobre direitos e deveres, por exemplo, se realiza uma purificação da modernidade. Ela é libertada de si mesma para ser mais genuinamente ela mesma. De uma modernidade irresponsável para uma modernidade responsável. O subdesenvolvimento é produto. E é produzido, mais do que pela falta de recursos, pela falta de pensamento e de coração. O pensamento e o coração - se não são reduzidos a opinião e sentindo - nos colocam diante daquilo que nos interpela porque não foi produzido por nós. Indicam-nos o autêntico sentido do desenvolvimento, que deve ser assumido por cada um de modo livre e responsável, sem confiar apenas ação de mecanismos burocráticos ou técnicos.
A grandeza do “Caritas in veritate” está em seu espírito. Sem Deus, se lê na Conclusão, o homem não sabe aonde ir e nem mesmo quem é. Sem Deus, economia é só econômica, a natureza é só um depósito de matérias-primas, a família é só um contrato, a vida é só uma produção de laboratório, o amor é só “uma química” e o desenvolvimento só crescimento. O homem oscila entre natureza e cultura, algumas vezes se vendo só como natureza, outras só como cultura, sem ver que a cultura é a vocação da natureza; ou seja, a realização não arbitrária do quanto já tem presente em si. |