* José de Souza Martins é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.
"No correr da semana, o papa Bento XVI divulgou ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos a sua Exortação Apostólica “Sacramentum Caritatis” sobre a Eucaristia. A Exortação retoma a riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, no intuito de explicitar algumas linhas fundamentais de atuação para despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico. O longo documento tem todas as características de uma aula magistral, em que Sua Santidade convida seus discípulos, com firmeza, ao aprendizado e revalorização de regras fundantes da Igreja Católica, centrando todo o edifício eclesial no constitutivo sacramento da Eucaristia. Essencialmente, o documento é um elaborado manifesto em favor de uma volta ao sagrado.
É um documento pedagogicamente claro, atraente e interessante. Interessante, sobretudo, porque Joseph Ratzinger é o único filósofo contemporâneo cujo magistério encerra a conversão das idéias em regras de conduta, como é próprio de uma monarquia absoluta. No entanto, a combinação de reflexão aberta e de exortação tem mais o intuito de correção de rumos do que de ordem impositiva que, sem dúvida, Bento XVI estava em condições de adotar. Em vários pontos da Exortação, o papa “pede” ou “sugere” a bispos e padres que procedam deste modo ou daquele. Mas, mesmo que não queira, suas reflexões serão lidas e interpretadas como regras absolutas.
Não vamos nos iludir. O papa personifica a multiplicidade de vontades que na Igreja se inquietam com a complicada relação entre o catolicismo e a sociedade contemporânea, “em um mundo em que ao nome de Deus vem, às vezes, relacionada a vingança ou até mesmo o dever do ódio e da violência”. O convite à volta ao sagrado é, portanto, uma recusa da mescla de religião e política e suas tensões. O território do sagrado fica precisamente marcado no documento, em todos os detalhes, sem margem a qualquer interpretação alternativa. Não é, pois, surpresa que na mesma semana o Vaticano tenha proibido o jesuíta Jon Sobrino, teólogo da libertação hispano-salvadorenho, de ensinar em seminários e escolas católicas, justamente por suas idéias a respeito da humanidade de Cristo.
É evidente que o papa reafirma valores e orientações que nunca foram abolidos nem suspensos, como é o caso do veto à comunhão dos divorciados que estejam em segundo casamento. Mas não deixa de haver sugestões de compaixão em relação aos que se afastam do padrão de família que a Igreja reconhece e aceita. E é mesmo interessante, e até intrigante, que o papa insista na importância de valorizar e ampliar o número dos tribunais eclesiásticos que possam examinar e decidir anulações de casamentos.
Os detalhados cuidados com a ordem e o decoro na liturgia podem parecer reacionários aos olhos dos que vão ocasionalmente à Igreja, sobretudo por uma obrigação social, muito mais ao que entendem ser um espetáculo, do que propriamente ao rito sacramental, como nos casos de casamentos, batizados e funerais. Isso atinge não só os fiéis, mas também os celebrantes. Não há como não concordar com Sua Santidade quando humilde e divertidamente fala na “necessidade de melhorar a qualidade da homilia”, não sem antes ter chamado reiteradamente a atenção para o fato de que o celebrante não está ali para mostrar sua pessoa, mas como sacerdote, como personificação do sagrado.
Todo o texto está claramente orientado no sentido de uma exortação pelo reconhecimento e reafirmação do espaço e dos ritos do sagrado. E esse é, sem dúvida, o seu sentido mais importante. A Exortação pós-sinodal do papa é motivada pelo reconhecimento da banalização do sagrado e orientada inequivocamente em favor da precisa demarcação da distinção entre sagrado e profano. Ela aponta vários sinais de banalização nos próprios rituais, na música, na arquitetura, no abandono da arte religiosa. As extensas referências em favor da arte, desde a arquitetura do templo até o canto litúrgico, constituem um dos mais belos e surpreendentes aspectos desse documento. Bento XVI pensa a arte como sendo ela própria um dos momentos do sagrado, o sagrado contido na obra de arte, como referência integrante dos elementos do culto.
É no âmbito do retorno ao sagrado que o papa pede que se distinga a hierarquia dos participantes do culto e revaloriza o carisma do sacerdote, justamente em função do caráter sacrificial da celebração da missa e da investidura sacerdotal na função de agente desse sagrado. Espaços do sagrado restritos ao acesso dos celebrantes ordenados reafirmam algo muito difícil de entender no mundo contemporâneo que é o fato simples de que no sagrado não há nem pode haver democracia.
As resistências gratuitas ao documento papal, divulgadas apressadamente, tentaram sugerir que se trata de manifestação de arcaico conservadorismo. Sequer levaram em conta os porta-vozes da banalização que o papa não recomendou a obrigatoriedade do retorno ao latim e ao canto gregoriano como linguagens da missa. Ao contrário, Bento XVI apenas recomendou que, nas grandes celebrações próprias de encontros internacionais, cada vez mais comuns, seja usado o latim, como língua de comunicação universal, e o canto gregoriano como opção litúrgica universal em situações de culto que reúnem celebrantes de distintas origens. Recomenda mesmo, no fundo, às novas gerações de sacerdotes que se preparem para o sacerdócio no mundo moderno, cada vez mais internacionalizado (e globalizado), aprendendo o latim e o canto gregoriano. São reiteradas as manifestações de reconhecimento da diversidade cultural e até mesmo de culto e as sugestões para que os bispos se esmerem em ter em conta a centralidade do sagrado e da tradição nas inculturações, sem desconsiderá-las. A manifestação do papa, longe de ser conservadora, é na verdade uma espantosa manifestação de pós-modernidade."
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