“Caritas in veritate”, a terceira encíclica de Bento XVI, se insere na tradição de encíclicas sociais que habitualmente consideramos ter se iniciado, na sua fase moderna, com a “Rerum Novarum” de Leão XIII. Chega 18 anos depois da encíclica social precedente, a “Centesimus annus” de João Paulo II – quase vinte anos depois, portanto, do último grande documento social.
Isto não quer dizer que nesses vinte anos o ensinamento social tenha ficado em segundo plano para os Papas ou para a Igreja. Pensemos, por exemplo, no “Compêndio de Doutrina Social da Igreja”, publicado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz em 2004 (publicado no Brasil em 2007) e na encíclica “Deus caritas est” de Bento XVI que contém uma parte central expressamente dedicada à Doutrina Social da Igreja, a qual eu definiria como uma “pequena encíclica social”. Ou então no magistério ordinário de Bento XVI.
A redação de uma encíclica, porém, assume um valor particular, representa um passo sistemático numa tradição que os pontífices iniciaram não por espírito de suplência, mas pela convicção de assim responder a sua missão apostólica e com a intenção de garantir à religião cristã o “direito de cidadania” na construção da sociedade dos homens.
Por que uma nova encíclica? Como sabemos, a Doutrina Social da Igreja tem uma dimensão que permanece e outra que muda com o tempo. Essa última representa o encontro do Evangelho com os problemas sempre novos que a humanidade deve enfrentar. Estes problemas mudam, e hoje mudam com uma velocidade surpreendente. A Igreja não tem soluções técnicas a propor, como a “Caritas in veritate” nos recorda, mas tem o dever de iluminar a história humana com a luz da verdade e o calor do amor de Jesus Cristo – bem sabendo que “se o Senhor não construir a casa, em vão se cansam os construtores”.
Se olharmos para traz no tempo e percorremos novamente estes vinte anos que nos separam da “Centesimus annus” nos damos conta que grandes mudanças aconteceram na sociedade dos homens;
As ideologias políticas que caracterizaram a época precedente a 1989 parecem ter perdido sua virulência, sendo substituídas pela nova ideologia da técnica. Bento XVI vem insistindo, através de seu ensinamento, que nestes vinte anos o potencial de intervenção da técnica até mesmo sobre a identidade da pessoa infelizmente se combinou com uma redução da capacidade cognoscitiva da razão. Esta separação entre capacidade operativa, que hoje atinge a própria vida, e sentido da realidade que se esvanece cada vez mais está entre as preocupações mais vivas da humanidade de hoje e por isso foi enfrentado diretamente pela “Caritas in veritate”.
No velho mundo dos blocos políticos em permanente oposição, a técnica estava a serviço da ideologia política. Mas agora, que os blocos não existem mais e o panorama geopolítico mudou muito, a técnica se libertou de qualquer hipoteca. Agora, o caráter arbitrário da ideologia da técnica é reforçado pela cultura do relativismo, a qual se nutre, por sua vez, desta ideologia tecnicista. A arbitrariedade com que nasce da ideologia da técnica é um dos maiores problemas do mundo de hoje, como emerge de maneira evidente na reflexão da “Caritas in veritate”.
Um segundo elemento distingue a época atual daquela em que foi lançada a “Centesimus annus”: o crescimento dos fenômenos de globalização determinados tanto pelo fim da polarização entre blocos antagônicos quanto da expansão da rede informática e telemática mundial. Iniciada no início dos anos noventa, esses dois fenômenos produziram mudanças fundamentais em todos os aspectos da vida econômica, social e política. A “Centesimus annus” apenas acenava ao fenômeno, que é enfrentado organicamente pela “Caritas in veritate”. A encíclica analisa a globalização não só em um único parágrafo, mas ao longo de todo o texto. Como se costuma dizer hoje em dia, vê a globalização como um fenômeno “transversal”: economia e finanças, ambiente e família, cultura e religião, migração e direitos dos trabalhadores – todos esses elementos, e outros mais, são influenciados por ela.
A terceira grande mudança ocorrida nesse período diz respeito às religiões. Muitos observadores notam que nestes vinte anos, com o fim dos blocos ideológicos, as religiões voltaram à cena pública mundial. A esse fenômeno, muitas vezes contraditório e que necessita ser estudado e compreendido em profundidade, se contrapõem um laicismo militante e muitas vezes exasperado que deseja eliminar a religião da esfera pública. Daí nascem conseqüências negativas e desastrosas para o bem comum. A “Caritas in veritate” enfrenta o problema em muitos parágrafos e o vê como uma questão muito importante para garantir à humanidade um desenvolvimento digno do ser humano.
A quarta e última grande mudança que desejo comentar é a emergência de alguns grandes países que saíram de uma situação subdesenvolvida, causando mudanças notáveis no equilíbrio geopolítico mundial. O funcionamento dos organismos internacionais, o problema dos recursos energéticos, novas formas de colonialismo e de abusos estão ligados a esse fenômeno, positivo em si mesmo, mas explosivo e que necessita ser bem encaminhado. Aqui retorna, com força, o problema da governança internacional.
Essas quatro grandes novidades que aconteceram nesses últimos vinte anos que separam as duas encíclicas sociais, mudaram profundamente as dinâmicas sociais mundiais, e bastariam em si mesmas para justificar uma nova encíclica social. Porém, na origem da “Caritas in veritate” está ainda outro motivo que não deve ser esquecido. Inicialmente, a “Caritas in veritate” foi pensada pelo Santo Padre como uma comemoração dos quarenta anos da “Populorum progressio” de Paulo VI. |