A viagem de Bento XVI à Terra Santa representou, na verdade, tudo o oposto daquilo que grande parte dos analistas escreveu. Fiel a seus pressupostos e a sua profunda posição religiosa, o Papa avançou no difícil caminho do diálogo inter-religioso, estreitou laços de amizade com a comunidade muçulmana e realizou uma reflexão teológica que corresponde às convicções tanto de cristãos quanto de judeus. Um balanço surpreendente, mas que pode ser comprovado pelos fatos.
P. Qual o seu balanço da peregrinação de Bento XVI À Terra Santa? O Custode da Terra Santa, Dom Pizzaballa, disse que qualquer coisa que tenha um significado religioso, ou apenas humano, naquela região se torna político. Concorda com isso?
R. De certo modo concordo. É uma viagem com conseqüências e efeitos políticos inevitáveis. A questão capital, em minha opinião, é compreender se o principal terreno sobre o qual Bento XVI quis colocar o sentido de sua viagem é mesmo o político. Eu não creio. Isso não quer dizer que o Papa não esteja consciente das implicações políticas de seu gesto. Isso pode ser observado em seus pronunciamentos em Belém ou no campo de refugiados, quando deu declarações políticas explícitas – mas que não representavam uma novidade em relação ao posicionamento da Santa Sé no conflito entre israelenses e palestinos. Mas o Papa circulou numa esfera que não é a política.
P. Refere-se, por exemplo, ao tema dos muros espirituais e ao tema do perdão?
R. Sim. Mesmo nos discursos “políticos”, essa dimensão de fundo é claramente visível. Quando disse, a propósito desse muro tão contestado e controverso [nde. o muro que Israel está construindo para segregar os palestinos], que a verdadeira questão é derrubar os muros que se criam nos corações dos homens, entre um homem e seu próximo. É uma tarefa que diz respeito às escolhas pessoais, que podem, contudo, mudar as coisas no nível público. A mesma coisa aconteceu nas homilias em Belém e no vale de Josafá. Bento XVI sempre lançou mensagens muito explícitas aos cristãos, convidando-os a não abandornar sua terra.
P. É compreensível que o Papa peça aos cristãos para permanecer, pois essa é a sua terra, assim como dos hebreus e dos Certo. muçulmanos...
R. Certo, mas seu argumento é eminentemente teológico. Ele disse: permaneçam, porque vocês têm o privilégio único de estarem em contato direto com a memória histórica da Salvação. Estão em condições, como os apóstolos, de ver e de tocar os lugares nos quais a salvação aconteceu, e portanto têm uma missão e um testemunho excepcionais para dar ao mundo. E os exortou a permanecerem fiéis a esta missão. A abordagem com a qual Bento XVI olha para as coisas muito concretas, e por isso muito políticas – como a permanência dos cristãos na Terra Santa – é substancialmente profético, religioso.
P. Essa viagem marca uma evolução nas relações entre a Santa Sé e o Esatdo de Israel?
R. Mais que a relação com o Estado de Israel, politicamente entendido, em relação ás quais o Papa usou muito sóbreias e muito medidas, penso que o capítulo sobre a relação entre judaísmo e cristianismo é um dos grandes eixos dessa viagem. Inclusive naquilo que diz respeito à história do judaísmo, e portanto ao Holocausto, o Papa disse coisas muito originais – que justamente por isso desorientaram parte dos observadores.
P. Refere-se às polêmicas que se seguiram a sua visita ao Memorial de Yad Vashem?
R. Até mesmo o Ha’aretz, o jornal mais liberal de Israel, publicou palavras duras, num ataque impiedoso às palavras de Bento XVI. Por que muitos intelectuais israelenses ficaram tão desconcertados? Porque tinham em mente um esquema – que, no final das contas, era o deles – e queriam que o Papa seguisse esse esquema. E o Papa não fez isso. Abriu páginas de reflexão até então inéditas sobre o mistério da perseguição de Israel, centrando sua reflexão sobre o nome, o valor bíblico fortíssimo que tem o conceito de nome.
P. Então o Papa traiu as expectativas...
R. Realmente, aqueles que estavam por demais aferrados ao esquema – preparado por eles – não sabiam para onde olhar. Mas a reflexão do papa foi muitíssimo apreciada, no terreno judeu, pelos que a entenderam. O nome é a identificação da pessoa e a identificação da missão que é dada à pessoa – tanto é verdade que o Papa recordou que Deus deu um novo nome a Abrão e o mesmo aconteceu a Jacó. O nome novo corresponde a uma missão. E estes nomes estão presentes de modo indelével no pensamento e no coração de Deus. Mesmo quando o mal absoluto quer tirar tudo do homem, não pode tirar o nome, porque está defendido por Deus para toda a eternidade.
P. E com relação ao mundo muçulmano?
R. Foi alvo sobretudo da primeira parte da viagem, porque o Reino da Jordânia é um pouco como que o cenáculo cultural do qual saiu a Carta dos 138, um dos frutos mais promissores gerados da aula em Regensburg, que representou a meu ver uma guinada extraordinária na relação entre Igreja Católica e Islã. Dali parte um diálogo fatigante, incipiente, mas colocado finalmente sobre questões reais: a relação entre fé, razão e violência. Ao novo capítulo adicionado pelo Papa em sua visita à Jordânia, deve-se acrescentar o amplo e interessante discurso do príncipe Ghazi Bin Talal, durante a visita à mesquita de Amã.
P. Onde reside, a seu ver, o valor da reflexão de Bento XVI?
R. A relação entre cristianismo e Islã não deve ser centrado sobre uma “negociação” impossível entre as duas fés – coisa simplesmente impensável – mas sobre a consciência de que da única fé num único Deus criador deriva a igualdade natural entre todos os homens. Portanto, os direitos do homem são exatamente aqueles inscritos na própria criação e esse é o terreno em comum no qual Islã e cristianismo podem servir à unidade da família humana, segundo aquilo que o Papa disse não apenas na Jordânia, mas também em Jerusalém. |