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Reconstruir a base ética
Dom Odilo P. Scherer é arcebispo de São Paulo
Estado de São Paulo, 14 de julho de 2007
 

Em nota recente sobre Democracia e Ética, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) manifestou sua perplexidade diante das freqüentes denúncias de corrupção em várias instâncias do poder público. É o mesmo sentimento provado por milhões de brasileiros, os quais também têm a sensação de que, no fim das contas, tudo acaba na impunidade.
Tantas denúncias assustam, mas elas, em si mesmas, não são o problema; ao contrário, elas têm seu lado positivo, pois mostram que ainda existe reação ética diante da corrupção e do mau uso do poder e que a polícia tenta fazer a sua parte.
O problema é quando as denúncias caem no vazio e tudo fica como está; as coisas se resolvem no arranjo político e os bens públicos desviados e acumulados ilicitamente não são restituídos a quem de direito. A idéia frustrante que se passa é a de que o exercício do poder é sempre acompanhado de corrupção; o povo perde a confiança na ação política e nos Poderes legitimamente constituídos; as instituições democráticas e o Estado de Direito perdem credibilidade e se enfraquecem; prepara-se, assim, o terreno para acolher com simpatia eventuais arroubos autoritários.
Também acabam solapados os pressupostos éticos para a convivência humana digna, como o respeito à pessoa e à vida, a justiça e a solidariedade. Quando passa a valer tudo para obter vantagens pessoais e o desvio de verdadeiras fortunas do patrimônio público permanece impune, a muitos parecerá bem justificado que também o cidadão comum cometa seus deslizes e possa agir desonestamente. O mau exemplo vem de cima.
Apropriar-se do patrimônio público não é roubar ao governo. Quem sai prejudicado é a sociedade no seu todo, o cidadão honesto, os pequenos e pobres, desprovidos de poder; dinheiro público desviado de sua finalidade significa menos escolas e hospitais, menos empregos e tantos outros benefícios públicos a que os cidadãos têm direito.
A superação da corrupção parece difícil porque está respaldada pela sutil convicção de que tudo pode ser feito, contanto que a polícia não pegue; não faltam leis boas, mas elas permanecerão ineficazes enquanto esta mentalidade não for superada. Pior ainda, se os fatos levam à conclusão de que, no final das contas, a desonestidade e o crime compensam... É o desprezo da ética e o deboche dos cidadãos honestos.
Que fazer, então? Certamente a solução precisa passar por reformas políticas e pelo aprimoramento do sistema democrático; velhas práticas corporativistas para se manter no poder precisam ser superadas; novas leis e mecanismos mais eficazes para inibir comportamentos desonestos também são necessários. Mas, por si mesmas, essas medidas não bastam para resolver o problema. Penas mais severas e prisões mais seguras são instrumentos repressivos necessários, mas não garantem o combate ao crime e à corrupção.
A raiz do problema está no embotamento da consciência moral; princípios éticos basilares são relativizados e tudo é justificado em função do benefício e da vantagem individualista. Por isso mesmo, é urgente reconstruir a base ética e moral da convivência humana. Sem convicções interiores a respaldar normas e leis objetivas, será sempre necessário recorrer a sistemas de repressão e de coerção; na ausência destes, as leis não são observadas.
Os referenciais do comportamento humano não podem ser apenas externos e formais, mas precisam ser reconhecidos pela consciência e trazidos no coração de cada pessoa; nem podem ser deixados simplesmente à elaboração e ao critério individuais, pois teríamos infinitas éticas diferentes em conflito umas com as outras e não haveria uma base compartilhada para a convivência respeitosa e harmônica.
A quem cabe esta tarefa? A educação para os valores morais é pressuposto para comportamentos e atitudes éticos; sendo essencial ao bem comum, essa educação precisa ser promovida pelo Estado, pelas instituições e por todos aqueles que desejam o bem da comunidade humana. Ainda mais: a formação moral precisa fazer parte da primeira educação recebida na infância e acompanhar a vida inteira das pessoas. Os estímulos positivos à prática do bem e da virtude precisam receber, no mínimo, a mesma atenção que a repressão às práticas desonestas e ilícitas.
Talvez seja oportuno, neste ponto, recordar a função dos Dez Mandamentos da Lei de Deus, transmitidos por Moisés ao povo hebreu há milhares de anos e também já conhecidos entre outros povos daquela época. Ao longo da História, formaram a base essencial dos códigos éticos e das relações sociais de inteiras civilizações. Sua simplicidade é tamanha que até desconcerta quem estáà procura de fórmulas complexas para orientar os comportamentos humanos; mas sua essencialidade e sua sabedoria são tão evidentes que é difícil duvidar de que indicam o caminho certo. Aos filhos é pedido que respeitem e honrem pai e mãe - alguém diria que o contrário é que deve ser feito? “Não roubar, não mentir, não matar, não tomar a mulher do próximo” - alguém afirmaria que o contrário disso é o correto e constrói o bem comum?
Continuam válidos os Dez Mandamentos da Lei de Deus; se fizessem parte dos comportamentos cotidianos dos cidadãos e da educação das novas gerações, seria possível recuperar uma convivência respeitosa e pacífica; os direitos e a dignidade das pessoas não seriam mais lesados e muitas cadeias poderiam ser fechadas; corrupção e desonestidade seriam banidas da gestão do patrimônio público e as instituições teriam sua credibilidade reconhecida; tempo e energias gastos em CPIs infindáveis poderiam ser mais bem empregados na busca da solução para os problemas do povo.

 
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