O texto abaixo é uma homilia para a missa da festa de Corpus Christi, preparada por uma comunidade católica de Curitiba, Pr, que trabalha com a Pastoral da Cultura e cujo carisma é o diálogo inter-religioso. Ele nos ajuda a entrar mais no espírito da exortação apostólica Sacramentum Caritatis..
O evangelho (Lc 9, 11-17) nos narra uma situação trivial na vida do discipulado. Diante da multidão faminta os discípulos pedem que Jesus a despeça “para que possa ir aos povoados e campos vizinhos procurar hospedagem e comida“. Mas Jesus não os despede e, ao contrário, ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. A acolhida e a generosidade vêm antes de tudo para que possa vir a bênção que é a transmissão da fecundidade em meio a qualquer deserto que se avizinha ou que se encontra no meio da travessia.
O evangelista João nos proclama que a essência de Jesus é “a palavra de Deus que se fez carne” (Jo 1,14). Se Jesus não é a palavra encarnada de Deus, mas simplesmente o último profeta ou o representante puramente humano do Senhor, a festa da Eucaristia não tem nenhum sentido. E continuaremos a comungar como de costume, sem que nada nos transforme, porque nos aproximamos da mesa do Senhor com os nossos corações envelhecidos pelo cansaço e pela indolência e dela voltaremos para nos encerrar nos estreitos compartimentos da nossa vida cotidiana. E nos caberá, apesar de todas as procissões, tapetes coloridos e shows oficiais que atraem multidões, a condenação de Paulo: “Quem não reconhece o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação” (1 Cor 11, 29).
O teólogo Karl Rahner, há 30 anos atrás, nos precavia: “Ah, como nós, seres triviais, fazemos deste mistério da vida eterna uma coisa tão da trivialidade do nosso dia a dia! Olhai como o sacerdote, enfadado, impelido pela sua obrigação profissional, cumpre o seu dever sublime como se estivesse a desempenhar um cargo deste mundo, e não como alguém que está celebrando a liturgia onde atuam a luz e a bem-aventurança do céu. Olhai os corações escassos e áridos onde desce o Senhor e que, no melhor dos casos, nada mais lhe sabem dizer que não seja confiar-lhe aquela meia dúzia de desejos cobiçosos e egoístas que constituem o seu dia a dia. Ah nós, os cristãos!”.
É na oração de louvor pelo trigo e pela uva, transformados, pelo trabalho, em pão e vinho, que se encontra o cerne eucarístico, pois “a Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação” (Bento XVI, Deus caritas est, 13). A humanidade, em sua cultura, é abençoada e transfigurada pela ação do Espírito de Jesus “para que a comunidade inteira se torne cada vez mais corpo de Cristo” (Sacramentum Caritatis 13).
Receber o corpo e o sangue de Cristo é abandonar nossos limites, pois neste Verbo de Deus feito carne somos chamados a levar uma vida nova e a nos libertarmos das estreitezas que nos impedem uma vida em comunhão. A cada eucaristia recebemos uma palavra que Deus nos dirige. Deus é mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos e, se é verdade que cada um em seu interior é único e só, é somente porque cada pessoa é a imagem e a semelhança singular do Deus único e só.
A certeza de que, a cada eucaristia, o Espírito transforma o pão e o vinho em Corpo e Sangue de Cristo nos garante que somos sempre acolhidos mesmo que o Cristo não encontre em nós o brilho visível da alegria de O comungarmos. O Espírito de Jesus jamais nos abandona. Ele nos transforma ao criar, inventar e fazer milagres, aninhando-se na estreiteza abafada dos nossos corações enquanto neles existir uma ínfima centelha que seja de amor e disponibilidade para a acolhida generosa do outro que sempre é a expressão da bênção fecunda de Deus para nós.
Somente levando a sério o Corpus Christi é que poderemos falar da Igreja como Corpo Místico de Cristo e poderemos falar de um Cristo Cósmico, como foi proclamado por Paulo aos Colossenses: “Nele reside corporalmente a plenitude da divindade “(2, 9), pois “tudo foi por Ele criado, no céu e na terra: o visível e o invisível... tudo foi criado por Ele e para Ele” (1, 16).
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