* Gilberto Safra, doutor em Psicologia, é professor do Instituto de Psicologia da USP e do Departamento de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP.
Parece-me bastante interessante e fecundo o estudo do lugar do sagrado para um determinado sujeito ou para uma determinada cultura. A maneira como um sujeito concebe o sagrado parece determinar a posição que esse sujeito vai ocupar no mundo e também a sua maneira de hierarquizar suas experiências psíquicas.
A vinculação com o sagrado estabelecida pelo indivíduo não é necessariamente aquela que ele conscientemente afirma ter através da sua relação com uma dada religião ou mesmo na ausência dela. O psiquismo humano parece ser habitado por “deuses” dos mais diversos tipos e qualidades, que, em suas relações, dramaticamente vividas, na fantasia inconsciente, determinam muito mais da vida da pessoa do que esta gostaria de admitir.
Para Durkheim (1996), o sagrado é o traço essencial dos fenômenos religiosos, trata-se de um sentido que se define pela oposição ao profano. Sagrado e profano falariam de dois mundos contrários, em torno dos quais gravita a vida religiosa.
As coisas e seres sagrados, segundo ele, protegeriam o indivíduo e a comunidade das interdições, enquanto os seres e coisas profanas seriam os elementos submetidos às interdições, e só entrariam em contato com os primeiros através de ritos prescritos pela crença que sustenta essa divisão do mundo. O sagrado seria um anseio de potência, de uma energia que agiria sobre o profano. Este é um vértice no estudo da religiosidade que procura compreender a organização social, a partir de algumas categorias utilizadas como referenciais.
Rudolf Otto (1992) aborda o sagrado como uma categoria que denota a manifestação do numen, poder divino, como o “outro absoluto”, algo totalmente distinto de qualquer outra experiência. Desta forma, segundo a sua concepção, o sagrado apresenta-se como uma realidade de ordem absolutamente diversa da realidade natural. Descrevendo as características desse fenômeno, esse autor fala da experiência do mysterium tremendum, uma vivência de terror perante o ser ou objeto sagrado.
Eliade (1996) também aborda o tema, detendo-se numa concepção do sagrado em que há uma hierophany, ou seja, algo sagrado mostra-se ao homem. O indivíduo teria a possibilidade de tornar-se consciente do sagrado na medida em que essa experiência opõe-se ao profano. A partir dessa perspectiva, ele vai falar da coisa, do espaço, do tempo e da existência humana sagrados. O seu pensamento aborda a experiência religiosa por meio de uma compreensão do divino como imanente.
O homem litúrgico
É interessante abordarmos a dimensão do sagrado a partir da teologia bizantina. Esta apresenta uma visão em que Deus é transcendente em sua essência e imanente em suas energias, de modo que Deus contém o mundo, sem estar contido nele. Trata-se de uma perspectiva teológica em que o paradigma da criação, da cultura, da vida humana é a ação litúrgica. Nela o homem é co-criador com Deus, o fato decorrente desse vértice é que tudo que leva o espírito humano para perto da verdade entrará no Reino Divino. Tudo que o homem expressa na arte e descobre na ciência, na vida, será integrado ao Reino. É o homem litúrgico!
O paradigma fundamental dessa teologia é o ícone. Assim, a cultura terrena é o ícone do Reino dos Céus. Perder a ação e o olhar que tornam sacro o viver humano é perder a própria natureza humana. Dostoiévski (1995) dizia que se o homem perdesse sua fé na possibilidade de ser integrado no Divino, perderia até mesmo sua forma externa. O homem bizantino cultiva a natureza, nomeia os seres e coisas e os humaniza. A relação do homem com o criador é constitutiva de seu próprio ser.
São Máximo, o Confessor (1985) afirma que a natureza é investida de energias que trazem certa condensação do mundo espiritual. A matéria é epifenômeno do espírito. Visão que se aproxima das formulações de Eliade.
Gregório Palamas (1983) comenta que o homem eleva a si mesmo sem ser separado da matéria, que o acompanha desde o início. Toda a vida humana, no mundo, na matéria é litúrgica. Um pedaço de ser transforma-se em hierofania, em epifania do sagrado. Na aparência, nada mudou, mas em níveis profundos há uma interpenetração do princípio santificador e do objeto.
A noção de sagrado aqui se articula na noção de participação. A ação humana, sendo litúrgica, possibilita que todo o cosmos possa ser sacralizado.
A arte e a teologia bizantina mostram-se bastante fecundas para a construção de uma concepção em que as dimensões artísticas e sacras estejam contempladas como experiências constitutivas e expressivas da pessoa humana. Aqui, palavra e imagem são igualmente importantes como instrumentos de simbolização da subjetividade, e como meios de recuperação da criatividade da pessoa num determinado estilo de ser. Trata-se de um estilo que surge a partir de uma experiência que é nomeada pelo indivíduo como sagrada.
O senso do sagrado: dimensão ontológica
É o estado devotado da mãe diante do seu bebê que possibilita o acontecimento constitutivo da pessoa humana. Nesse estado psíquico, a mãe olha o seu bebê como ser, como a pessoa que ele é e será ao longo do tempo. Observa-se que ela se organiza segundo as características de sua criança, principalmente por meio de sua adaptação ao ritmo biológico do bebê. O gesto do bebê nasce de suas tensões instintivas e cria a mãe que ele necessita encontrar. Segundo essas colocações, o bebê se constitui criando, inicialmente, a própria mãe, que se deixa criar pelo bebê. A mãe é, desta forma, aquela que proporciona os cuidados necessários ao bebê, é o primeiro objeto pulsional do bebê e é o primeiro signo de seu ser. Signo que aponta a capacidade emergente do sujeito de criar. A mãe é o ícone do ser do bebê.
Esse primeiro momento do encontro do bebê com sua “mãe devotada comum” inscreve na vida psíquica da criança uma experiência estética de encanto, abrindo-se a vivência de ilusão. A mãe se fez à “imagem e semelhança de seu bebê”. Esse acontecimento possibilita o início da constituição da subjetividade da criança.
A pessoa não se instaura de forma definitiva, mas, sim, em ciclos. O indivíduo pode ter elementos de seu ser que se inscreveram no encontro com o outro e muitos outros que não chegaram a evoluir e a se simbolizarem. Esse fenômeno leva o indivíduo a experimentar a necessidade de encontrar um objeto que possa promover a evolução dos aspectos de seu ser que não chegaram a acontecer pelo encontro com um outro ser humano, condição necessária para colocar em marcha o processo de devir de si-mesmo.
Cada vez que depara com um determinado aspecto que, potencialmente, poderia vir a se constituir na relação com um outro como um elemento de si, a pessoa experimenta, novamente, uma vivência de alegria, de júbilo, de encantamento. A experiência vivida dessa forma é, freqüentemente, nomeada pela pessoa como sagrada.
A experiência do sagrado surge antes que o indivíduo tenha qualquer tipo de representação ou concepção sobre o divino.
O sentido do sagrado está relacionado à dimensão ontológica da pessoa.
Poderíamos compreender o sentimento religioso como uma tentativa de busca do sagrado, entendido como o anseio da potência de ser. O divino é concebido como o elemento absoluto, no qual se estaria, eternamente, na experiência de júbilo e de encanto.
Penso ser necessário discriminar o sentimento religioso do sentimento de sagrado. No sentimento religioso encontramos, freqüentemente, um sentimento de reverência, de solenidade diante do Outro Absoluto. Na vivência do sagrado, o indivíduo pressente a Presença do Divino, e vive uma transformação em seu ser.
Num texto, de origem russa, publicado, entre nós em 1986, com o título de O Peregrino Russo, encontra-se o trecho seguinte: “A raiz e a força de todas as paixões e atos humanos é o amor inato do ser. O instinto de conservação, profundamente enraizado e universal, confirma-o. Todo desejo humano, todo empreendimento, toda ação têm como fito a satisfação do amor de ser, a busca da plenitude pelo homem. A satisfação dessa necessidade acompanha o homem natural ao longo de toda a sua vida. Mas o espírito humano não se contenta com o que satisfaz os sentidos, e o amor inato de ser nunca se detém. O desejo se desenvolve sempre mais, o esforço para alcançar a plenitude aumenta, cumula a imaginação e impulsiona o sentimento para outro fim” (pp. 114-115).
Essas questões são essenciais, pois a perda do sentido de sacralidade leva o homem à perda de aspectos fundamentais ao devir de seu ser. Trata-se de uma situação que, em seu extremo, pode levar à coisificação da pessoa humana, à perda da criatividade primária. O processo de cura, na situação clínica, busca o estabelecimento do sentido do sagrado mediante a recuperação da capacidade criativa. A partir dela, o indivíduo transfigura o mundo pela realidade pessoal e subjetiva.
Há, nessa perspectiva, um intercâmbio contínuo entre sujeito e cultura, sujeito e realidade compartilhada. A possibilidade de criar símbolos e ações no estilo característico do sujeito que veiculem as concepções resultantes de sua experiência de vida, na realidade cultural, leva-o a ter uma vivência estética e de transcendência. Experiência que se caracteriza pelo sujeito apreender o seu ser como transcendendo a sua experiência imediata e alcançando uma possibilidade de viver além do tempo e do espaço. Vida de relação com o Outro: a inserção e a cooperação do sujeito na história do Homem. Tagore (1982) afirma: “A dignidade do ser é o que aspiramos mediante a expansão de nossa consciência numa grande realidade do homem à qual pertencemos. A realização mediante a admiração e o amor, mediante a esperança que vai mais além do atual, mais além da nossa tensão de vida, em busca de um tempo infinito no qual vivemos a vida de todos os outros homens” (p. 116).
Trata-se de um fenômeno que permite ao indivíduo a experiência de existir pela criação de elementos que expressam suas experiências existenciais e que participam da cultura humana. O homem sofre por não conseguir criar o gesto que o insira e o represente na cultura humana.
Referências bibliográficas
ANÔNIMO. O peregrino russo. São Paulo, Edições Paulinas, 1986.
DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamazov.
Rio de Janeiro. Aguillar, 1995.
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida
religiosa. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
ELIADE, M. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
MÁXIMO CONFESSOR Maximus Confessor.
Selected Writings. Nova York, Paulist Press, 1985.
OTTO, R. O Sagrado. Lisboa, Edições 70, 1992.
PALAMAS, G. The Triads. New Jersey, Paulist Press, 1983.
TAGORE, R. La Religion del Hombre. Madri, Biblioteca Edaf, 1982.
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